Sociedade

Contra todos os preconceitos, contra o racismo, a gente sabe a quem chama de Rei, daremos um viva, sem medo de ser feliz, celebrar uma genial, calorosa, fraterna existência: Viva o Rei Pelé!

Por Emiliano José e Zulu Araújo

O povo brasileiro ainda não está em condições de votar por falta de prática, por falta de educação e ainda mais porque se vota, em geral, mais por amizade nos candidatos". (Pelé, 1977).

Durante muitos anos, ouvimos de intelectuais de esquerda, ativistas do movimento negro e da imprensa em geral ter sido Pelé um alienado.

Portanto, não solidário com as dores e sofrimentos do povo brasileiro.

Um preto de alma branca.

Por isso, não combatia o racismo com vigor necessário, a exemplo do que fazia Muhammad Ali, nos Estados Unidos, como se coubesse tal comparação, países e conjunturas tão distintas.

E muito menos era um democrata porque não havia enfrentado a ditadura de peito aberto.

Isso o colocava na condição de aliado da ditadura, vigente à época.

Todas essas acusações tinham origem, ganharam publicidade, a partir de uma entrevista que Pelé havia dado, na qual ele teria afirmado que “brasileiro não sabia votar”.

Tal afirmação jamais ocorreu.

Fruto de uma grande mentira, plantada à época pelo Jornal do Brasil, um dos veículos de comunicação mais poderosos do país, terminou virando uma verdade.

Joseph Goebbels chegou a dizer: “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”.

Torna-se.

Tornou-se para Pelé.

(A frase ecoa com impressionante força nos dias atuais.).

Pelé cansou-se de desmentir a frase maldita vida afora.

Jamais havia dito aquilo.

De nada adiantou.

Tal mentira acompanhou o atleta do século e a maior personalidade negra do mundo por toda a vida.

Causou-lhe sérios prejuízos, tanto de ordem moral quanto política, durante a existência inteira.

Pelé havia dado, de fato, uma entrevista coletiva.

Dia 24 de novembro de 1977.

Logo após uma cerimônia onde fora homenageado, pelo governo brasileiro, face aos grandes serviços prestados ao futebol mundial, a gerar imagens extremamente positivas para o Brasil.

A solenidade ocorreu algumas semanas após o atleta ter encerrado a carreira futebolística.

Na entrevista havia vários outros veículos de comunicação, a exemplo da Folha de São Paulo, Estadão, O Globo, e tantos outros.

Nenhum deles confirmou ou desmentiu a afirmação.

A pergunta insistente, a não calar até hoje: qual a razão de a mentira ter prosperado?

Por que nenhum dos veículos de comunicação presentes à entrevista não a desmentiram?

Qual ou quais interesses estavam envolvidos ao imputar a Pelé uma afirmação tão danosa à sua imagem?

A fala de Pelé

Pesquisando os jornais da época encontramos as verdadeiras palavras ditas por Pelé na antológica entrevista.

Numa das respostas, Pelé afirmou:

_ O povo devia se interessar mais por política, pois só assim as coisas vão melhorar.

E mais:

_ O eleitor vota por amizade, não por ter no candidato um grande político ou administrador.

Decididamente, afirmações absolutamente sensatas e corretas até os dias atuais.

Mais:

_ O povo precisa saber mais para pedir mais. É claro que existe uma estrutura impedindo uma maior participação. Mas, se o povo procurar aprender um pouquinho mais, nós poderemos ir muito longe.

Em nenhum momento aparece a afirmação “o povo brasileiro não sabe votar”.

Na entrevista, respostas sensatas, corajosas, plausíveis para o cenário político brasileiro da época, indicando, a modo dele, caminhos de superação para o povo brasileiro.

Aponta a necessidade do interesse pela política.

Critica o voto por amizade.

Defende a necessidade de maior consciência no povo brasileiro.

Propõe mais educação.

Saber mais para pedir mais.

Faz a crítica da estrutura, a limitar a participação política do povo.

E insiste: se o povo aprender um pouco mais, o Brasil vai longe.

Uma fala politizada.

Sempre a modo dele – e se diz isso porque há pensamentos autoritários, a pretender ser espécie de farol da fala dos outros.

Falava de acordo com a consciência dele, a realmente existente, nascida de uma vida de provações e privações.

E de vitórias, de superação ao mesmo tempo, resultado da obstinação e talento dele.

Consciência nascida da cultura, das circunstâncias da vida.

Circunstâncias a gerar um homem bom.

A pergunta que não quer calar: que interesses permearam a divulgação dessa informação nefasta de que Pelé havia afirmado que o brasileiro não sabia votar?

Outras: a quem interessava indispor Pelé com a sociedade brasileira? Por que os demais veículos de comunicação se calaram?

Parte da imprensa brasileira, aquela conhecida popularmente como a “imprensa marrom”, tem sido pródiga em gerar acusações sem provas, promover linchamentos públicos, a exemplo do que ocorreu com o episódio da “Escola de Base”, embora tais procedimentos não sejam exclusivos da chamada “imprensa marrom”.

Naquele episódio, onde o conluio espúrio entre uma imprensa sensacionalista e irresponsável, junto com um delegado de polícia em busca de notoriedade, e contando com a participação majoritária de toda a mídia, produziu-se uma das maiores injustiças na sociedade brasileira, gerando a destruição de reputações, esfacelamento de famílias e até mesmo o enlouquecimento de acusados.

Só para evidenciar a participação das grandes redes nessa campanha difamatória, a Rede Globo foi condenada a pagar R$ 1,5 milhão como reparação aos danos morais sofridos pelos donos e pelo motorista da Escola Base, de São Paulo.

Essa prática deletéria sempre escondeu a defesa de interesses inconfessáveis, particularmente no campo da política, e continua vigente até os dias atuais.

A ver os lamentáveis episódios ocorridos no decorrer da famigerada Lava Jato.

Não foi só a direita conservadora, racista e elitista que embarcou nessa campanha difamatória contra Pelé.

Parte da esquerda, também, em particular setores sociais e pessoas dessa esquerda, apressadas em fazer juízos condenatórios, como se parte de um tribunal.

Não foram poucos, à esquerda, a acusar Pelé de estar a serviço da ditadura.

Tentava-se responsabilizá-lo por algo que nem nós, toda a esquerda, com tanta luta, tanto sangue, havíamos conseguido fazer: impedir a brutal repressão que a ditadura operava no Brasil de então.

E como se tivesse ele condições de bloquear o uso do sucesso da seleção brasileira de futebol nos campos, em benefício da consolidação do regime militar junto à sociedade brasileira.

Nunca conseguimos.

E nunca deixamos de amar o futebol.

O uso político do futebol ou de qualquer esporte de massa é corriqueiro.

Nas ditaduras, sempre. Só ler um pouco para compreender isso.

E não seria Pelé o super-homem capaz de barrar o aproveitamento dos sucessos da seleção em favor da ditadura.

A Copa de 1978 na Argentina é um exemplo impressionante de uma ditadura mancomunada com o futebol.

Com Pelé, crueldade e injustiça de uma classe média cheia de verdades absolutas para um país tão complexo como o Brasil.

Crueldade também de uma burguesia apequenada.

Pelé pagou o preço pesado de uma frase não dita, de uma mentira. Por isso mesmo, quase 50 anos após aquela mentira, aquele episódio, e com a permanência dessa névoa sobre a presença de Pelé na vida política brasileira, vale a pena aprofundarmos minimamente a questão.

Esse cerco a Pelé, baseado numa mentira, chamada hoje fake news, certamente tenta deixar submerso um dos crimes mais abomináveis da história da humanidade: o racismo.

Pelé não podia ser aquilo, aquela grandeza.

As classes dominantes odiavam aquela realeza.

E ele sempre foi muito maior do que qualquer imputação, maior do que qualquer mentira.

Os cães ladravam.

Pelé, passava.

Curioso registrar: inúmeros outros personagens na política brasileira, de currículos recheados de atrocidades contra a população, foram absolvidos pela opinião pública, opinião construída sempre pela mídia, por terem se redimido do passado, ou pretendido se redimir.

Portanto, vale a pena indagar: quais as motivações reais a fazer com que parte da sociedade brasileira, em particular dos setores mais esclarecidos, continue a negar a importância histórica de Pelé para o país e em particular para a comunidade negra brasileira?

Bom não esquecer: Pelé não era apenas o maior jogador de futebol de todos os tempos.

Era preto e pobre, filho de um país tristemente campeão.

Campeão ao exibir o trágico título de o mais longevo país escravocrata do mundo ocidental.

Não esquecer: o racismo e a discriminação decorrentes daquele fato histórico continuam fazendo vítimas até os dias atuais.

Triste, mas necessário constatar: apesar de toda a notoriedade alcançada por Pelé, de todos os prêmios amealhados, de todo o reconhecimento conquistado mundo afora, as classes dominantes brasileiras, sem esquecer aí uma boa parte da classe média, jamais reconheceu a grandeza de Pelé – insista-se, repita-se.

Tal grandeza foi esfregada na cara de tais classes.

Vamos combinar: na verdade, na verdade, elas foram obrigadas a engolir o reinado de Pelé.

