Política

Hoje vivemos um novo ciclo de guerras, cada vez mais assustadoras. Sempre com a mão da grande potência do Norte

Em 1973, um livro editado em Paris no original russo abalou a opinião pública mundial. Trata-se de Arquipélago Gulag, de Alexandre Soljenítsin, um relato baseado em documentos sobre episódios ocorridos nas ilhas do complexo de campos de trabalho forçado, da ex-URSS. Gulag é o acrônimo de “Administração Geral dos Campos”, locais em que padeceram vários milhões de prisioneiros. No Brasil, a tradução da impactante publicação teve três impressões em poucos meses. O fenômeno se espalhou nos dois hemisférios, em um contexto acirrado pela Guerra Fria. A repercussão da portentosa obra de 600 páginas foi um estridente apito de alerta sobre o porvir. A opção burocrática pelo socialismo autoritário, ao revés do socialismo democrático, cobraria ainda um altíssimo preço.

O calhamaço, “onde não há personagens imaginários, nem acontecimentos imaginários”, abre com um comovente registro de sofrimento. O escritor e seus companheiros de infortúnio, em 1949, veem na revista da Academia de Ciências a notícia acerca de uma escavação na bacia do rio Kolimá que encontrou, congelados sob a camada glacial, espécimes de fauna fossilizada com milênios de idade. “Os peixes, ou tritões (semelhantes a lagartos), conservavam-se tão frescos que as pessoas presentes quebravam o gelo e comiam-nos com prazer”, descrevia a curta matéria. O destaque não era a carne conservada em uma eternidade, mas a reação de humanos desnutridos em um achado arqueológico.

“Compreendemos o sentido da nota porque as ‘pessoas presentes’ éramos nós próprios, a legião de zeks (presos em situação análoga à escravidão) que podia comer os tritões ‘com prazer’ para saciar a fome”. A fome tinha pressa, os interesses da ictiologia esperariam. O Prêmio Nobel de Literatura não teme as memórias; transmuda-as em uma arma de combate. Diz o provérbio: quem mexe no passado perde um olho; quem não mexe perde os dois. Com a surpreendente dissolução da “pátria dos povos”, os encarcerados e os carcereiros de outrora não seriam mais interpretados e sequer vistos. A utopia e a revolução traída foram fundidas no preconceito antissocialista - e esquecidas.

De lá para cá, muita água passou sob a ponte. Tivemos a Revolução Chinesa (1946-1949), a Guerra da Coreia (1950-1953), a Revolução Cubana (1953-1959), a Guerra do Vietnã (1959-1975), a Guerra dos Balcãs pós- Tito (1991-1996), a Guerra do Afeganistão (2001-2021), a Guerra do Iraque (2003-2011). Esses são alguns dos eventos marcantes depois do fim da Segunda Guerra Mundial (1945) e o surpreendente esfacelamento da União das Repúblicas Soviéticas Socialistas (1991). Isso, para não mencionar os golpes civis-militares na América Latina, no doloroso século XX.

Os Estados Unidos, direta ou indiretamente, participaram dos conflitos. Na China, com aporte de US$ 4,5 bilhões na maior parte em auxílio militar, enviando 90 mil fuzileiros navais estadunidenses para o território chinês. Tudo em nome do “mundo livre” contra a ameaça do comunismo, como se o capitalismo e o livre mercado convivessem (numa boa) com a democracia e, mesmo, fossem o seu guardião. Nunca foram, exceto nas fake news do conservadorismo. Quanto aos massacres no continente africano, entram na conta do colonialismo europeu, a exemplo de Ruanda (1990-1994). A “sociologia das elites” diz que a história é um cemitério de aristocracias. Sim, e também um rio que transborda sangue dos inocentes jogados em covas coletivas, sem uma identificação pessoal.

Conforme Jeffrey Sachs, assessor dos últimos três secretários-gerais da ONU, é difícil conter o apetite do Complexo Industrial Militar dos Estados Unidos. Joe Biden nem tentou uma ponderação. Somente presidentes excepcionais conseguiriam; não é o caso. “John Kennedy resolveu brilhantemente a Crise dos Mísseis Cubanos, em 1962, evitando por pouco um Armagedon nuclear ao enfrentar seus próprios conselheiros beligerantes para chegar a uma solução pacífica com a União Soviética. No ano seguinte, negociou com sucesso o Acordo de Proibição Parcial de Testes Nucleares com a União Soviética, apesar das objeções do Pentágono, e depois obteve a ratificação pelo Senado”. Alguns analistas creem que seu assassinato foi obra de renegados da CIA descontentes com a paz.

Hoje vivemos um novo ciclo de guerras, cada vez mais assustadoras. Sempre com a mão da grande potência do Norte. Vide a Guerra da OTAN/Ucrânia versus Rússia e, agora, o aval ao genocídio cometido pelo governo ultradireitista de Israel contra o povo palestino na Faixa de Gaza, com a morte de milhares de civis, mulheres e crianças. Mata-se o presente e o futuro, num eco trágico do que o próprio povo judeu sofreu nas patas dos nazistas, no passado. É o bumerangue da perversão contra os mais fracos em cada época, no eterno retorno de um darwinismo demente, como o capital.

No século XXI, mais do que em qualquer outro tempo, diante da crise climática cujos efeitos se agravam dia após dia no planeta, e da ameaça de uma Terceira Guerra Mundial com armas atômicas que põem em risco a sobrevivência da humanidade, urge a capacidade de mediadores para puxar o freio de mão do trem desgovernado, em direção célere ao precipício. Ao flertar e monetizar a tosca audiência bolsonarista, a mídia corporativa brasileira desmerece a importância da luta pacifista.

Os meios de comunicação (Estadão, a Folha de S. Paulo, a Rede Globo) olham o abismo sem reparar que o abismo devolve-lhes o olhar e puxa-os para dentro de si. São tempos de transição para a multipolaridade, com uma pluralidade de vozes e atores do processo democrático no mapa-múndi. O “cala boca” não funciona mais como em priscas eras autoritárias. A alternativa leva à barbárie e ao aprofundamento dos dilemas internacionais de fronteira. Da combinação do neoliberalismo com o neofascismo só é possível esperar novos Gulags de segregação sociopolítica; desta vez, no triste Ocidente, sem os tritões milenares congelados na camada glacial para amainar a fome das massas.

Parafraseando Che Guevara, para garantir a paz e desdobrar as possibilidades emancipatórias da democracia em escala global precisamos de “um, dois, três, muitos Lulas”. Quem vem, quem vai.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul