Cultura

O Ministério da Cultura, contente com o volume de recursos, corre o risco de se tornar prisioneiro da exigência de utilização imediata e plena dos recursos

1º Dia Mundial da Diversidade Cultural após recriação do MinC. Foto: Antonio Cruz/ABr

O campo da cultura conquistou três vitórias bastante improváveis durante a gestão Messias Bolsonaro: as leis Aldir Blanc I e II e a Lei Paulo Gustavo. Improváveis porque conquistas excepcionais em contexto profundamente antidemocrático, conjugando de modo perverso pandemia e pandemônio, em uma guerra cultural para aniquilar as culturas democráticas e emancipatórias, impor monoculturas autoritárias, impedir a pluralidade viva de opiniões, inibir as liberdades e destruir os adversários, transformados em inimigos a serem liquidados.

Difícil entender como foi possível em conjuntura tão adversa as três vitórias expressivas, inclusive com votações quase unânimes na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, que isolaram os bolsonaristas ideológicos e conseguiram reverter mesmo o veto presidencial. Tais lutas e vitórias tornam-se ainda mais significativas quando inscritas na barbárie imposta ao país naqueles anos pela extrema-direita no poder nacional.

Nesse contexto altamente difícil para a sociedade e a cultura brasileiras, as vitórias do campo cultural foram gigantescas, não só por conta do recursos conseguidos, maiores orçamentos já conquistados pela cultura na história; mas também pela mobilização e organização alcançadas, pela sensibilização político-cultural de membros do parlamento nacional na Câmara dos Deputados e no Senado Federal e pela instalação de um singular federalismo cultural, reativo às atitudes abusivas da União, que envolveu estados, Distrito Federal e municípios na execução de recursos financeiros de origem nacional.

Tais vitórias levaram o campo cultural a uma situação paradoxal: a gestão antidemocrática com atitudes anticulturais marcantes produziu, muito à contragosto, o maior orçamento já visto na área da cultura em 2023. Ou seja, estamos em uma conjuntura sui generis, que combina, de modo inusitado, uma estranha situação em que a cultura possui amplos orçamentos com um quadro gravíssimo de desmantelamento da institucionalidade cultural; de desmonte das rotinas/procedimentos e de depressão, em múltiplos sentidos, do pessoal de cultura. Em uma síntese imperfeita e certamente incompleta, essa é a conjuntura vivida pela cultura em 2023.

Os desafios, por conseguinte, são gigantescos e paradoxais. De imediato, com a Lei Aldir Blanc I já executada em 2022, as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc II precisam ser regulamentadas e implantadas de maneira satisfatória, sem problemas que afetem sua boa execução orçamentária, pois uma gestão ineficiente dos recursos pode ser manipulada contra o campo cultural e sua necessidade, presente e futura, de orçamentos potentes.

Tais processos demandam, pela presença não costumeira de recursos, muita atenção e habilidade, pois envolvem potentes interesses, em uma sensível região, como a econômica. A tentação de reduzir a discussão do apoio do Estado à cultura a uma mera política de financiamento, em perspectiva bancária da atuação do Estado, pode ser um efeito colateral da bonança financeira.

O Ministério da Cultura, contente com o volume de recursos corre o risco de se tornar prisioneiro da exigência de utilização imediata e plena dos recursos. O perigo de ser tomado como mero gerente de recursos, por estranho que possa parecer, não é nada desprezível. Produzir eventos e obras, por importante que sejam para o campo cultural, pode levar ao predomínio da atuação tático-esporádica em detrimento de um horizonte que seja mais complexo e estratégico.

O aprisionamento pode significar a paralisia de políticas culturais, sem as quais a gestão fica restrita ao cotidiano, sem capacidade de definir os rumos estratégicos, que pretende implementar na cultura nacional. Nenhuma qualificada gestão pode acontecer se apenas responde aleatoriamente às circunstâncias e demandas do dia a dia sem poder desenhar algum patamar estratégico para o campo da cultura.

O federalismo cultural também corre risco. Se as leis foram produzidas em meio a um federalismo cultural capenga, com recursos federais, mas com apagamento deliberado da atuação da União, por suspeitas bastante fundadas de sua posição anticultural, cabe agora reconstruir um genuíno federalismo cultural, no qual União, estados, Distrito Federal e municípios atuem de maneira colaborativa, em espaço marcado pela mistura de responsabilidades, ainda não delimitadas entre os entes federativos.

