Internacional

Os diálogos da sociedade civil, academia e diversos organismos não governamentais propõem instrumentos potentes para a retomada de uma agenda estratégica para os países que compõem o bioma

Lula participa da reunião dos Chefes de Estado e de Governo dos países signatários do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). Foto: Ricardo Stuckert/PR

A IV Reunião de Presidentes dos Estados Partes no Tratado de Cooperação Amazônica realizada em Belém, em 8 e 9 de agosto de 2023, estabeleceu um patamar significativo de avanço para a revitalização das relações diplomáticas no continente e reatar entendimentos para políticas, entre os entes da sociedade civil, em torno da agenda de futuro da região. Os Diálogos Amazônicos tiveram a coordenação do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e da Secretaria Geral da Presidência da República, em parceria com o Governo do Estado do Pará e com a Prefeitura de Belém.

Os 108 itens da Declaração de Belém1, fruto dos entendimentos dos chefes de Estado, afirmam a intenção dos países membros em fortalecer a cooperação diplomática, científica, tecnológica, a governança ambiental, a justiça social e o crescimento econômico com sustentabilidade. Embora haja críticas sobre o não estabelecimento de metas claras e posicionamentos incisivos sobre questões polêmicas como exploração de petróleo na Foz do Amazonas, as propostas são promissoras considerando doze anos de ausência de reuniões de cúpula, marcados em grande medida pelo retrocesso democrático em vários países.

A realização desta quarta Cúpula da Amazônia ocorreu nos primeiros sete meses de governo do presidente Lula, precedido pela Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), ocorrida em maio deste ano, e da Cúpula do Mercosul com vistas a avançar o acordo com a União Europeia, objeto de negociações que já transcorrem duas décadas. Em meio à um cenário internacional demarcador de uma nova ordem global, o Brasil lidera um movimento de multilateralidade, gestões pela paz na Europa Oriental e por avanços consistentes nos acordos de clima nas próximas Conferências das Partes que têm na COP 30, no Brasil, um ponto de culminância de resultados.

A porção amazônica da América do Sul é a maior reserva hídrica do planeta e concentra a maior biodiversidade do mundo, num espaço de 48 milhões de habitantes, entre eles povos indígenas que falam 400 línguas diferentes além das cinco línguas europeias (espanhol, português, holandês, inglês e francês). Na Amazônia continental há dezenas de povos indígenas poliglotas, o que a caracteriza como um mundo multicultural.

Este mundo Amazônia também é caracterizado pelas suas reservas minerais, sendo uma das regiões de extrativismo mais destacadas no planeta desde a fundação das colônias europeias. Ouro, prata, ferro, alumínio, cobre, petróleo, gás, entre outros recursos têm comandado as relações econômicas e políticas da região e um lugar global de subordinação e tensões políticas. O extrativismo associado ao empobrecimento e destruição de modos de vida das populações locais (GUDYNAS, 2021), ainda persiste como economia redentorista, para a acomodação de elites afeitas ao rentismo com base nos recursos da natureza.

A relevância socioambiental e climática do bioma, adquire maior atenção global nos anos recentes em que os eventos climáticos extremos se tornam mais frequentes e os países que lideram os acordos internacionais para reduzir emissões ativam planos de compromissos como o Pacto Verde Europeu, Green New Deal americano e a Civilização Ecológica da China. As dimensões geográficas, ambientais e humanas da região clamam por políticas integradas e ações articuladas de contenção das economias que causam danos irreparáveis na capacidade de resiliência ecológica.

Figura 1 – Amazônia Continental

 

A reunião dos presidentes dos países que compartilham o bioma amazônico e a rearticulação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) se somam no fortalecimento de laços econômicos e políticos.

Os chefes de Estado se encontraram três vezes em Manaus, Brasil. Em 1989 discutiram sobre o futuro da cooperação para o desenvolvimento e a proteção do patrimônio de seus respectivos territórios amazônicos. Em 1992, em preparação para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Em 2009 além de abordar questões sobre mudanças climáticas, expressaram seu firme apoio à gestão da Secretaria Permanente da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (SP/OTCA).2

A instância máxima de decisões do organismo é a Reunião de Ministros de Relações Exteriores, que delibera sobre diretrizes comuns e avalia o desempenho das ações das Comissões Nacionais, apoiada pelo Conselho de Cooperação Amazônica (CCA), composto exclusivamente por diplomatas. As cúpulas são orientadoras, estabelecendo as macrodiretrizes de cooperação.

