Especial

O leitor sabe, mas não custa repetir: eu e Carlos Navarro combinamos localizar Theodomiro em São Paulo, de modo a não permitir a localização dele, evitar dar pistas à repressão.

Marco Antônio, Rosa e Theodomiro Romeiro dos Santos chegaram em Brasília por volta das 9 horas do dia 30 de outubro de 1979.

Sem pressa, circularam pela capital, pararam numa banca de revistas.

Compraram o Estadão, desceram do carro em frente ao gramado do Congresso Nacional.

Logo à primeira página, a chamada noticia a presença de Theomiro em São Paulo.

Na contracapa, matéria de página dava conta dos detalhes da fuga, os dados por Theodomiro na fita entregue a mim, no Rio de Janeiro.

O leitor sabe, mas não custa repetir: eu e Carlos Navarro combinamos localizar Theodomiro em São Paulo, de modo a não permitir a localização dele, evitar dar pistas à repressão.

Preocupação nossa e do velho Júlio de Mesquita Neto – na conversa com Navarrinho havia recomendado cuidados para não dar quaisquer indícios de onde Theodomiro estaria.

Os três respiraram, aliviados.

Tudo parecia caminhar de acordo com o escript.

O dia prometia.

Os três sentiam: viviam aquelas horas capazes de condensar anos.

Sossegados, nem parecia viverem momentos tão arriscados.

Ali pelo meio do dia seguiram para o carro.

Apenas Marco Antônio e Theodomiro.

Rosa iria para o aeroporto, de volta para o Rio de Janeiro.

Planejando a operação

Os dois seguiram para a Quadra 202, Norte, apartamento do deputado Airton Soares.

Havia sido marcada reunião para o meio-dia.

Cabe explicação.

O horário tinha a ver com o deputado Francisco Pinto. Uma rotina curiosa, a de Chico Pinto. Curiosa ou diferente, como se queira.

Cultivava um gosto danado por varar madrugadas, conversando. Hábito talvez de acordo com o espírito conspirativo dele.

Se era pra conspirar, melhor fosse pelas madrugadas, quando os riscos são menores. Ao menos em tese.

Não poucas vezes, me vi saindo de reuniões com ele com o sol já despontando, depois de noites inteiras consumidas em articulações políticas em Salvador.

Fumante inveterado, creio já tenha dito. Acendia um cigarro no outro. Sempre o enfiava numa piteira. Iludia-se acreditando fosse o artifício um modo de diminuir os malefícios do hábito.

Dormia invariavelmente na parte da manhã. O dia se iniciava após o meio-dia. Ganhava intensidade ali pelas 14 horas.

Aquele dia 30 de outubro se iniciaria mais cedo.

Muito provável tenha sido ele a marcar a reunião no apartamento de Airton Soares para o meio-dia.

Em Brasília, era ele o comandante da operação.

Atentos, Marco Antônio, Theodomiro e Airton Soares, depois dos cumprimentos, ouviram as explicações dele sobre como tudo aconteceria.

Parecia um comandante militar.

De alguma forma, uma operação com características militares, onde nada podia falhar. Era uma vida em jogo. Falhassem, e eles seriam os responsáveis.

Chico chamava pra si a responsabilidade: papel de comandante.

Um pouco antes das 14 horas, seguiram para a Nunciatura Apostólica.

No capítulo anterior, explicávamos a razão da escolha da Nunciatura: consideravam impossível à Igreja Católica recusar abrigo a um perseguido político da ditadura.

Theodomiro vestia um paletó branco. Na lapela, luzia uma pequena cruz. Um padre perfeito. Houvesse dúvida, e ela seria dissipada com a Bíblia sobraçada por ele.

Piedoso sacerdote, zeloso seguidor das Sagradas Escrituras.

Que ninguém duvidasse.

Comandante Chico Pinto havia determinado tudo.

Airton Soares iria com o carro dele à frente: o guia.

No carro do meio, Marco Antônio e Theodomiro.

Na retaguarda, Chico Pinto, dirigindo o imponente Dodge 1970, carro com o qual andava por Brasília, de estima antiga, pouco importando o alto consumo de gasolina.

Airton Soares, o guia, passou em frente ao portão da Nunciatura.

Deu sinal verde: restava escancarado.

Felizmente.

Marco Antônio parou um pouco atrás, e Theodomiro desceu.

Chico Pinto e Airton Soares estacionaram os carros um pouco adiante, de modo a poderem ver a entrada de Theodomiro na embaixada e se certificarem não ter ocorrido nenhum problema.

Marco Antônio se apartou deles.

Levou o carro ao Congresso Nacional.

De lá, o automóvel seria levado ao Rio de Janeiro pelo motorista de Airton Soares.

Ele, voltaria de avião.

Aliviado, quase orgulhoso.

Certo de ter cumprido bem a tarefa.

A Operação Albatroz, um sucesso.

