A capacidade de negociação de Lula e parte do ministério tem sido assombrosa para viabilizar medidas básicas para garantir a famosa governabilidade. Foto: Jefferson Rudy/Ag. Senado
Em um hospital na Bahia, um senhor idoso no elevador, sem nenhum incentivo, grita alto: “O Brasil é governado por um ladrão”. Mais de sete meses depois da posse de Lula, em um estado que elegeu o candidato petista à Presidência da República e um governador do PT, é emblemática a ocorrência. Ela mostra que o ódio, as fake news e a luta continuam em cena. Tal acontecimento, sem dúvida, poderia ter ocorrido em qualquer lugar do país, talvez com mais fervor, a depender da localização. O exemplo aleatório-representativo citado serve para lembrar que, na atualidade, esquecer a disputa político-cultural-ideológica é suicídio para a reinvenção da democracia no Brasil.
O pêndulo da democracia no país vive de avanços e retrocessos. Depois do golpe de 2016, mascarado de impeachment, das eleições antidemocráticas de 2018 e do brutal retrocesso político, social, econômico, ambiental, educacional/universitário, científico, cultural, de convivência e de civilidade, sofridos pelo Brasil, o desafio de refundar a democracia, nas atuais circunstâncias nacionais, se impõe, mas será algo hercúleo.
A pandemia, com suas 700 mil mortes, e pandemônio na saúde, na economia (inflação), no social (desemprego e fome), no ambiente (queimadas, desmatamentos, agrotóxicos etc.), na ciência (cortes de recursos e bolsas), na universidade (redução de orçamentos e perseguições), na cultura (ataques, censura e guerra cultural), na vida política (militarização de cargos públicos, congresso mais corrompido/conservador por conta do orçamento secreto), esgarçamento da vida cotidiana pela violência e muitos outros retrocessos ocuparam toda sociedade e suas relações sociais. A barbárie não era metáfora. Ela se expressou dramática no genocídio da pandemia, nos corpos famintos dos Ianomâmis, sobreviventes da barbárie, e nos ataques aos poderes da República, no fatídico/facilitado dia 8 de janeiro.
O panorama traçado, juntamente com a destruição de políticas públicas; o atropelo sistemático dos ritos institucionalizados; a disseminação de procedimentos pessoalizados de compadrio familiar; a brutalidade no trato das pessoas e dos adversários; o armamento de setores violentos da população; a situação de pária internacional do país; a intoxicação de ódio na sociedade brasileira, iniciada pela chamada “grande” mídia, continuada por setores das redes sociais e intensificada pela extrema-direita no poder, com seu gabinete do ódio; as eleições antidemocráticas de 2022, com imensa desigualdade de condições na competição eleitoral e uso abusivo, como nunca, da máquina do Estado; dentre muitas outras atitudes e dispositivos, conformaram um contexto de alta complexidade e grande dificuldade para a reinauguração da frágil democracia no Brasil.
A vitória de Lula, apesar da diferença de pouco mais de 2 milhões de votos, foi estrondosa, devido às condições profundamente adversas, e ao resultado inesperado para extrema-direita, neoliberais, fundamentalistas religiosos e apoiadores de Bolsonaro. A pequena diferença não pode servir de parâmetro para medir as eleições, nem a correlação de forças existentes no Brasil, pois o caráter profundamente antidemocrático do pleito enviesou os resultados. Tomar as eleições como medidor fidedigno é desconhecer todos os absurdos antidemocráticos cometidos e imaginar que elas foram, sem mais, competitivas, justas e leais.
Isso não significa desconhecer o enraizamento preocupante do autoritarismo e do neofascismo no país, que não pode ser esquecido de modo algum, sob pena de se abrir veredas para seu desenvolvimento e para a tomada do poder novamente por meio de eleições antidemocráticos ou de seus proclamados golpes de estado.
O panorama traçado, em linhas muito rápidas e até reducionistas, demarca os estreitos limites de possibilidades do governo Lula. Desde o início, ele teve de driblar armadilhas de toda desordem: deixadas deliberadamente pela gestão anterior; construídas pela configuração conservadora/empoderada pelo orçamento secreto do Congresso Nacional; alimentadas pela complacência golpista de amplos setores das Forças Armadas; inflamadas pelos fundamentalismos religiosos e pela hipocrisia moral de segmentos conservadores; disseminadas pelas redes sociais e pela “grande” mídia, submissa de modo vergonhoso ao neoliberalismo. Todos buscam controlar e limitar a atuação do governo eleito, tentando destruí-lo, buscando domesticá-lo e prendê-lo aos grilhões do neoliberalismo, tomado como “verdade” econômica absoluta e programa de gestão indiscutível. Trata-se de um governo em estreitos limites do possível.
