Política

Dois de Julho de 1823: milhares de soldados marcham famintos, corpos doentes, martirizados por bichos-de-pé nos pés e nos corpos, impaludismo, tifo e tuberculose

Celebração em homenagem ao Dois de Julho [data desconhecida]. Foto: AHMS/Secult [Reprodução no portal 2 de Julho]

Dois de Julho de 1823, na Bahia, consagra a libertação do Brasil do domínio português. Nesse texto, são lembrados não apenas tal data, de importância essencial para a Independência, como tantas outras sublevações, entre as quais Revolução dos Alfaiates, conhecida também como Revolta dos Búzios. Tudo pelo olhar agudo, dialético, do professor, intelectual, mestre Luís Henrique Dias Tavares, a quem o autor sucedeu na Academia de Letras da Bahia, no início de 2021.

Gosto, gosto muito, da apreciação de Antonio Candido sobre os homens de alto relevo. Primeiro, são reconhecidos e avaliados em âmbito restrito, pelos que compartilham o modo de ver deles. Quando vai sendo percebido que a ação e o pensamento, a sensibilidade deles correspondem ao que há de mais profundo nas aspirações e necessidades de todos, o significado da presença de tais homens e mulheres no mundo vai se alargando até despertar a admiração e o respeito mesmo dos que não concordam com as suas ideias. Os protestantes acabam admirando São Vicente de Paulo, os ateus admiram o fervor corretivo de Martinho Lutero, os comunistas homenageiam João XXIII.

Antonio Candido dizia isso para referir-se a Carlos Marighella, em prefácio ao livro escrito por mim sobre o dirigente comunista. Dirá: independentemente de estar ou não de acordo com as ideias de Marighella, qualquer um reconheceria nele um dos que encarnaram o que o Brasil contemporâneo tem de melhor: a luta para superar a iniquidade que encharca a nossa vida social e nos faz ser uma das nações mais injustas da Terra. A luta da esquerda.

Aqui, nesse texto, quero falar de um historiador baiano de alto relevo. Tive a honra de sucedê-lo na Cadeira número 1, da Academia de Letras da Bahia, no início de 2021. A avaliação sobre a trajetória, sobre a obra dele de modo especial, ainda cobrará algum tempo para tornar-se madura, consistente. E, então, emergirá. Grande como é, vida dedicada à História e, em determinado instante, até como protagonista político, militante comunista. E não vou tratar do ficcionista, apenas do historiador. Tratar do mais respeitado historiador baiano, especialmente por sua dedicação à Independência do Brasil na Bahia, sobretudo ao episódio do Dois de Julho de 1823, a completar 200 anos agora.

Amizade

Minha aproximação com o professor Luís Henrique Dias Tavares deu-se primeiro pelos livros dele. Depois transformada em amizade. Amizade respeitosa, encontros raros. Sempre surpreendido pelo carinho, atenção dele. Havia um elo forte: amizade com o filho, Luís Guilherme Pontes Tavares. Contemporâneos na Escola de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal da Bahia. A cada encontro, perguntava pelo pai dele. A cada lançamento de livro meu, lá estava o mestre Luís Henrique. Eu, nos lançamentos dele. Tenho o insuperável História da Bahia, carinhosamente autografado por ele, datado 23 de julho de 2003.

Houve outro momento significativo de aproximação entre mim e o mestre. Corria o ano de 2009.  O deputado Luiz Alberto, também do PT, estava à frente de projeto destinado a inscrever os nomes de João de Deus do Nascimento, Manuel Faustino dos Santos Lira, Lucas Dantas do Amorim Torres e Luís Gonzaga das Virgens e Veiga no Livro dos Heróis da Pátria. Fui o relator – era deputado, também pelo PT. Produzi texto circunstanciado sobre o enforcamento dos quatro mártires na Praça da Piedade, todo ele fundamentado na Sedição Intentada na Bahia em 1798, obra dele. Os quatro tornaram-se heróis da Pátria, a partir daquele projeto. Soube: gostou muito do meu texto, publicado no quarto volume da minha série Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento, quarto volume, ano de 2012.

