Política

Diversas perguntas se tornam obrigatórias frente à possibilidade de retorno da barbárie. O genocídio no Oriente-Médio e nas guerras pelo mundo mostram a barbárie sendo cultivada

Vídeo divulgado por Israel no último dia 28/10. Twitter

A emergência de movimentos de extrema-direita, caracterizados como neofascistas, parece ser uma das cicatrizes mais marcantes do mundo contemporâneo em que vivemos. Diversas perguntas se tornam obrigatórias frente à possibilidade de retorno da barbárie, que acometeu o século 20 e que agora ameaça o século 21, como se suas tragédias não bastassem para impedir uma nova tormenta. Os riscos na atualidade se mostram intensos. O genocídio no Oriente-Médio e nas guerras pelo mundo mostram a barbárie sendo cultivada.

Por certo, muitas são as possibilidades de reflexões a serem tecidas. Em um breve texto não cabe nenhuma pretensão de exaustão, apenas algumas tentativas de respostas, que estimulem a atenção para tema vital para a sobrevivência do mundo, o aprofundamento da democracia e a civilidade entre os seres humanos.

Por que parecem explodir nos mais variados países fenômenos de extrema-direita, com perfil autoritário e mesmo neofascista? Uma tentativa de resposta primordial acena para as condições sociais contemporâneas estimuladoras de tal aparecimento. Que condições são essas? De imediato, emerge o vertiginoso crescimento da desigualdade produzido pelo neoliberalismo. Ele tem sintonia fina com o ambiente que produz os neofascismos. O neoliberalismo não fabrica apenas desigualdades socioeconômicas, conformando privilégios e carências, para usar uma expressão cara à Marilena Chaui, mas cria igualmente intensas desigualdades de poder, em diversos campos sociais, dentre eles: a política e, inclusive, a cultura.

As múltiplas desigualdades fabricam classes e pessoas governadas por interesses de mercado, destituídas de qualquer sentimento de cidadania e de vida comum, comandadas pela lógica capitalista do maior lucro possível, em detrimento de outros indivíduos, destituídos de tudo, pulverizados em situação de extrema instabilidade e sobrevivendo fragilidades as mais comezinhas. Fáceis presas de visões de mundo simplórias e atiçadas de ódios contra inimigos, reais ou imaginários, construídos como responsáveis por sua situação de miséria e penúria.

Como alternativas de mundo não se configuram publicamente, resta aderir, em ambientes de muita fragilidade, aquela existente, em especial quando ela parece se opor, real ou imaginariamente, ao sistema, que lhes impõe tantas carências e desigualdades. O ressentimento funciona aqui como possível sentimento da captura e mobilização.

A conformação de alternativas político-existenciais, entretanto, não se dá em um vazio societário, mas em condições concretas de vida social. Na circunstância contemporânea algumas alternativas críticas ao neoliberalismo têm dificuldades de transitar e se colocar efetivamente em cena, pois alguns agentes político-sociais relevantes tecem cenários de potente teor antipolítico, que dificultam e facilitam presenças e trânsitos.

A mídia, por exemplo, em muitas partes do mundo, publiciza o Estado, a política e os políticos, sem qualquer distinção, como seres abomináveis, como um mal para toda sociedade. Para ela, a alternativa sempre endeusada e positivada é o mercado, as empresas, os empresários e o empreendedorismo, que todos devem almejar para sair da marginalidade e da precariedade, em que o capitalismo neoliberal nos colocou.

A crítica, quase onipresente ao Estado, à política e aos políticos, produz um cenário de representação da antipolítica, para parafrasear a interessante noção de Venício Lima. Nela navegam com facilidade e simpatia todos aqueles que, de modo histriônico ou não, atacam o Estado, a política e os políticos e almejam, em processo aparentemente paradoxal, o poder político, por certo, para submetê-lo a sua tirania, imporem o autoritarismo e destruírem a democracia. O vertiginoso cenário da antipolítica funciona assim como ovo da serpente, como ambiente propício para todos os neofascismos.

Tal ambiente de conjunção perversa, para lembrar o instigante texto de Evelina Dagnino, tem bloqueado alternativas democráticas à situação contemporânea plena de impasses da democracia, que reduzida a sua versão liberal não consegue assegurar cidadania e direitos à população. De um lado, a conjunção estimula os neofascismos, e, de outro, ela inibe os democratas, sejam eles localizados à direita, ao centro e à esquerda. Para os segmentos mais à esquerda, o bloqueio decorre de múltiplo fatores. Eles têm acesso dificultado aos meios de produção e difusão de bens simbólicos, que produzem a realidade à distância, marca na nossa contemporaneidade glocalizada, pois a grande mídia está controlada pelas grandes corporações capitalistas, seja como empresários, seja como patrocinadores. A liberdade de expressão e a pluralidade são constrangidas e restringidas pela conformação dos meios de produção e difusão dos bens simbólicos, que produzem realidades. Desse modo, tais segmentos habitam muito pouco os espaços de visibilidade pública, enquanto a direita e a extrema-direita têm ampla publicidade. Mais que isso, suas mensagens estão em sintonia fina com aspectos importantes da visão de mundo construída cotidianamente pelos grandes meios de produção e difusão dos bens simbólicos.

Para além de tudo isso, outro drama acomete os setores democráticos com destaque para aqueles situados à esquerda. Em uma situação em que cada vez mais a direita e, em especial, a extrema-direita se posiciona abertamente contra a democracia liberal limitada, permitida no capitalismo e solapada pelo neoliberalismo, a extrema-direita não tem nenhum constrangimento em assumiu uma postura antissistema, ainda que seja apenas no discurso e não em seu comportamento efetivo, e uma atitude antidemocrática. Aliás, o fascismo e o nazismo utilizaram o mesmo expediente, envolvendo atitudes pretensamente antissistema e efetivamente antidemocráticas.

Assim, a democracia representativa, dentre outros fatores, tem sua imagem pública desgastada por políticos, que se apossam dela para ganhos pessoais, e potencializada pela mídia, que esquece a corrupção das empresas e denuncia, unilateralmente, a dos políticos. A deterioração pública da democracia tem sido assumida e monopolizada pela extrema-direita em uma pretensa postura antissistema, fácil de ser exercitada, pois não possui nenhum compromisso com o regime democrático e desenvolve um discurso antipolítica, afinado com a grande mídia.

A esquerda parece ter grande dificuldade de combinar de modo perspicaz a necessária crítica ao sistema, expressão do capitalismo neoliberal que ela pretende superar, e a crítica aos limites da democracia liberal, que também precisa ser superada pela confecção de uma democracia ampliada, na qual estado e sociedade sejam democratizados e a cidadania e os direitos assegurados a toda população. O momento da democracia liberal no capitalismo, com suas limitações imanentes, coincidiu com o estado de bem-estar social, desmontado tendencialmente em toda parte pelo neoliberalismo, que restringe cidadania e direitos, aumenta desigualdades e inibe a participação político-social.

A combinação virtuosa da crítica e da atuação contra o sistema capitalista neoliberal e a crítica e atuação aos limites da democracia existente, buscando a superação de ambos, é um dos desafios mais contundentes da esquerda no mundo e no Brasil contemporâneos. A defesa radical da democracia, em um ambiente, neoliberal e fascista, cada vez mais tóxico para ela, não pode significar a paralisia da democracia em sua concepção liberal, nem inibir a imaginação ao possível no capitalismo. A atitude crítica precisa combinar defesa/ampliação da democracia e explicita postura antissistema, para que elas não sejam monopolizadas dos neofascistas e pela barbárie.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)