Sociedade

No século XXI, o movimento migratório tem se confrontado com medidas estruturantes para o funcionamento exitoso das novas relações produtivas e reprodutivas do capital.

Por Mariangela Nascimento

O fenômeno migratório está no cerne das transformações mundiais do século XXI, milhões de pessoas se deslocam pelo planeta pelas mais variadas motivações, sendo a maioria de trabalhadores e trabalhadoras. Para compreender essa realidade, é preciso levar em conta os acontecimentos globais, as novas composições geopolíticas, as mudanças no mundo do trabalho e do processo produtivo e o deslocamento da força de trabalho no mundo globalizado.

Esses acontecimentos têm ampliado as políticas de restrições de países desenvolvidos que dificultam a entrada de migrantes em seus territórios. Tais medidas são sustentadas por uma noção de direito que passa a fundamentar e justificar tais políticas na sua capacidade de fazer uso da força e manter sobre o seu controle os resultados políticos de qualquer acontecimento no âmbito global.

Isso intensifica o processo de exclusão, em que os meios de sujeição revelam as novas práticas de exploração e coerção. A precarização do trabalho, o aumento do desemprego com a informatização e a automação, a suspensão do acesso aos direitos e a falta de proteção social atingem duramente a população migrante.

Concordamos com Sandro Mezzadra quando afirma que a inclusão social do migrante acaba se tornando um dispositivo de sujeição que conduz à reprodução de regimes de trabalho caracterizados por superexploração. Ou seja, encontra-se incluído na ordem jurídica unicamente sob a forma de sua exclusão. A inclusão do excluído como tal é a possibilidade de anular radicalmente todo o estatuto jurídico do indivíduo, produzindo um ser juridicamente inominável e inclassificável, como afirma Giorgio Agambem.

No século XXI, o movimento migratório tem se confrontado com medidas estruturantes para o funcionamento exitoso das novas relações produtivas e reprodutivas do capital. Entretanto, são essas medidas que trazem grandes desafios à produção capitalista em escala global ao ter que se defrontar com resistência e conflitos advindos do movimento migratório.

É nesse contexto que o crescente fluxo migratório tem desconfigurado o sentido de “pertença”, o sentimento de pertencer a um lugar, a uma comunidade política, o que tem provocado repercussão sobre a configuração objetiva da cidadania, atuando, desse modo, para o enfraquecimento da sua circunscrição nacional. Isso significa que os movimentos migratórios, ao se expandirem em um contexto de transformações do processo produtivo e do recrudescimento da perda de direitos, afetam determinado modelo de cidadania, aquele fundamentado na cultura nacional, que elegeu o indivíduo como cidadão portador de direitos. O\a migrante torna-se aquele\a que melhor expressa as contradições e o enfraquecimento dos valores que legitimaram historicamente a relação Estado e sociedade.

Nesse caso, o/a migrante se revela protagonista ativo\a capaz não apenas de ultrapassar as restrições impostas pelas políticas de controle da mobilidade humana, mas também de trazer desafios à tradicional configuração da cidadania quando confrontada com a realidade migratória. Mas isso à custa de se tornar a população mais vulnerável à crise, quando o seu corpo é diretamente afetado e exposto a todo tipo de sofrimento e degradação.

É importante lembrar que a cidadania é uma condição eminentemente política, que não está necessariamente ligada a valores universais, mas a decisões políticas. Um determinado governo, por exemplo, pode modificar radicalmente as prioridades no que diz respeito aos direitos do cidadão. Os direitos de cidadania não são direitos universais, são direitos específicos dos membros de um determinado Estado, de uma determinada ordem jurídico-política. Entretanto, em muitos casos, os direitos do cidadão coincidem com e se fundamentam nos direitos humanos.

Os direitos específicos são reconhecidos e garantidos às pessoas que estão vinculadas a uma comunidade política, essa é a condição para serem reconhecidas como cidadãs, ou seja, são reconhecidas pelo Estado e estão sob a sua proteção, por ser o garantidor dos direitos. Entretanto, o que defendemos é que uma comunidade política deve necessariamente assumir a responsabilidade moral para com as pessoas em geral, consideradas cidadãs ou não. É importante salientar que os direitos humanos são indivisíveis, universais, inalienáveis e têm sua fonte primária e definitiva na nossa humanidade. Portanto, os direitos humanos não têm fronteiras nacionais. São direitos que superam as fronteiras jurídicas e a soberania dos Estados, a cidadania tem fronteiras.

A identificação dos direitos humanos com o Estado-nação fez com que eles passassem a existir apenas como direitos nacionais. A convergência entre os direitos humanos e os direitos provenientes da condição de cidadania se fundamenta no pressuposto implícito de que o padrão de normalidade é a distribuição das pessoas entre os Estados que lhes conferem uma nacionalidade.

Essa situação demonstra que não foi suficiente para o indivíduo migrante o fato de pertencer à mesma espécie humana como condição para obter o status de cidadania. A cidadania é o pressuposto jurídico-legal para garantir os direitos fundamentais às pessoas, visto que, sem essa garantia por parte do Estado, que considera a pessoa como sua parte integrante, não é possível reivindicar tais direitos.

Desde o aparecimento dos direitos humanos, o embate cidadania e direitos humanos tem vitimizado pessoas, que são separadas e classificadas perante as leis, como indivíduos que não pertencem a uma determinada comunidade política e, por isso, são destituídos da condição cidadã, ou seja, são aqueles que não estão sob a proteção do Estado, que foram excluídos do seu lugar de pertencimento no mundo e não são acolhidos de modo jurídico-legal por um Estado-nação. É o caso dos apátridas, ou migrantes não documentados/as.

Entretanto, é possível pensar a cidadania para além do status jurídico-legal, ou seja, circunscrita em uma nacionalidade. Isso é possível quando consideramos o seu aporte teórico e prático a partir da dimensão subjetiva da qual a migração é uma rica fonte. É nas práticas tipicamente humanas, diz Sandro Mezzadra, de revoltar-se diante da adversidade, que se fundamenta a universalidade dos direitos humanos, o que possibilita o pertencimento mais amplo, estabelecendo um vínculo real.

Essa realidade problematiza e exige um modelo não nacional de cidadania, que garanta, efetivamente, a universalidade dos direitos humanos.

O paradoxo da relação entre cidadania e direitos humanos é também enunciado pela crise do Estado social e torna a posição laboral um critério inclusivo de acesso à cidadania, mesmo que o status de cidadania seja restritivo e não passe de um dispositivo de sujeição. Muitas vezes, a inserção da força de trabalho migrante no mercado de trabalho torna-se a única garantia de acesso a alguns direitos, dentro das condições provenientes da categoria de migrante requeridas pelo país de destino. Nesse caso, a codificação da pertença com base nacional, lembra Mezzadra, passa a operar circunstancialmente atendendo às exigências laborais locais.

Enfim, como definiu Hannah Arendt, a fonte da universalidade dos direitos humanos encontra-se nas práticas tipicamente humanas de construção do mundo comum, o que confere o direito a qualquer pessoa de pertencer a uma comunidade política disposta e capaz de lhe garantir qualquer direito. A nossa humanidade, segundo ela, é o critério que fundamenta a universalidade dos direitos humanos, é ele que vai atribuir o status de cidadania à pessoa migrante, possibilitando o acesso aos direitos, independentemente da cultura nacional, desvinculando-os do arbítrio do Estado, mas tendo o Estado como o responsável por garantir tais direitos. Esse entendimento problematiza e exige um modelo não nacional de cidadania, que garanta e redefina a universalidade dos direitos humanos como critério de acessibilidade ao status de cidadania, resguardando a pessoa como sujeito de direitos.

Retirando da cidadania a sua inscrição em uma nacionalidade, podemos pensar em uma cidadania universal, por que não? Vivemos em um século em que o fenômeno migratório é crescente, o mundo globalizado colocou em rede um movimento de pessoas que lutam contra as adversidades, vão em busca de libertação e de seu direito à vida.

Portanto, é necessário ressignificar o sujeito de direitos muito além do lugar de inclusão e exclusão, do legal e ilegal, podendo assim redirecionar a fonte normativa e valorativa de cidadania de forma mais abrangente que o campo nacional, a fim de que os direitos humanos estejam sincronizados com os direitos nacionais.

Podemos, assim, afirmar que o sentimento de humanidade é universalizador na medida em que é capaz de impulsionar a ação libertadora diante da adversidade. Essa é a base das forças capazes de promover transformações no tecido da cidadania, podendo, a partir daí, autorizar-nos a falar de direitos universais e humanos.

Esse é o grande desafio para o Estado no mundo globalizado.

Referências

-AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2007.

________. Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: EditoraUFMG,2007.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo. Ed. Forense Universitária, 1987.

______________Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989

BENHABIB, Seyla. The Rights of Others: Aliens, Residents and Citizens. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

COCCO, Giuseppe M. KorpoBraz-uma política dos corpos. Rio de Janeiro,Mauad Editora,2014. ________. Trabalho e Cidadania - Produção e direitos na era da globalização. São Paulo:Cortez Editora, 2000.

CORSINI, Leonora F. Êxodo Constituinte: multidão, democracia e migrações. Tese. Rio de Janeiro: Escola de Serviço Social/UFRJ,2007

FERREIRA, Carlos E. R.; VIEIRA, Giuliana D. - A influência da esquerda e/ou do socialismo para a afirmação dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e ideias para uma nova agenda, a avant-garde, dos Direitos Humanos. Revista Lugar Comum, Rio de Janeiro,2011

FRATESCHI, Yara. Universalismo interativo e mentalidade alargada em Seyla Benhabib: apropriação e crítica de Hannah Arendt. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/view/1677-2954.2014v13n2p363

MEZZADRA, Sandro. Direito de Fuga – migrações, cidadania e globalização. EdUnipop,PT, 2012.

________________Multiplicação das fronteiras e práticas de mobilidade. In Dossiê: “Migrações e Fronteiras”- revista REMHU – Brasília, vol XXIII,nº44., 2015.

NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro:Editora Record,2006

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Ed. USP, 1998

Mariangela Nascimento é professora titular da UFBA, coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do Núcleo de Apoio a Migrantes e Refugiados da Universidade Federal da Bahia