Jornalista 

Jovem, Luís Henrique Dias Tavares toma gosto pelas ideias comunistas, mergulha em leituras marxistas, busca respostas para os dramas sociais e políticos do mundo. Teatro, a porta de entrada para a militância. Envolve-se profundamente com o PCB. Caminha ao lado de nomes conhecidos do partido na Bahia: Heron de Alencar, João Falcão, Mário Alves, Giocondo Dias, Boris Tabacof, Ariovaldo Matos, Darwin Brandão, Alberto Vita, João Batista de Lima e Silva.

A militância sobrepõe-se ao estudo das disciplinas naquela primeira metade dos anos 1940, no Colégio Central. Não era então aluno de boas notas. Participa ativamente dos três números da revista-jornal Evolução, fechada pela ditadura Vargas. Milita na União dos Estudantes da Bahia, entidade representativa dos estudantes universitários.  Penso: a arrancada intelectual do mestre, as âncoras da brilhante trajetória acadêmica dele, podem ser encontradas entre os anos 1940 e o início dos anos 1950, fundadas no estudo e na prática do marxismo. Arrancada como jornalista, no jornal O Momento.

Em 1945, abril, o PCB resolve, na Bahia, lançar o jornal O Momento, primeiro jornal comunista nessa nova fase no Brasil. O PCB toma a iniciativa de implantar uma vasta imprensa por todo do país. João Falcão, já veterano militante apesar de jovem, escolhido diretor. João Batista de Lima e Silva, secretário de redação. Mário Alves, redator-chefe. Dois experimentados profissionais. Luís Henrique Dias Tavares, nem chegados aos 20 anos, ingressa no jornal como foca. A todo vapor, militante disciplinado.

Vinha de longe a atração pelo jornalismo. Mal chegado aos 16 anos, no Ginásio Clemente Caldas, em Nazaré das Farinhas, ao lado de alguns colegas, funda o Parlapatão, onde publica o primeiro texto de ficção. Já criticava a situação agrária do município – inclinações à esquerda se revelando. A primeira edição de O Momento circulou no dia 9 de abril de 1945. Quase um ano depois, 31 de março de 1946, transforma-se em jornal diário. Luís Henrique, o tempo todo tomado pela atividade no PCB, agora como jornalista.

A chegada dele à Universidade, só em 1948. Cursar Geografia e História, bacharelado e licenciatura, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal da Bahia, curso concluído em 1951.

O Momento enfrentou tempestades.

Guerra Fria, Getúlio sofre um golpe em 1945. Dutra e Otávio Mangabeira, irmanados na repressão. O jornal, duramente perseguido. Conjuntura difícil para os comunistas. Cassação do PCB e dos mandatos dos parlamentares do partido. Horizontes turvos naquela segunda metade da década de 1940. Governo Mangabeira proíbe debates a céu aberto, promovidos pelo jornal, agosto de 1946.

Mais grave, o empastelamento em 1947.

Em maio, dia 7, havia sido cassado o registro do PCB. Às primeiras horas da noite do dia 22 de maio, um caminhão do Exército para à porta do jornal. Dele saltam alguns oficiais e muitos soldados. Fortemente armados, arrebentam tudo a machadadas. Terror. Os jornalistas, atônitos.

A tropa arromba a porta da gerência, invade a oficina. Danifica as máquinas impressoras e a linotipo. Destrói tudo. As críticas do jornal ao presidente e general Eurico Gaspar Dutra teriam motivado o empastelamento. As relações entre o governador Otávio Mangabeira e os comunistas se deterioravam velozmente. O jornal não deixou de circular após o empastelamento. No dia seguinte, saiu um boletim de uma página, edição histórica com a manchete:

Não é possível calar a voz do povo!

Ao se iniciar o ano de 1948, 28 de fevereiro, Mangabeira reprime violentamente comício organizado pelo PCB. Vários dirigentes e militantes do partido, entre eles Giocondo Dias, Luís Contreiras, Clóvis Hildérico, João Cardoso e João dos Passos são presos. Também presos jornalistas de O Momento, entre os quais Luís Henrique Dias Tavares, encarregado pelo jornal para cobrir o comício.

Repressão violenta, com a morte do jovem bancário Luiz Garcia, abatido a tiros. Luís Henrique, jogado num camburão. Pequeno e magro, 38 quilos, levado até o prédio da Secretaria de Segurança Pública, na Piedade, imobilizado sob as botas de um policial. Entra na secretaria debaixo de empurrões e golpes de cassetete. Depois, obrigado a lavar latrinas das celas. No dia seguinte, libertado.