A ideia de participação social não tem se constituído um pilar do sistema de decisões da cooperação Pan-Amazônica, pelo viés tradicional da OTCA. Da parte brasileira, a preparação da Cúpula de 2023 se deu num contexto em que os temas relacionados à sustentabilidade permeiam 70% dos órgãos do atual governo.

O Ministério das Relações Exteriores (MRE) realizou uma escuta preparatória, em âmbito nacional, por meio do Seminário sobre Desenvolvimento Sustentável na Amazônia, ainda em maio, promovido pela Fundação Alexandre de Gusmão.  A iniciativa aproximou a Cúpula de 2023 das principais teses do movimento socioambiental e das reflexões e acadêmicas da atualidade. Assim como, foi uma oportunidade de alinhar a pauta ambiental do país, com a agenda internacional e as políticas, projetos e metas relacionadas ao

Combate ao desmatamento e conservação e manejo sustentável das florestas, prevenção e combate a crimes ambientais, mudança do clima, recursos hídricos, cooperação científica, bioeconomia, a contribuição dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais como guardiãs e guardiões da biodiversidade amazônica, saúde e segurança alimentar (BRASIL/MRE, 2023)3.

A iniciativa do MRE possibilitou um encontro de atores governamentais com a sociedade civil em torno da agenda socioambiental para a Amazônia, incluindo alguns acadêmicos e lideranças sociais destacados da região. O seminário acumulou positivamente para a amplificação da convocação dos diálogos que precederam a cúpula. Importante lembrar que, desde 2016, o desmonte do Estado, agravado pelos anos de tormenta do governo 2019-2022, foram determinantes para o cerceamento da participação social, culminando com o desmantelamento do sistema de participação social conquistado pelos avanços democráticos pós-Constituição de 1988.

O diferencial da Cúpula da Amazônia realizado em 2023 em relação aos encontros diplomáticos anteriores está na pujança da mobilização social que a edição deste ano apresentou. Com a participação de 27.470 inscritos, os Diálogos Amazônicos reuniram, em Belém, lideranças de movimentos sociais, parlamentares, prefeitos, governadores, organizações não-governamentais, gestores públicos e setores privados, bancos, num esforço de encontros, visibilidades, proposições e incidências.

Foram 405 eventos organizados em dois meses de convocação, com salas cheias, reunindo diferentes gerações de ativistas e protagonistas da democracia dos oito países amazônicos membros da OTCA e mais da Guiana Francesa. Notou-se a baixa quantidade de representantes dos movimentos sociais dos países vizinhos, grande parte componentes ativos do Fórum Social Pan-Amazônico. Passagens aéreas caras respondem também pela ausência de muitas pessoas que lideram processos e projetos no interior da Amazônia brasileira.

Entre as avaliações negativas também se pontuou que a Declaração de Belém foi fechada antes de receber as contribuições dos relatores da cúpula. Pondera-se que a declaração é um instrumento diplomático cuja construção se dá em vários níveis, dentro dos países membros, considerando as forças políticas de sustentação dos seus governos e as pactuações possíveis em cada Estado. No caso brasileiro, o seminário de maio informou grande parte dos termos propostos pelo governo brasileiro. O fim do desmatamento na bacia ou uma posição contrária à exploração de petróleo na foz não teria um desfecho de acordo favorável num contexto de reaproximação da cooperação em processo de reconstrução.

Nesse sentido a mensagem da Declaração de Belém é marcada por propostas de rearticulação de mecanismos de cooperação, sintetizada na Agenda Estratégica de Cooperação Amazônica (Aeca) e uma agenda estratégica para o desenvolvimento integrado da produção baseada no uso sustentável dos recursos da biodiversidade nos Países Amazônicos (MRE, Declaração de Belém, 2023). Como diretriz orientadora dos 113 pontos acordados, destaca-se o reconhecimento da

centralidade das riquezas naturais e da diversidade cultural para a construção de estratégias de desenvolvimento de médio e longo prazo para a região, conscientes da importância da proteção desse patrimônio cultural, econômico e ambiental e observando que o respeito à diversidade e à identidade cultural de cada comunidade exerce papel fundamental na construção de um futuro sustentável e harmônico para a Amazônia (Ibid, Ibid).

São vários os itens da declaração que enfatizam a importância dos ativos ambientais e dos recursos naturais como a água, as florestas tropicais e biodiversidade. Entre as medidas concretas propostas se destaca o item 45: Estabelecer a Aliança Amazônica de Combate ao Desmatamento entre os Estados Partes, citando ações para zerar o desmatamento, para promover sistemas produtivos florestais com o manejo, assegurar a conectividade continental do bioma, governança sobre a regulação ambiental de cada país, ampliar o financiamento e o intercâmbio tecnológico.

