Política

Lula e as forças, que conseguiu articular, começaram a devolver ao país políticas públicas fundamentais

Foto: PTNacional

O ano de 2023 foi novo para o Brasil. Não estamos no paraíso, mas saímos do inferno, observou Paulo Miguez. Apesar de preferir metáforas laicas, a frase pareceu perspicaz. O inferno fundamentalista-miliciano-militar-neofascista-neoliberal fez morrer 700 mil brasileiros, deixou mais de 30 milhões passando fome, armou bandidos, disseminou a violência, contaminou a sociedade com ódio, corrompeu o congresso nacional com orçamento secreto, instrumentalizou igrejas, debilitou as instituições, envergonhou o país internacionalmente, agrediu a educação e as universidades, negou a ciência, perseguiu a cultura, reprimiu manifestações populares e culturas identitárias, deprimiu a já frágil civilidade no país, atentou cotidianamente contra o que restou de democracia depois do golpe de 2016 e instalou a barbárie. Não se pode esquecer tal herança mais que maldita. A lista poderia ser bem maior, mas essa basta para não deslembrar o triste Brasil, que sobrevivemos.

Qualquer avaliação de 2023 será positiva, sair do inferno, ainda que sem chegar ao paraíso, foi passo vital para os seres humanos, a vida, a cidadania e a democracia. Maravilha estar em um novo ano, novo mundo. Com todas as imensas dificuldades e armadilhas da herança mais que maldita, o novo ano foi esperança, foi possibilidade de reconstrução das nossas frágeis civilidade e democracia. No geral, a esperança deu passos concretos, considerada a corda curta e bamba da correlação de forças, que se impôs no país. Passos para adiante, passos para trás, passos possíveis, passos até surpreendentes, passos tateando um novo país, que desejamos.

A liderança e a sagacidade de Lula, outra vez mais, foram testadas e se mostraram enormes. Com equívocos próprios do humano, ele dirige, com habilidade, uma travessia cheia de armadilhas e riscos. Lidar com uma correlação desfavorável de forças políticas no parlamento nacional, resultante de uma eleição com graves problemas de desigualdade na competição e uso escandaloso da máquina pública, não é nada fácil. Negociar com um congresso, comandado pelo Centrão, empoderado pelo orçamento secreto e corroído, em sua maioria, por condutas nada republicanas, tem sido um exercício que só uma liderança, talhada nas negociações políticas e sindicais, seria capaz de realizar. Isto não significa endossar todas as negociações realizadas, algumas com forte odor, mas ressaltar o difícil negociar em condições de correlação de forças tão complexas e delicadas. Usar tal palavra aqui parece até um escândalo. O jogo, nada delicado, está sendo mais que pesado.

Lula e as forças, que sabiamente conseguiu articular, começaram a devolver ao país políticas públicas fundamentais, que haviam sido desmanteladas. Políticas em relação à fome, vergonha nacional; ao salário-mínimo; à assistência social; à saúde; à educação; à habitação; à cultura; à ciência; ao meio ambiente; aos povos originários; às mulheres; aos negros; aos setores médias; às comunidades LGBTQIA+; à agricultura familiar; às relações internacionais e soberania nacional etc. A lista é extensa. Inevitável a não inclusão de todas as políticas públicas, retomadas e desenvolvidas em menos de um ano. Todas elas e outras políticas públicas, muitas interrompidas de modo irresponsável, fazem o país retornar a um patamar de cuidado básico com sua população, com a reconstrução da democracia e com a reativação do desenvolvimento econômico-social-ambiental-político-cultural, que possa reconstruir um projeto de país para o século XXI. Algumas dessas políticas foram retomadas em uma perspectiva aprimorada e mais enfatizada, com destaque para aquelas voltadas para o meio ambiente e as culturas identitárias, devido a maior atenção contemporânea com tais questões. Outras foram continuadas.