No olho do furacão, ia se afirmando como militante e como profissional de jornalismo. Em 1950, dividia-se entre O Momento e a revista Seiva, renascida naquele novembro, com o subtítulo de “Mensário de Cultura Nacional e Popular”. Jornalista já consagrado naquele renascimento da revista, torna-se redator-chefe. À frente de um time de redatores de primeira, entre os quais Walter da Silveira, James Amado, Jacinta Passos Amado, Quintino de Carvalho, Ariovaldo Matos, José Gorender e Camilo de Jesus Lima. A revista circula até junho de 1952, cinco números editados.

Marcou época a revista Seiva desde o seu nascimento, por inspiração de João Falcão, sob bênção do PCB, em dezembro de 1938. Em julho de 1943, proibida de circular pelo governo Vargas. Foram 18 edições nesse período, agrupando a fina flor da intelectualidade brasileira. Wilson Falcão, diretor, e Jacob Gorender, secretário, foram presos e processados pelo Tribunal de Segurança Nacional.

Professor

O afastamento de Luís Henrique do jornalismo, em 1952, depois de sete anos de intensa atividade na área, não se deu por rompimento com o PCB, mas como ele definia “por circunstâncias da vida”. Continuou durante algum tempo integrando a lista de intelectuais colaboradores do jornal, principalmente na página cultural.

Em julho de 1951, havia casado com Laurita Serra Pontes. Diplomado em dezembro do mesmo ano pela Faculdade de Filosofia em Geografia e História, Luís Henrique sai em busca de trabalho. Acaba secretário do deputado estadual Carlos Anibal Correia. Por mediação do mesmo parlamentar, consegue um contrato de professor no Colégio Central.

Quando casou-se, constituiu família, encarou a realidade, viu-se diante da necessidade de um trabalho a lhe dar condições de sustentar-se e aos familiares. Professor, a atividade o absorvia de modo intenso. Jornada estafante: entrava no colégio às sete da manhã, saía quando faltavam 15 minutos para a meia-noite. Ao chegar em casa, preparar aulas do dia seguinte, não obstante o cansaço e o horário. Dia seguinte, às sete, no Colégio Central. Vida dura. Início de 1953, presta concurso público. Aprovado com distinção, definitivamente professor. Talvez aqui seja o marco decisivo na existência dele: seria professor e se entregaria inteiramente à História, agora uma paixão, a acompanhá-lo por toda sua longa vida.

Longa e brilhante trajetória acadêmica. Doutor em História por concurso de Livre Docência, com defesa de tese. Pós-doutorado na Universidade de Londres, ocasião em que escreveu o livro Comércio Proibido de Escravos. Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado da Bahia. Sócio da Academia Portuguesa de História e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Recebeu da Academia Brasileira de Letras prêmios literários tanto por livros de ficção quanto pela produção acadêmica no campo da História.

Agraciado com o título de Cavaleiro da Ordem do 2 de Julho, título outorgado pelo governo do estado da Bahia em 2011. Diretor do Arquivo Público do Estado da Bahia, entre 1959 e 1969, distinguido por ter valorizado a arquivologia, dando foros acadêmicos ao conhecimento arquivístico.

História da Bahia

Um grande legado.

História da Bahia tornou-se imprescindível, e foi, enquanto esteve vivo, uma obra em movimento. A última edição, a 12ª, revista e ampliada, abarca dos primeiros povos indígenas a habitar o território baiano ao governo de João Durval Carneiro, o último governador baiano sob a ditadura. No plano nacional, alcança a promulgação da Constituição de 1988. Comemorava os 60 anos do lançamento do livro, e surgiu em 2019 e me recordo de reunião celebrando o acontecimento na Academia de Letras da Bahia, de que participei.

Todo livro tem história.

O jovem professor Luís Henrique encontra-se casualmente com seu ex-professor do Colégio Central, Luís Monteiro. No Instituto Histórico da Bahia. Ao deparar com o ex-aluno envolto em pesquisas naquele dia, Monteiro fez-lhe apelo: escrever um livro didático sobre a história da Bahia.  Apelo imperativo – assim definido pela professora Consuelo Novais Sampaio. Não se fez de rogado: meteu mãos à obra. A primeira edição surgiu pela Editora Civilização Brasileira, com cento e poucas páginas, já livro primoroso, para ultrapassar atualmente mais de 550 páginas. A ficar para a história, instrumento essencial de alunos, professores, pesquisadores.

