Para surpresa geral, o candidato da coalizão União pela Pátria, foi o mais votado nas eleições desse domingo, na Argentina. Foto: Divulgação
Para surpresa geral, Sergio Tomás Massa, o candidato da coalizão União pela Pátria, foi o mais votado nas eleições desse domingo, 22 de outubro de 2023, na Argentina – pleito que provavelmente ficará conhecido como um dos mais acirrados desde a redemocratização do país. Ao saber do resultado, o peronista teria feito um desabafo, declarando publicamente: “Este não é um país de merda”. Sua reação inusitada é sinal de que os nervos estão à flor da pele no país vizinho. E não é para menos.
A inflação de 138%, a pobreza que atinge 40% da população e a desvalorização do peso, que derrete em praça pública frente ao dólar, serviram de munição aos seus adversários políticos que, numa campanha de ataques recíprocos, não o pouparam de críticas pelos sofríveis resultados econômicos do governo Fernández. Na condição de ministro da economia, Massa foi atacado por uma situação criada pelo governo passado, que veio se agravando nos últimos anos em razão dos acordos com o FMI.
Depois de haver amargado o terceiro lugar nas eleições primárias de agosto passado, Sergio Massa deu a volta por cima e teve 38,58% dos votos, um resultado inesperado que renovou o ânimo dos seus apoiadores, muitos dos quais já se mostravam preocupados com a possibilidade de o candidato peronista ficar de fora do segundo turno (se segundo turno houvesse).
Javier Milei, o candidato da extrema-direita, da coalizão A Liberdade Avança, é a grande surpresa dessas eleições. Esse fenômeno político não chega a ser uma novidade. No início do século, a Argentina passou por crise econômica, instabilidade política e desconfiança generalizada em relação às instituições democráticas. “Que se vayan todos”, gritavam os hermanos nas ruas de Buenos Aires. O kirchnerismo, versão contemporânea do peronismo, apostou na democracia para superar a crise e, pouco a pouco, se firmar como alternativa de esquerda aos olhos da Nação. Nessas eleições, em circunstâncias adversas, mostrou-se resiliente para chegar ao segundo turno.
Tudo ao contrário do que vem fazendo o agora candidato da extrema-direita. Para capturar o voto de protesto, Milei construiu uma narrativa odiosa contra o Estado e a democracia. A motosserra é o símbolo de sua campanha, toda ela baseada numa retórica vazia de combate à corrupção e destruição da casta política. Como sabemos por experiência própria, isso não passa de blefe. O autoproclamado candidato anarco-libertário é uma dessas figuras bizarras que transitam pela política com “p” minúsculo, sem preocupação autêntica com o país e o seu povo. Seu programa de governo confirma esse descaso.
Em certo sentido, Milei se parece com aqueles mágicos de animação infantil das festas de aniversário. No fundo, ele sabe que é um ilusionista, um farsante que desconfia de seus próprios ardis. Mas isso não o descredencia diante de sua plateia. Ao contrário, é daí que o populismo obtém a sua força. Os banqueiros, os latifundiários e os empresários que agem por trás dele sabem perfeitamente o que querem e o que fazem. De tempos em tempos, esses tipos bizarros reaparecem na cena política. Eles são uma forma de a burguesia terceirizar a política e preservar os seus interesses econômicos. Luís Bonaparte, Mussolini e Franco, apenas para citar alguns exemplos icônicos, são encarnações desses regimes autocráticos, como foi o bonapartismo e as distintas modalidades de fascismos. O que é preocupante no atual estágio da crise sistêmica do capitalismo é que antes de ser exceção, tais regimes parecem que estão se tornando a regra.
Do programa de governo de Milei constam maluquices como o fim do Banco Central e a dolarização da economia. É preciso avisá-lo que um dos maiores problemas da Argentina é precisamente a falta de dólares. Se eleito, Milei pretende romper relações com a China, o principal parceiro comercial do país e, de quebra, promete tirar a Argentina do Mercosul, o que seria uma tragédia para bloco que andou à deriva nos últimos anos. Ele só não diz como essas medidas vão recuperar a combalida economia do país. No capítulo dos Direitos Humanos, Milei consegue ser ainda pior: ele é um negacionista e se recusa a reconhecer que o terrorismo de Estado praticado durante a última ditadura militar levou ao desaparecimento de cerca de 30 mil argentinos.
O segundo turno promete ser disputadíssimo. A Argentina se encontra dividida entre projetos políticos antagônicos. Em política, a soma dos quadrados dos catetos nem sempre é igual ao quadrado da hipotenusa. Massa surpreendeu no primeiro turno e pode perfeitamente virar o jogo no segundo. O clima de “já ganhou” que Milei pretende passar – afirmando que os votos da direitista Patricia Bullrich somados aos seus lhe garantem automaticamente a vitória final – é mais um de seus truques ilusionistas. Para atrair a direita tradicional, Milei terá que se jogar nos braços dos políticos tradicionais. O problema é como fazer isso sem se desmascarar, mostrando ser aquilo que realmente é, ou seja, apenas mais um membro da casta política que ele promete eliminar.
Os obstáculos no caminho de Milei não significam vida fácil para Massa. Sua vitória inesperada no primeiro turno é um trunfo importante, mas insuficiente para vencer no segundo. Além de mostrar as possíveis consequências das maluquices programáticas de Milei, sobretudo para os mais pobres, Massa precisa apresentar uma alternativa credível para tirar o país da crise. Renovar o compromisso democrático e popular nas atuais circunstâncias não é uma tarefa simples, mas é a única saída possível.
Apesar de debilitada, a Argentina tem tudo para evitar um desastre ainda maior. Nesta reta final da campanha, Massa deveria apostar numa aliança com o Brasil, e quem sabe num pacto pela democracia, a integração regional e o desenvolvimento. O Mercosul pode voltar a ser um fator de recuperação econômica regional. A criação de uma moeda única, que já vem sendo estudada pelo bloco, não só aumentaria o comércio entre os países membros, como diminuiria a indesejável dependência do dólar. Ademais, Brasil e Argentina novamente juntos poderiam ser o eixo para a retomada da integração latino-americana soberana e ampliada iniciada no princípio do século pelos governos progressistas. Portanto, pra frente Argentina: o pulso ainda pulsa!
Renato Martins é sociólogo e professor de Ciência Política na Universidade Federal de Integração Latino-Americana (Unila)