Na gestão dos recursos hídricos, um recurso de dinâmicas ecológicas continentais, o item 30 traz o compromisso de criar a

Rede de Autoridades de Águas dos Estados Partes da OTCA para a cooperação na gestão sustentável dos recursos hídricos da região, com o objetivo de que os Estados Partes estabeleçam protocolos regionais de monitoramento, cooperação e apoio mútuo no manejo dos recursos hídricos da Amazônia pelos Estados Parte para a revitalização, a conservação e proteção das fontes de água, de critérios e parâmetros de qualidade da água (Ibid, Ibid).

A funcionalidade de instrumentos de cooperação como a Aliança e das Redes propostas depende muito da capacidade operativa da OCTA, responsável pela coordenação e concertação das políticas acordadas entre os Estados Parte. Entre as redes propostas algumas podem ter alta efetividade como a Rede Amazônica de Autoridades Florestais e a Rede de Inovação e Difusão Tecnológica da Amazônia, ambas contidas nos compromissos da Declaração de Belém. As redes e Alianças articulam organismos que executam políticas públicas nos países, com incidência na produção de conhecimento e nas ações diretas sobre os territórios do bioma. Esses organismos existem e a ação em rede pode multiplicar o impacto de suas ações, potencializando estudos, monitoramento, desenvolvimento e intercâmbio tecnológico com impacto direto nas realidades locais.

Entre os instrumentos de cooperação científica que apresentam um potencial efetivo de influenciar a tomada de decisões pelos Estados está a criação do Mecanismo Amazônico Conjunto de Mitigação e Adaptação para o Manejo Florestal Integrado e Sustentável, no lastro da decisão 16/CP.21 da UNFCCC, apresentando experiências concretas dos países e promovendo a busca de recursos de cooperação financeira para esse fim (Ibid. Ibid). Na mesma linha, se espera que o Painel Intergovernamental Técnico-Científico da Amazônia, possa ser um instrumento regional de referência para mensurar os resultados comuns das políticas de redução de emissões e de promoção de economias sustentáveis, pois se propõe a promover

a sistematização de informações e a elaboração de relatórios periódicos sobre temas prioritários, além de analisar a dinâmica social e econômica da região, para facilitar o planejamento de ações preventivas e identificar gargalos e potencialidades da produção científico-tecnológica na região amazônica, com recomendações para os governos dos Estados Partes, de acordo com suas prioridades e necessidades (Ibid, Ibid...).

Entre os Grupos de Trabalho, merece atenção o que se encarrega de propor mecanismos para a proteção dos direitos de propriedade de conhecimento nas relações comerciais de recursos genéticos, que devem ser expandidas por políticas de promoção da Bioeconomia, como vêm sendo designadas as atividades de uso de produtos da biodiversidade e de atividades agrícolas e florestais. O Grupo de Trabalho deve propor

a integração e harmonização dos Sistemas Nacionais de Acesso e Repartição de Benefícios (ABS) dos países amazônicos, relativos à utilização sustentável do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais associados em processos de pesquisa, desenvolvimento e inovação de produtos e processos explorados comercialmente, de acordo com a Convenção sobre Diversidade Biológica, seu Protocolo de Nagoia e a legislação nacional dos Estados Partes, bem como ao diálogo e à coordenação de posições sobre a agenda de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados (ABS) em diferentes fóruns multilaterais (Ibid, Ibid.).

Espera-se propostas que orientem regras de comércio justo de ativos genéticos e principalmente, que estimulem a agregação de valor aos recursos naturais dos países amazônicos, com o respeito aos direitos de propriedade intelectual para as comunidades locais. O item 25 da Declaração aponta para o fortalecimento da infraestrutura científica e tecnológica da região, assim como programas que integrem pesquisadores e promovam capacitação de docentes de nível superior nos Estados Parte.

Programas integrados de pós-graduação, assim como o intercâmbio estudantil, nos moldes do Ciência Sem Fronteiras aperfeiçoado, têm sido acenados pela comunidade acadêmica da Amazônia brasileira, como medidas que impulsionariam a produção científica e promoção de novas cadeias de valor. O item 39 da Declaração se refere à cooperação para a conservação centrada dos fenômenos continentais de

mudança do clima e os ecossistemas florestais e as turfeiras na Amazônia, com vistas a subsidiar a tomada de decisões sobre políticas públicas sobre mudança do clima, adaptação e resiliência, sobre recuperação ou recomposição da vegetação nativa em áreas desmatadas, degradadas ou alteradas, sobre conservação florestal e manejo florestal sustentável e sobre a transição para novas formas sustentáveis de produção e consumo, observando os planos nacionais (Ibid, Ibid.).