As professoras Maria José de Souza Andrade e Marli Geralda Teixeira, na apresentação da 12ª edição, destacam os principais aspectos da obra. Texto-síntese único sobre a Bahia, abordagem a cobrir cinco séculos. De uma elaboração sempre contextualizada nos planos nacional e internacional, com abordagens políticas e socioeconômicas, entremeada pelo tratamento cultural e pelo estudo da vida cotidiana de Salvador e do interior da Bahia. Presença permanente do povo, do homem comum, do pequeno comerciante varejista, ambulantes libertos ou escravos, soldados, a ampla diversidade dos de baixo, e, também, defendendo seus interesses, dos grandes proprietários de terras, comerciantes de grosso trato, e representantes do poder. Nada lhe escapa. Livro a levantar polêmicas e propor novas pesquisas. Fosse apenas ele, estaria inscrito na história como autor indispensável. Foi além, muito além.

Revolução dos Alfaiates

Maior destaque da produção dele, aquela a provocar mais barulho, talvez, situe-se no mergulho dado na chamada Revolução dos Alfaiates, às vezes conhecida como Revolta dos Búzios: História da sedição intentada na Bahia em 1798, considerada pelo professor em História Social, Pablo Iglesias Magalhães, do curso de História da Universidade Federal do Oeste da Bahia, como obra seminal.

Pelo rigor emprestado à pesquisa, tirando grande parte dos véus que encobriam o episódio. O movimento de 1798 inscrevia-se num quadro histórico rico e complexo, na linha universal das revoluções democrático-burguesas, da profunda contradição entre a velha ordem da exploração colonial mercantilista e a nova ordem capitalista. Evidencia a luta dos brasileiros pela autonomia nacional e o drama das discriminações em sociedades marcadas pelo sistema de trabalho escravo.

A primeira edição surge em 1975, quase cinco décadas já passados. Na última edição, a segunda, há um apêndice chamado “A noite dos condenados”, texto do mestre Luís Henrique, lido em Lisboa, no dia 31 de maio de 2006, na Academia Portuguesa da História, de quem ele era sócio de mérito. Um texto apaixonante, comovente. Compartilha a compaixão do Frei José do Monte Carmelo, Prior do Convento de Santa Tereza em Salvador.

Acompanha a execução dos quatro heróis da Pátria pelos olhos do religioso, com seu tom de piedade, registro de uma dor que não desaparece, conforme a palavra do mestre. A execução no dia 8 de novembro de 1799, o esquartejamento dos corpos, a distribuição dos pedaços pelas ruas da cidade, pelo Dique do Desterro, Largo de São Francisco, Rua Direita do Palácio, Cidade Baixa.

Espetáculo, não obstante de terror, espetáculo.  Modo a servir de exemplo, intimidação. Assustar insurretos. O calor dos dias 9, 10 e 11 de novembro de 1799 apressa a decomposição dos corpos. Urubus descem. No dia 11, Irmãos da Santa Casa de Misericórdia pedem ao governador Dom Fernando José de Portugal a retirada dos corpos das ruas para o bem da saúde de todos os habitantes de Salvador.

Em vão.

O espetáculo não pode parar.

Os corpos esquartejados, nas ruas até a madrugada do dia 15 de novembro. Só então, retirados e enterrados em locais até hoje desconhecidos. O livro e as variações em torno do tema deixam transparente o olhar do autor, o compromisso com as classes dominadas em luta e em busca de espaço político. Olhar agudo, marcado por visão densa sobre a luta de classes.

História de esquartejamentos

Um dos exemplos do prosseguimento em torno das lutas do período, girando em torno do episódio da Revolução dos Alfaiates, é a obra Da Sedição de 1798 à Revolta de 1824 na Bahia. Ao olhar a publicação, lembrar Sedição Intentada na Bahia em 1798 e História da Bahia, para ficarmos apenas nessas três obras, podermos pensar em um historiador capaz de revelar a dura luta de classes da história da Bahia, sem rodeios. Como foi sangrenta, como as classes dominantes foram violentas, como fizeram correr sangue pelas ruas, becos, vielas, estradas da Bahia. Ao percorrer tais escritos, o leitor encontrará uma história marcada por luta, resistência à opressão, levantes, cabeças rolando literalmente, e não apenas na Revolução dos Alfaiates ou no Dois de Julho.