Muitos obstáculos e perigos aconteceram em 2023. Talvez o mais visível deles, a tentativa de golpe de 8 de janeiro, com a invasão e depredação dos palácios dos três poderes da República. A ação rápida do governo e seu controle da situação tiveram o efeito positivo de não só de impedir o golpe, mas de colocar os poderes da República em uma posição de maior compromisso com a democracia, pois suas trajetórias recentes não caminhavam nesse horizonte. Atitude mais ambígua no Congresso, tomado pelo Centrão, com destaque para a Câmara dos Deputados, e mais decidida no Superior Tribunal Federal. Nele se instalou um dos mais expressivos movimentos de defesa da democracia e, principalmente, de punição daqueles que buscaram destruí-la. O enfrentamento às forças antidemocráticas teve no STF um lugar de acolhimento, mas tal movimentação não se espraiou para a sociedade política e sociedade civil como seria urgente e necessário. A afirmação vigorosa da democracia, sem ambiguidades, é vital na atual conjuntura política vivida no país. Não cabe aceitar nenhuma conciliação. Ela degradaria a frágil democracia brasileira.

A rigor, talvez pela gigantesca demanda de reconstrução do país e da institucionalidade, o governo, que teve competência política e institucional para iniciar a gigantesca tarefa, não teve folego para colocar, de modo expressivo, a democracia e seu aprofundamento no centro da agenda política nacional. A imperiosa necessidade política de atender às demandas infinitas e urgentes fez tal agenda oscilar entre urgências. União e reconstrução não se impuseram para além do mote escolhido. União e reconstrução para que e para quem ficaram sem respostas indubitáveis para a sociedade. Caminhamos na reconstrução, mas a união não pode se dar em torno de um ideal etéreo, belo e vazio. A união deve significar a constituição efetiva de uma frente e um imaginário firmemente democráticos. O tema da democracia e de sua ampliação adquire enorme importância como aglutinador programático da atuação do governo. O novo ano reivindica do governo um programa político mais articulado, que dê uma marca nova e potente em 2024, ano de desafio eleitoral.

O contexto desafiador perpassa todo governo e toda sociedade. Em suas diferenciadas áreas, ele delimita o possível e exige o impossível para enfrentar e vencer problemas detectados e o maior deles: a articulação em torno da democracia. Não uma democracia acanhada e frágil como a brasileira, mas uma democracia em movimento, que seja capaz de desenvolver um processo de ampliação, que perpasse todos os espaços da sociedade e enfrente o autoritarismo em todas as suas vertentes. Uma democracia que assegure a todos os brasileiros, direitos e cidadania plena, que destrua privilégios em uma sociedade carregada de privilegiados. Enfim, uma dinâmica político-cultural que democratize o estado, hoje muito capturado pelos interesses dominantes, e a sociedade, com redutos de autoritarismo que precisam ser enfrentados. Enfim, uma democracia como via para um Brasil melhor.

Todo governo deveria ser orientado pela perspectiva democratizante, seja em suas atitudes, seja em suas formulações. Sem tal compromisso, o governo perde coerência e força política. Como fazer isso em um governo possível de tão amplas coalizões? Nenhuma resposta simples pode ser satisfatória. Se a composição amplíssima do governo dificulta, quando não inviabiliza, esperar atuação e compromissos democráticos de alguns setores, as áreas sob direção das forças democráticas passam a ter um papel vital no bom desempenho e na avaliação da gestão Lula. Elas são instadas, junto com o presidente, a conformar um projeto democrático de país, que enfrente a disputa político-cultural em curso e ganhe vigorosamente a sociedade para a consolidação da democracia ampliada no Brasil.

Para a disputa político-cultural da democracia contra o autoritarismo todas as áreas de governo apresentam-se como fundamentais. Entretanto, algumas por sua conformação específicas tornam-se essenciais. Difícil tratar de todas elas. Alguns ministérios estão perdidos nessa perspectiva. O Ministério de Comunicação é um deles. Outros são solicitados a atuar vivamente na disputa político-cultural democrática. Recorro apenas aos que acompanho com mais constância e informação. Na educação, a articulação ativa e virtuosa dos diferentes níveis de ensino torna-se fundamental para a definição de um programa democrático para a educação nacional, vital para superar os privilégios e as carências, materiais e simbólicas, que corroem a sociedade brasileira e interditam, no país, a democracia e seu aprofundamento, para a disputa de valores e consolidação de uma democracia ampliada, laica, plural, diversa e criativa, sem imposições fundamentalistas e autoritárias.