Armadilhas a cada instante, tentativas de golpes, tramas congressuais, pressões de militares, ação de milicianos, chantagens de entidades patronais, enquadramentos políticos nacionais, pressões internacionais, fake news da mídia e das redes sociais: enfim, cerco constante/contínuo de adversidades para atrapalhar, encurralar, domar o governo e seu programa de políticas sociais, reformista e nada revolucionário, em benefício de parcelas da população historicamente marginalizadas por tais forças políticas e sua proposta de país excludente e submisso ao primeiro mundo. Leia-se ao império. O recente episódio da tentativa de interdição da nomeação de Márcio Pochmann para o IBGE é eloquente e emblemático nesse sentido. A mídia pretende se tornar em ator político para arbitrar quem deve ou não deve ser nomeado pelo governo Lula.
Nesse quadro terrível, a capacidade de negociação de Lula e parte da equipe ministerial tem sido assombrosa para viabilizar medidas básicas para garantir a tão famosa governabilidade da sua gestão. Sem elas, Lula e governo estariam desmoralizados e liquidados. Por óbvio, que as negociações abrem flancos complicados, inclusive para conter o desenvolvimento de um projeto democrático e nacional. A amplitude das negociações envolve até a destinação de cargos no governo para partidos de tradição antidemocrática, golpista e neoliberal, que sequer garantem número de votos à altura para o governo. A chantagem e sabotagem são moedas correntes nesse ambiente. Apesar de todo risco envolvido, a liderança de Lula tem sido capaz de viabilizar medidas essenciais para o governo e seu programa.
O protagonismo internacional de Lula, com algumas poucas derrapagens, aparece como notável. Atitude altiva, soberana, com posições claras e contundentes, em um cenário internacional de polarização guerreira de ódios, marcado pela presença de lideranças medíocres e subservientes, como é o caso da União Europeia, infelizmente. A mundialização da guerra e da competição armamentista busca conquistar corações e mentes, por meio do discurso unilateral da mídia internacional. O pluralismo e o bom senso são pisoteados a cada instante pelo apelo à guerra, em escala imprevisível, sempre maniqueísta entre “bons” e “maus”, em um dualismo tão simplista, que agride qualquer argumento consistente.
No complicado contexto nacional e internacional, Lula não só demonstra sua liderança e sua capacidade de negociador, como também, diversas vezes, tem assumido posições corajosas, como as expressas em seu discurso memorável em Paris e nas contundentes críticas à sabotagem dos juros estratosféricos do Banco Central, que empobrecem o povo brasileiro, sabotam as estratégias nacionais de desenvolvimento e interditam o governo, impondo a manutenção de enormes ganhos financeiros ao capital improdutivo e a continuidade das políticas derrotadas nas urnas, oriundas da gestão ultraneoliberal de Paulo Guedes. Em tais momentos, Lula negociador cede lugar e assume também um papel de estadista à esquerda em seu governo, como não aconteceu comumente em gestões anteriores. Ter que se encarregar dessa tarefa à esquerda mostra sua versatilidade, seu amadurecimento pós-golpe e prisão, que talvez tenham diminuído as ilusões de congraçamento geral da nação, menosprezando o jogo pesado dos interesses conflitantes no capitalismo. Mas ela aponta também para a fragilidade de seu governo, que não viu aparecer até agora, com raríssimas exceções, lideranças e setores da gestão, que possam disputar posições, tensionar à esquerda, em um governo mais uma vez ao estilo de presidencialismo de coalizão, agora ainda mais esgarçado, devido ao complexo quadro nacional e internacional.
A disputa político-ideológica imprescindível à reconstrução democrática e à derrota efetiva do autoritarismo parecem não ter ganho até agora a atenção devida do governo, de seus ministérios e das forças políticas democráticas, que o apoiam verdadeiramente, que estão comprometidos com a superação da barbárie e não apenas buscam abocanhar nacos de poder, fisiologicamente. Tal desatenção pode comprometer bastante o presente e o futuro da democracia brasileira, mantendo traços autoritários, que fragilizam e solapam a nossa democracia, historicamente débil.
O risco da reprodução simplória de uma perspectiva economicista, a qual supõe que as melhorias socioeconômicas bastam para conquistar e consolidar mentes e corações para o projeto democrático e para promover a consolidação da transformação democrática é imenso. Os governos passados de Lula e o de Dilma mostraram os equívocos dessa visão reducionista. Sem mudança político-cultural concomitante e articulada com as alterações socioeconômicas, não haverá nenhuma transformação social consistente e rigorosa. A repetição do erro é imperdoável.
Mas o novo Brasil não será construído somente pelo governo e pelo Estado, por mais comprometido e proativo que eles sejam. O drama do governo e do Brasil hoje é que a superação e a solução dos gravíssimos problemas nacionais, em todas as dimensões da sociedade, em especial das suas desigualdades sociais e de poder abismais, suas carências profundas e seus imorais privilégios, não pode depender somente do governo e mesmo do estado. Sem a mobilização e participação ativa dos movimentos sociais e dos partidos democráticos, de esquerda e progressistas, o projeto de refundação da democracia e do país está em perigo. Sem a energia dos movimentos e partidos, traduzida em mobilizações em espaços geográficos (praças e ruas) e virtuais (redes), é impossível ampliar as drásticas fronteiras do possível e vislumbrar utopias, gestadas na esfera do impossível. A situação atual, por conseguinte, apresenta intenso perigo à democracia, seu presente e seu futuro, no Brasil.
Cabem infinitas perguntas a resolver. Será que os movimentos sociais, deliberadamente debilitados nas gestões Temer e Messias Bolsonaro, têm capacidade de reagir e tomar as iniciativas necessárias para a reconstrução da democracia ampliada, que precisamos? Será que os movimentos serão capazes de, ao lado de seus embates específicos, engendrarem lutas compartilhadas e gerais pela democratização da sociedade e do Estado? Será que os partidos democráticos, progressistas e, em especial, de esquerda, saberão conjugar sua atuação parlamentar e eleitoral, com a atividade cotidiana de militância, mobilização e organização políticas, essenciais para o aprofundamento da democracia e a superação da barbárie? Será que eles terão envergadura para resolver os grandes problemas, que cerceiam hoje a ampliação da democracia no país? Será que eles terão habilidade e sabedoria para construir, junto com a maioria da população brasileira, um programa acolhedor de transformação radicalmente democrática da sociedade brasileira?
Ampliar influência nas classes populares e disputar os segmentos médios, hoje adormecidos ou mesmo conquistados pelo fundamentalismo e pelo neoliberalismo, retirando-os da subserviência às classes dominantes, aparece como projeto vital para a democratização do país. Tais bases são imprescindíveis para a configuração de um novo bloco histórico, que busque dar vida a um programa visceralmente democrático e nacional para o Brasil. Um projeto que insira o país no contexto internacional de tensões entre um mundo unipolar e possibilidades de outro mundo, agora multipolar. A constituição desse projeto requer a não aceitação do ódio/violência como legítimos à vida social e política. Desse modo, nenhuma anistia aos golpistas pode ser aceita ou negociada. As regras de disputa democrática e de convivência civilizada são condição essencial para reanimar a democracia na sociedade brasileira.
A democracia, entretanto, não pode ser concebida/paralisada como apenas regime político de governo do estado. Ela tem que ser estendida para todas as relações sociais, pois a contemporaneidade mostrou que o poder não se encontra apenas nas instituições e ritos do estado, mas que ele permeia toda sociabilidade. Assim, a defesa da institucionalidade democrática deve ser conjugada sempre com a crítica de suas imperfeições e limitações, buscando sempre aprimorá-la e aprofundá-la. Ou seja, a defesa da institucionalidade não pode abdicar da crítica ao sistema injusto, que caracteriza a sociedade capitalista, com suas profundas desigualdades de poder, que permeiam os campos econômicos, sociais, ambientais, científicos, educacionais, comunicacionais, culturais e políticos. O equilíbrio entre a corajosa defesa do sistema, naquilo que ele é conquista democrática da população, e a corajosa crítica contra o sistema, inundado de carências e privilégios, emerge como horizonte a ser buscado pelas forças, que apostam na ampliação, no aperfeiçoamento e no aprofundamento da democracia no Brasil e no mundo.
Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)