No Levante do Terço Velho, de 1728, 23 soldados são apontados como cabeças da movimentação, dois deles condenados à forca, e depois de mortos, seus corpos esquartejados no quartel do Campo da Pólvora. Esquartejar, um hábito, rotina.

No Levante dos Periquitos, no qual o autor localiza semelhanças com a Confederação do Equador, levante do 3º Batalhão da 1ª Linha, chamados dos Periquitos por causa da cor verde da farda. Estavam frustrados com a institucionalização autoritária do Império no Brasil, com a tendência à submissão das classes dominantes ao poder executivo central, com as limitações, inibições das camadas médias. Insatisfeitos com a manutenção de um sistema socioeconômico construído com sangue e fel ao longo de mais de três séculos, conforme o verbo inflamado e verdadeiro do mestre Luís Henrique.

Aqui, outubro de 1824, Levante dos Periquitos, tombou o governador das Armas da província da Bahia, coronel Felisberto Gomes Caldeira por balas dos insurretos, e foram condenados à morte dois heróis da guerra da Independência, major Joaquim Sátiro da Cunha e tenente Gaspar Lopes Vilas Boas, sem processo escrito.

A verdade do Dois de Julho

Foi além, o mestre. O livro “Independência do Brasil na Bahia” é outro exercício de um grande historiador, outro marco, e talvez o mais denso da caminhada do historiador. A luta dos baianos para garantir a libertação definitiva do Brasil de Portugal, olhada de modo abrangente. Os diversos atores aparecem com nitidez, até chegar ao Dois de Julho de 1823, com a vitória brasileira. A realidade nua e crua aparece aos olhos dos leitores.

É da tradição baiana incorporar um arco de triunfo às comemorações anuais do Dois de Julho. Esse arco e o cortejo cívico que se forma todos os anos na Cidade do Salvador – do Largo da Lapinha para a Praça da Sé e da Praça da Sé até o Campo Grande – são as únicas manifestações que recordam e celebram no Brasil a vitória da guerra pela Independência do Brasil na Bahia. O mestre registra isso. Não fica nisso, no entanto.

Quer a verdade do Dois de Julho de 1823.

Nem sempre bela.

Dirá, com o rigor do historiador: Dois de Julho de 1823 não foi um dia festivo.

Contraditoriamente, foi dia de muita dor e sofrimento. O leitor corre o risco de levar um susto, se estiver à espera simplesmente de um momento de glória. Saberá, dito de outro modo: tal momento continha verdades não tão gloriosas. O grande historiador é assim: a história a emergir da pesquisa e revelada pela palavra escrita não tem a natureza triunfal, com o adorno dos vencedores. Sob os arcos do triunfo sempre correm águas incômodas. Diferente dos desfiles triunfais.

Naquele Dois de Julho de 1823 a cidade assiste a um espetáculo dantesco: milhares de soldados marcham famintos, corpos doentes, martirizados por bichos-de-pé nos pés e nos corpos, impaludismo, tifo e tuberculose.

O mestre não contemporiza, quer a realidade.

Problemas e mais problemas. Não limitados ao alojamento em quartéis imundos e quase demolidos e em conventos igualmente sujos, caindo pelas tabelas. Os problemas não se resumiam à alimentação precária, aos soldos atrasados. Um quadro deplorável todo ele, não obstante ainda mais grave, ele dirá. Não houve um desfile marcial, um exército libertador imponente entrando em Salvador.

Mais ainda, se o olhar se amplia. O leitor observará o voo de águia do historiador, a recusar a visão idílica da luta, e a botar o dedo na ferida da chaga obscena da escravidão. Há outra guerra embutida na luta pela Independência: a guerra dos escravos contra a escravidão. O mestre localiza essa guerra, nem sempre lembrada quando se trata daquele episódio.

Luta de classes.

Alguns dias após a celebrada, histórica Batalha do Pirajá, de 8 de novembro de 1822, houve episódio pouco conhecido. Ele o traz à luz. No dia 19 de novembro, 200 escravos negros, homens e mulheres, possivelmente nagôs, atacam posições avançadas do exército brasileiro próximas de Pirajá. Combatidos e aprisionados, 50 deles fuzilados por ordem do general Pierre Labatut, comandante do Exército Pacificador – 30 homens e 20 mulheres.

