Política

Os verdadeiros beneficiários da ordem social atual são os muito-ricos (1%). Um caminho é encontrar identidades que possam unir os interesses dos 99% da população

Em 2021, os 50% mais pobres tinham apenas 0,4% da riqueza brasileira, enquanto o 1% mais rico detinha 48,9%. Foto: Vladimir Platonow/ABr

Uma singela proposta do governo para começar a taxar fundos exclusivos (criados para um único investidor) e os fundos offshore e trusts, mesmo que atinja apenas 2.500 pessoas (0,001% da população), acionou um acalorado debate nos meios de comunicação. Mais intenso que o aquecimento global e o aumento acelerado de eventos climáticos no planeta, que dizem respeito a toda a humanidade. Por que isso acontece?

É que esse pequeno grupo de pessoas acumula, segundo o Ministério da Fazenda, um patrimônio de R$ 820 bilhões, uma concentração de riqueza escandalosa que lhes confere o poder de decidir as coisas que serão discutidas e, também, as que serão omitidas. Ao longo da história, as classes beneficiárias de riqueza e de poder, sempre tentaram transformar os seus interesses particulares em “interesse da sociedade”, ou “interesse nacional”.

Os muito-ricos no Brasil são um pequeno grupo de pessoas, mas são donos e/ou investidores importantes nas empresas que mais dinheiro destinam à publicidade nos meios de comunicação de massas (rádios, jornais, televisões, internet etc.) e, ainda, estão muito bem assentados na maioria das instâncias de decisão, dentro e fora do Estado. Situação que os coloca em uma posição privilegiada para diuturnamente tentar moldar a formação da opinião na sociedade, assim como construir um arcabouço legal que seja amplamente adequado à defesa e reprodução dos seus interesses.

Um bom exemplo do poder de construir normas em seu favor, nos é apresentado pelo Sindicado dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco) ao revelar a diminuição da alíquota média de imposto de renda cobrada dos muito-ricos, entre os anos de 2019 e 2021. Eles detêm uma renda anual declarada, maior do que R$ 4,2 milhões e pagaram uma alíquota de 5,4%, em 2021; menor do que a alíquota de 6% que haviam pago, em 2019.

O sistema tributário brasileiro é extremamente gentil com o andar de cima e permite que eles tenham muitas “rotas de fuga” do pagamento de impostos, como a permissão de transformar a parte mais relevante da sua renda em lucros e dividendos pagos pelas suas próprias empresas e isentar esses ganhos de qualquer tributação. Apenas no ano de 2021, o montante dos valores pagos em lucros e dividendos pelas empresas alcançou a casa dos R$ 555 bilhões... limpinhos de impostos. Enquanto isso, há uma supertributação sobre os baixos salários, ao ponto de quem ganha entre R$ 1.903 e R$ 2.826 pagar uma alíquota de 7,5%; e para aqueles que ganham até R$ 4.664,00, a alíquota é de 22,5%.

Mesmo com essa escancarada desigualdade, sobram “especialistas” que desaconselham qualquer tributação das grandes fortunas, mas omitem a supertributação existente sobre os baixos salários. Os pregadores da seita neoliberal não param de cultuar o Estado mínimo, com limitações rígidas ao gasto público e precarização dos serviços para a sociedade; ao mesmo tempo em que defendem um Estado forte o suficiente para proteger as obscenas riquezas dos muito-ricos e o emaranhado de leis e normas em seu favor.

Sempre em que as lutas sociais ameaçam romper o consenso em favor dos poderosos na sociedade, eles sabem que podem contar com governos e forças policiais decididas a fazer de tudo para impedir qualquer risco aos seus privilégios. E quando algum governo não mostra essa disposição para defendê-los, eles não economizam esforços para desestabilizar e/ou apoiar golpes, como vimos recentemente com o governo de Dilma.

A luta pela hegemonia na sociedade

Foi exatamente para explicar a capacidade de tornar os interesses particulares de uma classe em “interesse geral”, que Gramsci cunhou a expressão hegemonia e a definiu como o processo de “naturalização da dominação dos valores e interesses de uma classe sobre o conjunto da sociedade”. Como os verdadeiros beneficiários são numericamente pequenos, esse grupo só pode exercer a hegemonia se atrair ouros setores sociais para formar o que Gramsci chamou de “bloco hegemônico”, cuja função é justificar a ordem injusta e os arranjos que a sustentam e legitimam. O ápice desta dominação é transformar os argumentos das elites e a lógica de funcionamento da sociedade sobre a qual o seu poder está assentado, em senso comum a “concepção de mundo absorvida acriticamente pelos vários ambientes sociais e culturais nas quais se desenvolvem a individualidade moral”.