Além da tarefa nada simples de recomposição do federalismo cultural, que exige a definição clara de responsabilidades federativas para viabilizar a atitude colaborativa, a existência de vultosos recursos federais, sem exigência financeira de contrapartidas estaduais e municipais, pode pura e simplesmente inibir o investimento de recursos estaduais e municipais em cultura. Exigências relevantes de organização de conferências, conselhos, fundos e planos de cultura podem se tornar apenas peças retóricas. O perigo é real e pode ocorrer em muitos lugares. O federalismo cultural efetivo seria agora inviabilizado pela retração dos estados, Distrito Federal e municípios, que, desse modo, deixariam de assumir os papéis que lhes cabem no fomento à cultura. O retrocesso seria assustador e os ganhos relativos à participação cultural de estados e municípios estariam comprometidos.

Todos os riscos até aqui apontados deprimem a democracia cultural, seja porque ameaçam o desenvolvimento de políticas culturais, seja porque inibem o desenrolar do federalismo cultural, ainda tão recente no país. Mas outro perigo emerge como altamente preocupante no cenário: a paralisia da democratização da cultura pela depressão da participação político-cultural, restrita apenas aos ganhos e interesses financeiros, e/ou pela atenção apenas com a execução financeira, sem a devida atenção com a qualidade democrática da cultura apoiada e financiada.

O esquecimento das políticas culturais e de seu caráter eminentemente distante da neutralidade, porque sempre escolha e opção, retiram de cena algumas das principais demandas da atualidade brasileira: a disputa entre democracia e autoritarismo, vital nos tempos recentes e presentes, e a própria disputa imanente à democracia, que implica no enfrentamento entre as concepções diferentes de democracia. A visão restrita de democracia a circunscreve e reduz ao estado/governo democráticos, enquanto a visão ampliada, além do estado/governo, aponta a democratização da sociedade e de suas relações sociais de poder como condição sine qua non para a existência mesma da democracia.

Sem o horizonte democrático em cena, os volumosos recursos hoje existem no campo da cultural podem ser usados por neofascistas e fundamentalistas para produzir culturas antidemocráticos, intolerantes, carregadas de valores inundados de intolerância, ódio, opressão, discriminação e preconceito. A ausência de políticas culturais democráticos, ao não disputar valores, produz perigo de reforçar supremacismo, machismo, homofobia, racismo, xenofobia e outros ideários autoritários, que põem em xeque as vitórias conquistadas nas leis culturais recentes e a própria vitória democrática brasileira, que derrotou eleitoralmente o bolsonarismo, em uma das eleições mais antidemocráticos acontecidas no Brasil, devido a utilização  antirrepublicana sem limites da máquina estatal e as violências físicas e simbólicas ocorridas, que comprometeram a equidade do pleito. Impossível considerar o resultado da eleição de 2023 como medida fidedigna da correlação de forças no país, dado que as condições desiguais de concorrência existentes distorceram seu resultado, por meio da ampliação ilegítima da votação do bolsonarismo. Não se deve esquecer o impacto eleitoral de recursos como: orçamento secreto, uso gigantesco e ilegal de recursos públicos, fake news, violências, ameaças, pressões, manipulação fundamentalista de igrejas etc.

Cabe dar respostas à exigência essencial imposta pela atualidade brasileira: o aprofundamento e a consolidação da democracia brasileira, historicamente sempre muito frágil. Nessa perspectiva o enlace entre políticas culturais e democracia se torna imprescindível. Cabe perguntar: o que significa hoje colocar a democracia no centro das políticas culturais? Algumas alternativas podem ser sugeridas. A construção democrática das políticas culturais, porque dialógica e participativa, seria uma delas. A incorporação de temáticas fundamentais para a democracia na contemporaneidade, tais como reconhecimento e promoção da diversidade cultural, compromisso com o federalismo cultural, efetiva territorialização da cultura e das políticas culturais e busca de um modelo democrático de fomento e financiamento à cultura complexo em sintonia fina com a própria complexidade da cultura, estariam indiscutivelmente entre os fatores democráticos das políticas culturais. Eles são eixos umbilicais de políticas culturais visceralmente democráticas.

A conexão, em plenitude, das políticas culturais com a questão democrática exige o engajamento com nítidos conteúdos democráticos, contra as desigualdades e opressões presentes no Brasil e no mundo, em diálogo transversal com as mais diversas áreas político-sociais afins em busca da garantia da cidadania, inclusive cultural; de direitos, dentre eles os culturais, e da democracia, considerada também em sua dimensão cultural. Sem a democracia cultural, o projeto da democracia ampliada no Brasil não se realiza.

Em suma, atualizar as enormes vitórias obtidas pelo campo cultural hoje implica em compreender que elas só podem ser continuadas e expandidas por meio da vinculação e do comprometimento das políticas culturais com o aprofundamento e a consolidação da democracia, em especial, com a expansão da cultura democrática no país. Ela configura uma das barreiras mais eficazes contra o risco do retorno da barbárie, que continua a ameaçar a sociedade e a cultura brasileiras e o mundo contemporâneo.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)