O mestre não aceita a conversa de manipulação por parte de militares portugueses, que provocariam as revoltas dos escravos e escravas. Não. Nada disso. Os levantes e tentativas de levantes de negros escravizados devem ser entendidos como episódios autênticos e profundos. Refletiam de fato a revolta dos escravos contra a escravidão, revolta ainda maior diante do papel essencial da população escravizada na guerra pela independência.

O mestre deixa cravada a visão dele, a luta contra a escravidão embutida na luta pela libertação do país.

“Sim, contra a escravidão, questão embutida na guerra pela Independência do Brasil na Bahia” – dirá assim, com essas palavras, o professor Luís Henrique Dias Tavares, para que não esqueçamos.

A olhar problemas ignorados, submersos, nosso incômodo mestre trata ainda dos conflitos entre os soldados dos batalhões patrióticos e soldados do Batalhão do Imperador, conflitos acirrados no pós-Independência.

O governo imperial foi deixando em banho-maria a questão da incorporação dos soldados dos batalhões patrióticos, integrados por negros escravos ou libertos. Eram diferenças gritantes entre os soldados voluntários baianos e os do Batalhão do Imperador. Os do Batalhão do Imperador já chegaram à Bahia como soldados do Exército, com direitos assegurados. Não era o caso dos milhares de soldados negros escravos, soldados negros libertos e soldados brancos pobres dos batalhões incorporados ao Exército no decurso da guerra, egressos dos canaviais e das lavouras de fumo e de mandioca.

Luta de classes comendo no centro daquele episódio histórico.

Da luta, no entanto, é inescapável ao historiador o fato de a Bahia ter contribuído decisivamente para a Independência do Brasil ao se revolucionar contra as cortes e o governo do rei D. João VI e aclamar o governo do príncipe D. Pedro com armas nas mãos. Dessa forma, negou o projeto de conciliação que manteria o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e o projeto do governo do príncipe dom Pedro que chegou a examinar a possibilidade do rei D. João VI voltar para o Brasil e ser aclamado rei do Brasil.

Tinha, é necessário dizer, um olhar dialético sobre a história. Olhar agudo sobre o modo de produção capitalista.

Do pós-doutorado na Inglaterra, resultou Comércio Proibido de Escravos, no qual evidencia como o modo de produção capitalista participou daquele comércio já então considerado ilegal, envolvendo os principais países de então, com destaque para os EUA, mas incluindo-se também França e Portugal.

O capitalismo não parava os negócios com o escravo, tornado rentável mercadoria. Não dispensaria de repente uma atividade econômica que na palavra de uma testemunha que o viveu, o médico norte-americano Joseph E. Cliffe, consistia no mais lucrativo negócio sob o sol naquele momento. A análise do procedimento dos capitais dos grandes países capitalistas de então não o deixa perder de vista que tal comércio não é feito apesar do Brasil, mas com o Brasil.

Não há inocência brasileira, revela o mestre. A classe dominante brasileira participou decididamente desse comércio. O Estado monárquico-constitucional unitário brasileiro do século 19 comportou-se como Estado de uma classe dominante enraizada na propriedade da terra, e para tanto precisava dos escravos, desse comércio e da exploração da força de trabalho, da mão de obra escrava, conforme o cristalino diagnóstico de Luís Henrique Dias Tavares.

Deixo de lado contribuições garimpadas em tantos livros e publicações do mestre. Não resisto, no entanto, à tentação de realçar, insistir no quanto era preocupado com os trabalhadores submetidos à escravidão no Brasil, o quanto isso está presente no trabalho dele, subjacente ou de modo explícito, quando se trata do período de vigência do modo de produção escravista. Não fosse a presença subjacente, nas linhas e entrelinhas, bastaria a leitura do seu trabalho sobre os escravos no livro Da Sedição de 1798 à Revolta de 1824 na Bahia para entender o quanto se interessou pela sorte dos dez escravos envolvidos na Revolução dos Alfaiates, tratando-os um a um naquele estudo.