Na cultura se vive hoje uma situação inusitada: o tema-problema central não é agora a (permanente) falta de recursos. Como nunca existem recursos na cultura. Eles são bem-vindos e precisam ser mantidos e consolidados. Mas, o dinheiro tem seu fetichismo e suas armadilhas. Duas delas, dentre muitas possíveis, invadem a agenda: a necessidade de eficiente execução orçamentária, exigindo todo o empenho de um ministério que foi destroçado, e a onipresença do dinheiro, tomando todo tempo e espaço do governo e do campo cultural, dificultando o desenvolvimento de efetivas políticas culturais. A educação, a cultura e todas as áreas vivem intensos desafios a serem bem equacionados. O eixo orientador dessas e de outras políticas deve estar afinado com a questão central do presente e do futuro brasileiro: o desenvolvimento, consolidação e ampliação de uma democracia efetiva para todos os brasileiros, acabando privilégios e carências que impedem sua vida no país.

Mas colocar e consolidar a democracia e sua permanente ampliação na centralidade da disputa política em curso no país não depende, nem pode ser tarefa apenas do governo democrático, em especial, devido aos significativos limites apontados. O governo tem papel fundamental no posicionamento, mas os partidos democráticos, com destaque aos de esquerda, e os movimentos progressistas e populares têm obrigação política de atuar de modo decisivo. Infelizmente o que se viu em 2023 esteve distante das necessidades impostas pela conjuntura política nacional. Embates fundamentais não foram bem travados, a exemplo dos juros extorsivos do Banco Central e mesmo das punições aos envolvidos no atentado golpista.

Para se contrapor aos ataques da extrema-direita, à sabotagem de setores dominantes, à manipulação da maior parte da mídia, ao déficit republicano vigente no parlamento, ao fundamentalismo religioso-político, aos atos autoritários em toda sociedade, ao conservadorismo, dentre outros, o governo necessita adquirir poder, em uma dinâmica democrática. Para isso a mobilização dos partidos e movimentos democrático-progressistas em toda sociedade, nas ruas e nas redes, é imprescindível. Por certo, tal deficiência é o maior perigo para 2024 e o futuro da democracia no Brasil. Não entender que a disputa política agora não se esgota nas eleições é um risco enorme para a democracia no país. Hoje, a disputa político-cultural a acontece cotidianamente, pois agora a extrema-direita encontra-se mobilizada no dia a dia. Esse dado novo não pode ser nunca esquecido.

O novo ano trás novos desafios para as forças democráticas no país. Eles de modo algum estão restritos às eleições municipais. Eles estão presentes nas disputas político-culturais cotidianas vividas no país. O retorno das políticas públicas democráticas está sendo fundamental para o povo brasileiro. Mas as narrativas sobre eles têm que ser trabalhadas. As políticas públicas precisar de narrativas que as tornam visíveis para toda sociedade e não apenas para os setores sociais envolvidos nelas. As políticas públicas demandam e necessitam de narrativas que as explicitem para a sociedade e apontem seus vínculos com o projeto político-cultural da democracia, que se pretende construir no Brasil. Além de comunicar melhor as políticas públicas atuais e as novas, tais políticas, que derivam de reivindicações genuínas da população brasileira, precisam ter a participação ativa dela na sua imaginação e implementação. Ou seja, a mobilização popular em torno do projeto e das políticas públicas, decorrentes dele, passam a ser condições básicas para que o governo possa deslanchar no ano de 2024. Ela é vital para mudar a correlação de força vigente no país e para que o governo possa, junto com a sociedade, aprofundar a democracia no Brasil.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)