É por isso que propostas ainda muito modestas, como a de taxar fundos nos quais apenas os super-ricos, 2.500 pessoas investem, produzem tanta resistência e obriga os funcionários da ordem existente a fazerem todo o tipo de malabarismo para desacreditá-las.

Os privilégios precisam ser expostos

Os momentos em que esse tipo de discussão aparece no debate público são uma grande oportunidade de expor o conjunto dos privilégios que beneficiam os muito-ricos e demonstrar o quanto essas imensas desigualdades nunca foram um desígnio da natureza, mas resultado de um arranjo de poder que serve, sobretudo, aos interesses de 1% da população, os super-ricos. A sua média de renda é de 372 mil euros (quase R$ 1,2 milhão), em paridade de poder de compra e detém mais de um quarto (26,6%) dos ganhos nacionais, segundo o Laboratório das Desigualdades Mundiais.

Se o parâmetro for patrimônio, a desigualdade no Brasil é ainda maior do que a de renda. Em 2021, os 50% mais pobres tinham apenas 0,4% da riqueza brasileira (ativos financeiros e não financeiros, como propriedades imobiliárias), enquanto o 1% mais rico detinha 48,9% da riqueza nacional. É isso mesmo, a metade mais pobre da população brasileira divide apenas 10% do total da renda nacional, ainda de acordo com o Laboratório das Desigualdades Mundiais, dirigido pelo economista francês Thomas Piketty. Se considerarmos apenas as crianças de até 6 anos de idade – considerada a primeira infância, período fundamental para o desenvolvimento das funções cognitivas e motoras –, quase a metade (44,7%) delas estão em situação de pobreza, o que significa que o Brasil conta com 7,8 milhões de crianças em situação de pobreza, e 2,2 em situação de pobreza extrema, de acordo com dados do Data Social de PUC-RS. Esse é o futuro sombrio que a permanência do atual modelo nos reserva.

Precisamos desconstruir o bloco hegemônico

A hegemonia neoliberal aprofundou a concentração de riqueza de forma agressiva e mesmo que haja muitas disparidades dentro desse 1% da população e essas diferenças sejam, ainda maiores, se considerarmos o grupo formado pelos demais 99%, a verdade é que a concentração de renda e patrimônio no topo mais elevado da pirâmide (1%) não para de crescer. Para combater essa dinâmica de hiperconcentração da riqueza nas mãos de tão poucas pessoas é preciso que sejamos capazes de imaginar um projeto político democrático que desconstrua o atual bloco hegemônico, incapaz de oferecer algo que não seja ampliar ainda mais as desigualdades.

Um caminho é encontrar identidades que possam unir os interesses dos 99% da população, mesmo que haja uma imensa diversidade entre os diferentes grupos sociais que compõem essa imensa. O avanço da concentração da riqueza, no entanto, deixa cada vez mais claro que os verdadeiros beneficiários da ordem social atual são basicamente os muito-ricos (1%). Esses, ao se apropriarem de forma exponencial da riqueza e do poder, acabam se distanciando das expectativas e interesse da esmagadora maioria da sociedade, mesmo daqueles setores que ainda reconhecem e se submetem à sua hegemonia. A adesão dos muito-ricos ao bolsonarismo e aos arranjos golpistas para defender os seus interesses é expressão do declínio do consenso neoliberal e da perda da sua capacidade continuar a ser o portador das expectativas da sociedade.

E nesta brecha que a esquerda e o campo democrático podem articular um projeto que possa incorporar os interesses de todos os grupos sociais que estão fadados a perder com a continuidade da atual distopia social. Nas lutas para a construção desse novo bloco histórico, o ponto de unidade é dar uma nova direção à sociedade e transformar as expectativas culturais e materiais da nossa época para tirar a humanidade do beco sem saída neoliberal.

Gerson de Almeida é sociólogo