Dez escravos foram presos e incluídos na devassa da Revolução dos Alfaiates. Vários presos por delação dos próprios senhores deles, temerosos de serem envolvidos na devassa, até porque vários estavam de fato envolvidos naquela luta. A questão não é a quantidade, dirá o mestre. A questão é que eram escravos.

Os escravos souberam de conversas e encontros conspirativos de homens livres. Escravos urbanos com atividades domésticas, ou escravos artesãos de aluguel, viviam próximos dos senhores, podiam escutar as conversas sobre o levante. Os senhores deles, “homens de consideração”, assim chamados. E dados à delação.

Os escravos, ouvindo uma conversa aqui, outra acolá, interessaram-se por aquilo, a dizer respeito à própria existência deles: libertarem-se da escravidão, da miséria e dos maus-tratos, da total discriminação social e de cor a que viviam submetidos. Dez deles presos, responderam interrogatórios e acareações com outros presos e acusados. Na sentença final, poucos libertados.

Os sentenciados, condenados a açoites no pelourinho, no Terreiro de Jesus, a presenciar a morte dos quatro heróis da Pátria na Praça da Piedade, seguida do esquartejamento de seus corpos, e a embarcar depois para o degredo em áreas fora do domínio de Portugal na Costa Ocidental da África, o que significava, na prática, condenação à morte.

A questão é que eram escravos. Simples assim, a conclusão do mestre.

O leitor encontrará, em suas pesquisas em torno dos dez escravos, um judicioso advogado, José Barbosa de Oliveira. Nomeado pelo Tribunal da Relação para a defesa dos acusados, produziu, como diz o mestre, corajosa, erudita e notável defesa de cada um dos réus. Na avaliação de Luís Henrique Dias Tavares, é um dos maiores documentos da advocacia brasileira. Um bom exemplo, a servir para os dias atuais, passados já mais de dois séculos.

Concluo, revelando, como diria Antonio Candido, mais e mais o homem de alto relevo. Luís Henrique Dias Tavares jamais deu-se a bravatas. De coragem, sabia, no entanto. O episódio foi é contado por Pablo Iglesias Magalhães, doutor em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Enquanto, numa visita à residência dele esperava pelo filho Luís Guilherme, Magalhães ouviu do próprio mestre o acontecido.

Estava posto em sossego na residência, no final dos anos 1960, logo depois do AI-5. Policiais chegam à casa dele. Levam baita susto com a grandeza da biblioteca particular do professor. Tanto livro assim, um perigo. Muita subversão. Um dos policiais pergunta-lhe:

– Quais desses livros são subversivos?

A pergunta talvez pretendesse resolver o dilema do policial sobre que livros apreender.

O mestre, calado.

– Quais desses livros são subversivos? – insistiu o policial.

O mestre:

– Todos.

O policial, olhando estupefato para aquele homem tão pequeno e tão ousado, abusado. E o professor completou:

– Todos os livros são subversivos.

Termino, por fim, dando-me o direito de imaginar o abraço de dois amigos: Luís Henrique Dias Tavares e Waldir Pires. Dou asas à imaginação, dou-me o direito desse abraço.

Estudaram juntos no Colégio Clemente Caldas, em Nazaré das Farinhas, no ginásio. Depois, no Colégio Central, em Salvador. Cada um a seu modo participou ativamente da história da Bahia e do Brasil. Não tem tanto tempo assim a partida definitiva dos dois.

Nesse abraço de dois homens de alto relevo, ainda lembrando Antonio Candido, revela-se a esperança, a força da razão, a presença iluminista, o sonho de liberdade, o ideal da igualdade, a defesa da ciência, e a certeza de que a democracia é utopia a ser perseguida sempre, mais ainda quando ela tenta se afastar de nós.

Temos certeza: os dois bradariam conosco, com toda a força de espíritos iluministas, de almas envoltas pelo amor à humanidade:

Democracia, sempre!

Ditadura, nunca mais!

Os dois sempre acompanharam nas ruas a festa do Dois de Julho, a festa da Independência do Brasil na Bahia. Caminharam sempre com o povo naquele dia, quando a Bahia lembra heróis, heroínas. Caminharam sempre olhando para a história, capaz de libertar negros e negras escravizadas no final do século 19. Caminharam sempre do lado das lutas pela liberdade, pela democracia, sabendo-a lutas de longo curso, para as quais os dois deixaram um amplo legado. A nós, cabe honrá-los.

Referências

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