Falta na Declaração uma afirmação mais enfática sobre a compreensão de uma estratégia de desenvolvimento industrial baseado no uso sustentável da biodiversidade. No entanto, essa concepção mais conservacionista talvez revele um estágio na percepção da sociedade civil e dos governos nacionais, mais voltados para proteger os ecossistemas ameaçados, seguindo em alguns casos, a influência das agências multilaterais que financiam os projetos.

Sobre o financiamento do desenvolvimento sustentável, a declaração se posiciona pelo convite aos bancos de desenvolvimento dos Estados Partes, a trabalhar de forma integrada e concertada no desenvolvimento sustentável da região mediante a formação e anúncio de uma Coalizão Verde. A proposta é interessante, enfatizando a adequação dos instrumentos de financiamento aos objetivos dos Estados Parte, de acordo com o perfil das demandas regionais e voltadas para as estratégias locais de desenvolvimento.

Tendo em vista o comprometimento dos bancos de desenvolvimento com as políticas ambientais e climáticas nacionais orientadas para o cumprimento de metas globais de redução de emissões, de transição energética e descarbonização da economia, notadamente no Brasil, que lidera a coalizão da Cúpula da Amazônia, a oferta de recursos será aumentada. O convite dos Estados Parte reafirma um clamor da sociedade civil ao longo dos últimos 30 anos, de mudanças nas linhas e democratização do crédito, nos requisitos socioambientais dos projetos financiados e no respeito à regulação ambiental. Especialmente, no Brasil, onde os movimentos sociais atuaram na configuração do crédito ofertado pelos bancos públicos como no Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (Pronaf)4 e linhas dos fundos constitucionais.

Entre as recomendações da Declaração de Belém, o desenvolvimento de um sistema regional de vigilância epidemiológica, articulando os sistemas de medicina ocidental ou alopática com a medicina ancestral ou tradicional, respeitando os conhecimentos e saberes das pessoas que os praticam... (Ibid, ibid.) chega em boa hora. Assim como os ecossistemas e sistemas hídricos não possuem fronteiras na Amazônia Continental, as doenças tropicais e outras introduzidas pelas interações econômicas e sociais carecem de políticas e ações transfronteiriças. As populações que habitam as fronteiras são majoritariamente de povos indígenas, guardiões de conhecimentos próprios sobre suas doenças e suas curas.

O Observatório sobre a situação das pessoas defensoras de direitos humanos, dos direitos dos povos indígenas e do meio ambiente na Amazônia é um dos instrumentos propostos para integrar esforços de estudos, monitoramento e de proteção da vida das pessoas em situações de conflito. O assassinato do servidor da Funai, Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips evidenciou redes internacionais de crimes ambientais e invasão de terras indígenas.

Como conclusão, reafirma-se que os diálogos da sociedade civil, academia e diversos organismos não governamentais, em âmbito subnacional e internacional ocorridos por ocasião da Cúpula Presidencial dos Países Amazônicos contribuíram para a moldura política resultante na Declaração de Belém e propõem instrumentos potentes para a retomada de uma agenda estratégica para os países que compõem o bioma. O segredo do sucesso reside na gestão da implementação das recomendações por uma OTCA ativa e na manutenção dos espaços de diálogo com a sociedade civil dos Estados Parte para o monitoramento dos seus resultados em tempo real.

Bibliografia

BRASIL/MRE,/FUNAG, Nota Conceitual no 02,  Brasília, 2023.

BRASIL/SG, Relatórios dos Diálogos Amazônicos, 2023.

GUDYNAS, E. Extractivisms: Politics, Economy and Ecology: 5, Editora ‎ Fernwood Publishing, Canadá, 2021.

OTCA, Declaracíon de Belém, Belém, 2023.

OTCA, Tratado de Cooperação Amazônica, Manaus, 1988.

Raimunda Monteiro é graduada em Jornalismo, mestre em Planejamento de Desenvolvimento Regional, doutora em Ciências: Desenvolvimento Socioambiental, pós-doutora em Ciências Sociais; ex-reitora da Universidade Federal do Oeste do Pará; atual secretária ajunta do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável da Presidência da República – CDESS/SRI