Nem imaginava quanta água ainda iria correr debaixo da ponte.

Sacerdote na embaixada

Theodomiro sobraçando piedosamente a Bíblia, homem de fé, foi entrando na Nunciatura, seguro de si.

O porteiro, não obstante de modo cortês, atencioso, o barrou.

Perguntou por perguntar, pois sabia a resposta, indicada pela cruz na lapela e pelas Sagradas Escrituras carregadas por ele:

O senhor é sacerdote?

_Sim, sou – Theodomiro respondeu, em tom cerimonioso.

_Às suas ordens – disse o porteiro.

Theodomiro, muito calmamente, tomando sempre o cuidado de não elevar a voz, disse da pretensão dele:

_Eu queria falar com o Núncio Apostólico, dom Carmine Rocco.

O porteiro, respeitosamente, disse ter de encaminhá-lo à irmã Zélia, secretária do Núncio.

Atendido por Zélia, pacientemente Theodomiro voltou a dizer da pretensão:

_Boa tarde, estou querendo falar com dom Carmine Rocco.

A mesma pergunta do porteiro:

_O senhor é sacerdote?

A mesma resposta:

_Sim, sou.

Quase deixa escapar um claro, mas não o fez.

Naquelas preliminares, todo cuidado era pouco.

Irmã Zélia, atenciosa, gentil, quase se desculpando:

_O Núncio está descansando.

_Sim, eu compreendo – disse Theodomiro.

Irmã Zélia:

_O senhor se incomodaria de esperar?

Por segundos Theodomiro pensou, eu agora tenho todo o tempo do mundo, para logo responder:

_De modo algum.

Sabia como lidar com a lgreja.

Muito jovem, em Natal, onde nasceu, estivera ligado à militância nas hostes católicas.

Falava firme, mas sempre de modo educado, quase deixando trair alguma humildade. Igreja cultiva isso, malgrado nem sempre com sinceridade.

Irmã Zélia o encaminha a uma sala à esquerda de quem entra, onde Theodomiro se acomodou.

Chico Pinto e Airton Soares, ao perceberem Theodomiro em segurança dentro da Nunciatura, entram também.

Dizem ao porteiro terem sido chamados por dom Carmine Rocco.

Portas abertas.

Porteiro nenhum iria barrar dois deputados.

Ainda mais chamados pelo Núncio.

Entraram.

E logo foram interpelados por irmã Zélia, educadamente:

_O que os senhores desejam? Estou aqui para atendê-los.

Chico Pinto se adiantou:

_Nós viemos chamados pelo Núncio. Ele quer conversar conosco.

Zelosa, atenta, Zélia reagiu, um pouco ressabiada:

_Estranho, muito estranho. Não há qualquer audiência marcada para hoje à tarde com o Núncio.

Airton Soares insistiu:

_Estamos aqui por que fomos chamados.

Zélia, desconfiada.

_Que diabo era aquilo? – pensou murmurando.

De repente, de súbito, ganha as escadas à frente dela.

Sobe para o local onde deviam ficar os aposentos do Núncio.

Primeiro, procura o monsenhor Renato Rafaelo Martino, primeiro-secretário da Nunciatura, e fala sobre a situação, acerca das dúvidas dela.

O monsenhor, preocupado, vai na direção dos dois parlamentares.

Cumprimenta-os, e quase em tom de confidência, fala das apreensões dele:

_É, esta tarde está estranha, muito estranha.

Pinto, assim como quem nada quer, pergunta:

_ Por que, monsenhor?

O religioso, num tom calmo, parecia de fato estranhar o quadro à frente dele:

_Ora, senhores deputados, raciocinem comigo: vejam só, logo ali, há um padre querendo falar com o Núncio. Ninguém mandou chamá-lo.

_Agora, os senhores, com quem não foi marcada nenhuma audiência, aparecem e dizem terem sido chamados aqui pelo Núncio.

_O que está acontecendo?

Bafafá na Nunciatura

Chico Pinto, matreiro, esperto, vindo da escola do velho PSD, pensou rápido: melhor começar devagar, devagarinho a jogar o jogo da verdade.

Com a voz baixa, falava sempre assim, quase obrigando o interlocutor a aguçar a atenção para ouvi-lo, de modo pausado, sem atropelar as palavras, escandindo-as bem, mexendo com o cigarro enfiado na piteira, a ajudá-lo no raciocínio, mania cultivada ao longo da vida, começou de pronto a se acercar do assunto central:

_Gozado, monsenhor. Eu também estou com essa impressão, achando tudo estranho.

_Como assim? – reagiu Martino.

Chico Pinto foi direto ao ponto:

_Será que tudo isso não tem a ver com aquele rapaz que fugiu da prisão na Bahia?

O monsenhor saltou.

Até ali sereno, diplomático, sobressaltou-se.

As faces e a calva, tomadas de vermelhidão súbita.

Num repente, levantou-se, e sem responder a Pinto disparou em direção à sala onde estava Theodomiro:

_Quem é o senhor? – perguntou, em tom ligeiramente áspero.

_Eu sou Theodomiro Romeiro dos Santos.

Faces e calva ainda mais vermelhas, o monsenhor reagiu de modo duro, incisivo:

_O senhor vai ter de sair daqui imediatamente!

Escandiu as sílabas, e elevou o tom:

_I-me-di-a-ta-men-te!

Theodomiro, calmamente, calma contida jamais deixada de lado, responde serenamente, sem alterar a voz:

_A única coisa que eu não posso fazer, monsenhor, é sair daqui.

O monsenhor, puto dentro das calças.

E da batina.

Apoplético.

Pinto, observando o clima, cada vez mais tenso.

Deu um estalo: imprensa.

Sem vacilar, foi à Câmara Federal, revelou tudo aos jornalistas.

De súbito, um batalhão de jornalistas invade a Nunciatura.

Atrás de Theodomiro.

Quer pauta melhor?

Um fuzuê: repórteres chegando de todo lugar.

Falar o nome de Theodomiro bastava.

Pinto falou.

Moscas atrás de mel.

O monsenhor se viu perdido, e cada vez mais furioso.

Gritava sem parar, inutilmente:

_Fora, fora, todos fora daqui!

Os jornalistas, nem aí.

Tal reação dera a eles a certeza da presença de Theodomiro na Nunciatura.

Gritava mais, o monsenhor, uma fúria só, inútil:

_Vocês não têm o direito de invadir assim a Nunciatura!

Ele não havia entendido ainda o quadro formado ali.

A gritaria dele, de pouco adiantava.

Daqui não saio, daqui ninguém me tira – era o pensamento de cada um daqueles jornalistas.

Uma pauta daquelas, como não aproveitar?

O monsenhor podia gritar quanto quisesse.

Dali não sairiam.

Impasse

Chico Pinto e Soares agora queriam ajudar a apagar o incêndio.

Chico dirige-se a Martino:

_Monsenhor, só há um jeito de sair desse impasse: ter uma conversa com dom Carmine Rocco.

Este, àquela altura, certamente já levantando-se da confortável sesta, lavando o rosto, acordado pela balbúrdia nos domínios dele.

Incomodado.

Mal-humorado.

Rocco não era flor que se cheire.

Em nenhuma situação.

Dele se dizia ser de um tempo na Itália que ou a pessoa era fascista ou comunista.

Nunca foi comunista.

Nunca teve qualquer aproximação com quaisquer setores da esquerda.

Por ele, não passava qualquer aragem progressista.

Jeito não tinha: era preciso conversar.

Concluiu logo após o relato de dom Martino.

Chama os dois parlamentares ao gabinete dele.

Recebe-os de cara amarrada.

A conversa começa mal.

É categórico:

_Vou botar esse rapaz pra fora!

_Não há o que conversar!

Foi além:

_A Igreja não pode proteger um assassino!

Pinto e Soares estupefatos.

Airton Soares mais.

O primeiro a reagir:

_Vossa Eminência sabe perfeitamente: nas condições do Brasil de hoje, ele pode vir a ser assassinado se sair daqui.

Dom Carmine retruca:

_Não há o que discutir! Não vamos proteger um assassino!

Soares não era tão calmo como Pinto.

Ou, quem sabe, não tivesse o traquejo político de Pinto, temperado pela escola da vida, do PSD, do MDB, do PMDB.

A rigor, Soares era do tipo estourado.

Do que não levava desaforo pra casa.

Estilo útil, às vezes.

Outras, nem tanto.

Não gostou nem um pouquinho da maneira como o Núncio abriu a conversa.

_Proteger um assassino? – repetiu murmurando, entre dentes.

_Será que ele sabia o que era uma ditadura? – perguntava-se, ainda murmurando.

_Quantos ela havia prendido, torturado, matado, quantas pessoas havia feito sumir, depois de assassiná-las de modo atroz?

Nada, não devia saber.

Ou então era acumpliciado com tais atrocidades.

Não, não e não, Airton Soares não gostou do que ouviu, e reagiu irritado, elevando o tom de voz:

_Isso é um absurdo, uma estupidez!

_Ao senhor, caberia uma posição mais humana, mais cristã. E menos intransigente!

O monsenhor, ao lado, ouvindo, incrédulo com a ousadia.

O Núncio, mais ainda.

Príncipes da Igreja, quaisquer príncipes, não gostam de ser contrariados.

Acostumados a reverências, a beija-mãos.

O Núncio queria de todo modo expulsar Theodomiro da embaixada, não importando as consequências.

Tudo caminhava para um perigoso impasse.

Referências

JOSÉ, Emiliano. O cão morde a noite / Emiliano José. – Salvador : EDUFBA, 2020. 426 p.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros