Internacional

Primeiro, então, antes de deparar com o maior teórico marxista do Ocidente, encontrei o homem e seus conflitos, debilidades, sentimentos, dores da alma e do corpo.

Chove, e eu me pego em recordações de um encontro.

Um encontro, a mim muito caro.

Com Antonio Gramsci.

Estava preso, e eu devo ter deparado com ele ali pelo início de 1972.

Leitura de “Cartas do Cárcere”, as cartas, não o “Cadernos do Cárcere”.

Uma impressionante, rica correspondência.

Creio livro da Civilização Brasileira.

Talvez a lembrança tenha surgido assim, de inopino, em razão do aniversário de nascimento dele, 22 de janeiro de 1891.

Provavelmente, por conta das referências da data.

Primeiro, então, antes de deparar com o maior teórico marxista do Ocidente, encontrei o homem e seus conflitos, debilidades, sentimentos, dores da alma e do corpo.

Maior parte das cartas, se me lembro bem, era para a cunhada Tatiana Schucht, bióloga, e visita constante do comunista na prisão.

Sempre digo ter cuidado com a tentativa de heroicizar a experiência de prisões.

Explico-me.

Os levados a ter de enfrentá-la, e falo aqui de prisões de natureza política para garantir o foco e não porque não haja vasto universo para tratar das demais, sabem não ser tarefa fácil.

Tanto é duríssima, cruel a experiência do enfrentamento da tortura, onde o ser humano é levado a uma situação-limite, onde as convicções são testadas de modo extremo, como é fortíssima a jornada do cumprimento da pena, onde o tempo parece não passar.

Você pode enfrentá-la com dignidade, de cabeça erguida.

Jamais, sem sofrimento.

Dela, da experiência de prisão, Gramsci falava sem rodeios, evidenciando a carga de sofrimento dela.

Uma gigantesca clepsidra.

Assim, ele a definia.

O cair dos dias, grão a grão: angustiante, repetitiva, torturante rotina.

Se me lembro bem, ele, teórico aplicado, separava as reações do intelectual e do camponês face à prisão.

O primeiro, mais atormentado, angustiado, absolutamente incomodado com a situação, e certamente não pretendia se esquivar, como se tal definição não dissesse respeito a ele próprio.

Dizia.

O camponês encarava a experiência de outra maneira, de modo mais tranquilo, se é possível dizer dessa forma. Não se atormentava tal e qual o intelectual. Quase um Zeca Pagodinho: deixa a vida me levar.

Cheguei a conviver com um prisioneiro de origem camponesa capaz de falar da cadeia como a mais rica experiência de vida dele.

A mais feliz.

Sobretudo pelo aprendizado que lhe foi dado desfrutar, intelectual e humano.

Incrível, mas verdadeiro.

Nada do que é humano me é estranho.

Na prisão, tentando enfrentar os tormentos daquela experiência, fui encontrar aquele homem condenado a uma inexorável morte lenta.

Ele é preso no dia 8 de novembro de 1926.

A saúde extremamente débil, abalada na prisão, leva o fascismo a libertá-lo, sob liberdade condicional, em 1934.

No dia 27 de abril de 1937, aos 46 anos, morre.

Incrível: em tão curta existência, um corpo frágil produziu uma obra imortal. Elaborada na prisão.

Numa das 478 cartas e bilhetes oriundos de variados cárceres por onde passou entre 1926 e 1934, de 11 de abril de 1927, dirigida a Tânia, como chamava Tatiana, tenta retratar os primeiros cinco meses de cárcere, quando viu “coisas de todo tipo” e teve “as impressões mais estranhas e mais excepcionais” da vida dele.

Como se outro mundo lhe fosse apresentado, e de fato foi.

Como se as entranhas da sociedade italiana ficassem expostas, e ficaram, naqueles cinco meses.

Em Roma, onde foi preso, de 8 de novembro até o dia 25 do mesmo mês, submetido a isolamento rigoroso e absoluto.

De 25 de novembro até o dia 29, está em Nápoles, na companhia de três companheiros deputados.

Embarca para Palermo, aonde chega dia 30 e passa oito dias. Em 7 de dezembro, depois de três viagens frustradas devido ao mar tempestuoso, chega a Ustica.

Primeiro contato com presos sicilianos acusados de mafiosos. Mundo novo, antes só conhecido intelectualmente.

Conhece o universo dos outros prisioneiros: é apresentado a coisas fantásticas e incríveis, provavelmente a mesma sensação nossa na década de 1970, quando nos foi dado conhecer a vida dos presos comuns.

Depara com a colônia dos beduínos da Cirenaica, confinados políticos: “quadro oriental, muito interessante”. Em 20 de janeiro de 1927, parte, e passa quatro dias em Palermo. Travessia para Nápoles, lado a lado com criminosos comuns.

Em Nápoles, conhece toda uma série de tipos, “do mais alto interesse para mim”.

Tem uma espécie de iniciação à Camorra: conhece um condenado à prisão perpétua, de nome Arturo, a deixar nele uma impressão indelével.

Quatro dias em Nápoles, segue viagem. Parada em Cajanello, no quartel dos carabineiros. Conhece os companheiros de algema, a seguir com ele até Bolonha. Depois, dois dias em Isernia, com tais tipos, e mais dois dias em Sulmona, uma noite em Castellamare, no quartel dos carabineiros.

Mais ainda: dois dias com cerca de 60 presos. Organizam entretenimentos em homenagem a ele. Os romanos improvisam uma “belíssima festa literária”, com pequenos quadros populares do submundo de Roma.

Apulienses, calabreses e sicilianos fazem uma apresentação de lutas com facas segundo as regras dos quatro estados do submundo meridional – o Estado siciliano, o Estado calabrês, o Estado apuliense, o Estado Napolitano.

Facas à mão.

Sicilianos contra apulienses.

Apulienses contra calabreses.

Sicilianos e calabreses não competem porque o ódio entre eles é muito forte. Uma simples apresentação pode se tornar séria e sangrenta.

Os apulienses são mestres, esfaqueadores insuperáveis, com uma técnica cheia de segredos e absolutamente mortal.

Assiste.

Um velho apuliense, de 65 anos, muito reverenciado, derrota todos os campeões.

Depois, no ponto culminante, esgrima contra outro apuliense, jovem, de corpo muito bonito e de agilidade surpreendente.

Por meia hora, os dois demonstram a técnica de todas as escolas conhecidas.

Cena verdadeiramente grandiosa e inesquecível, por todos os motivos, pelos atores e pelos espectadores”.

A ele se apresentava um mundo subterrâneo, complicadíssimo, com uma vida muito própria de sentimentos, de pontos de vista, de pontos de honra, com hierarquias férreas e formidáveis.

Tem disso: a prisão é sempre um enorme aprendizado da sociedade, dela emerge um mundo desconhecido.

Como emergiu para Gramsci, como aconteceu conosco nos tempos da ditadura, quando fomos aprisionados nas catacumbas.

Depois veio Bolonha, veio Milão.

Cinco meses movimentados, “ricos de impressões para um ou dois anos de ruminação”.

Ele confessava na carta:

Tudo o que ocorre ao meu redor e que consigo compreender se torna extremamente interessante”.

Mas tomava cuidado: não queria cair nas monomanias “que caracterizam a psicologia dos detentos”, e nisso era ajudado pelo espírito irônico, cheio de humor, a acompanhá-lo sempre.

Tomei essa carta como exemplo.

O universo delas me tomou durante todos os quatro anos de prisão.

A conhecer um Gramsci tão próximo da humanidade, tão frágil e simultaneamente tão forte.

A ponto de produzir com o “Cadernos do Cárcere” uma obra imortal, capaz de iluminar os passos da luta revolucionária, especialmente no Ocidente, de formular conceitos indispensáveis à luta política. Este Gramsci, só vou conhecer um pouco mais tarde quando saio da prisão, a partir do final de 1974.

Referência

GRAMSCI, Antonio. Uma “carta do cárcere”, há noventa anos. Gramsci e o Brasil, setembro de 2017.