Pelé contra Havelange

A contenda entre ele e o todo poderoso presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), João Havelange, é exemplo das batalhas travadas por Pelé, algumas delas, como esta, assemelhadas à luta de David contra Golias.

Havelange durante anos se locupletou com a fama e o talento dos grandes atletas brasileiros. Jogos e mais jogos mundo afora, os atletas desfilando o talento deles, Havelange recebendo milhões de dólares sem nunca ter feito qualquer compensação financeira a esses atletas.

Quando cobrado por Pelé, por conta dessa exploração, cobrado justamente, Havelange o transformou em inimigo mortal.

Pelé tentava abrir a Caixa de Pandora da CBF.

Foi a primeira contribuição a tal objetivo.

Silvio Lancellotti, em 1994, noticiava o fato de a Procuradoria Geral da República ter determinado investigação das denúncias feitas por Pelé contra Ricardo Teixeira, presidente então da CBF, e como largamente sabido, e por isso no cargo, genro de Havelange.

Lancellotti lembra: os problemas de Pelé com Havelange eram antigos, remontavam a duas décadas.

Acumulavam-se desde o início da década de 1970, logo depois da memorável conquista da Copa do Mundo, quando Pelé, volto a dizer, justamente, recusou-se a vestir a camisa da seleção brasileira sem o direito a uma compensação financeira.

Lancelotti registra: a antiga CBF se locupletava do uso da imagem dos craques sem lhes devolver parte das rendas oriundas de patrocínio.

Imaginem o quanto Havelange e sua trupe conseguiram amealhar de dinheiro sonante com a utilização da imagem do Rei.

Eu sei: não dá para imaginar.

Pelé tinha fôlego e talento para disputar a Copa da Independência em 1972 e a Copa do Mundo de 1974.

Não participou de nenhuma delas.

Uma forma de reagir às arbitrariedades e à exploração de Havelange.

Desde então, Pelé e Havelange não se falavam, e quando se encontravam, mal diziam bom dia, boa noite, um ao outro, murmurando, a contragosto.

No Intercontinental Hotel de Frankfurt, abertura da Copa de 1974, Havelange eleito presidente da CBF e naturalmente presente, foi obrigado a assistir a chegada de Pelé numa limusine, precedido por batedores, como um Rei.

Desceu da limunise, andou como um Rei, cumprimentou todo mundo, ovacionado.

Havelange, ignorado solenemente por ele.

Ao vê-lo, mudou de direção.

Era ele o Rei.

Lancellotti: “não se debate a importância de Havelange. Nas enciclopédias, todavia, o verbete Pelé será, sempre, o mais forte, o mais bonito”.

Lancellotti, nesse caso, generoso com Havelange.

E correto com Pelé.

Não se discutirá aqui, mas fica a pergunta: Pelé, entre tantas razões, não foi para o Cosmos, em 1975, por conta da implacável perseguição de Havelange?

Havelange tentou prejudicar Pelé de todas as formas, e de alguma forma conseguiu.

Ele foi levado a encerrar a carreira precocemente.

A volta do cipó de aroeira

Fosse um sujeito dado ao ódio e à vingança, e Pelé poderia enquanto vivo dizer da volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar.

Quem acompanha o futebol, e nem precisa ser um aficionado cotidiano, sabe o triste fim, apropriado fim de Havelange, defenestrado da Fifa, acusado de toda a sorte de falcatruas.

Em 2006, o jornalista investigativo Andrew Jennings, no livro de autoria dele, “Foul! The Secret World of Fifa”, sem meias palavras denuncia Havelange como um dirigente corrupto.

Segundo Jennings, o filho do fundador e ex-diretor da Adidas, Horst Dassler, comprou votos de delegados indecisos na primeira eleição de Havelange para a Fifa. Dois anos depois, ele entregou a Dassler o poder exclusivo sobre a comercialização dos principais torneios mundiais.

Matéria da “BBC News Brasil”, de 16 de agosto de 2016, revela aspectos da carreira de um gângster do futebol mundial.

Em 2010, o programa “Panorama”, da BBC, acusa Havelange e o genro dele, Ricardo Teixeira, então presidente da CBF de aceitar milhões de dólares de propina da agência de marketing esportivo suíça, a International Sport and Leisure.

Assim, a empresa seria a única a ter contrato com a Fifa.

Havelange viu-se obrigado, em 2011, a renunciar ao cargo de membro do Comitê Olímpico Internacional (COI), entidade cuja pretensão era examinar um relatório sobre a denúncia.

Ao afastar-se, livrou-se de uma investigação sobre o caso.

Em 2012, a Justiça da Suíça afirmou: Havelange e o genro Ricardo Teixeira receberam propinas da ordem de R$ 45 milhões pela venda de direitos de mídia de torneios da Fifa.

Ano seguinte, Havelange renunciou à presidência de honra da entidade, cuja diretoria pretendia a devolução do dinheiro, o que não aconteceu.

Em 2015, outras denúncias de corrupção na Fifa. Resultaram na prisão de diversos executivos do mundo do futebol, entre os quais José Maria Marin, ex-presidente da CBF.

Havelange morreu em agosto de 2016, aos 100 anos, durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro.

A morte foi solenemente ignorada pelo Comitê Olímpico Internacional.

Em nenhum momento, os dirigentes da entidade o citaram.

Era a volta do cipó de aroeira. Tudo isso Pelé acompanhou em vida.

Sempre serenamente.

Talvez, percorrendo essa trilha de preconceito, discriminação e o puro e simples racismo, internalizados na sociedade brasileira, desde sempre, encontremos algumas respostas, para essa injustiça da qual Pelé foi sendo vítima ao longo da história.

E estamos falando da maior expressão negra de todos os tempos na sociedade brasileira. Uma das maiores expressões negras do mundo.

Nasce o Rei

Nós somos, os subscritores desse texto, de uma mesma geração, Zulu Araújo, mais novo.

Nós tivemos o privilégio de assistir Pelé jogar. De nos deslumbrarmos com ele.

E isso, tal deslumbramento, durante muitos anos o deslumbramento de milhões de brasileiros.

Isso não é pouco: estamos falando da alma do nosso povo.

Esse povo prestava homenagens ao Rei, prestou sempre.

Deslumbrou-se sempre, torcesse para qualquer time.

Pelé era Pelé, desfilando com seu manto sagrado de Rei.

Nelson Rodrigues assistiu no Rio de Janeiro a um América x Santos.

Como se visse o nascimento de Pelé.

Deslumbrou-se.

Foi o personagem da semana dele, naquele início de 1958.

O jogo aconteceu no dia 26 de fevereiro. Era a primeira rodada do Torneio Rio-São Paulo. Jogo terminou 5 x 3, vitória do Santos.

Cabe explorar um pouco a notável crônica.

Para escrever, Nelson Rodrigues examinou a ficha de Pelé, e tomou um baita susto: o fenômeno tinha 17 anos.

Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de 40, custo a crer que alguém possa ter 17 anos, jamais. Verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais.”

Ali, o início da trajetória do Rei.

Ali, sagrado Rei, naquela idade aberrante.

Nelson Rodrigues, o primeiro súdito, e um súdito importante, um dos maiores jornalistas brasileiros: “Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope.”

E olhem que lindo: “Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis.”

Pendiam.

A realeza, ainda a crônica, é acima de tudo um estado de alma.

Pelé, na visão dele, levava sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: ele se sentia Rei.

Sentia-se Rei da cabeça aos pés.

Ninguém lhe dera essa condição.

Ele sabia ser Rei.

Orgulho negro.

Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu, um plebeu ignaro e violento.”

Pelé tinha, com aquela idade, a certeza de ser o maior meia-esquerda do mundo: dizia isso.

Ele se sabia incomparável, persistiu assim, e até hoje de fato não se conhece jogador a ultrapassá-lo na genialidade.

Trazia consigo a certeza de ser o melhor, e não se recolhia numa humildade servil.

Nunca se recolheu à hipocrisia da humildade, cobrada dos negros.

Sabia de si.

Sabia-se Rei.

Do valor dele.

E afrontava os racistas com aquela atitude.

Não era um humilde – insista-se.

Não era mais um negro humilde, pronto a ajoelhar diante dos senhores.

Essa atitude irritou sempre os dominantes.

Toleravam-no, apenas isso.

E ele, soberbo, a desfilar pelos campos do Brasil e do mundo, encantando a todos.

Orgulho negro.

Foi esse orgulho, essa realeza, a impressionar Nelson Rodrigues, naquele dia do jogo contra o América.

Enfiou quatro gols em Pompéia, extraordinário goleiro.

Destroçou o América, sozinho.

Dos cinco gols do Santos, quatro dele – é brincadeira?

Aos 17 anos, nessa idade absurda.

Nelson Rodrigues relata um dos gols, um primor: “Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha pra frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.”

E é histórico o vaticínio de Nelson Rodrigues.

Profético, eu diria: “Na Suécia, ele não tremerá [diante] de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.”

Tremeram.

Orgulho negro.

É bom ter um Rei negro.

O resto do mundo, a tremer, e a reverenciá-lo.

Nós, se couber a expressão, exageramos com a presença de Nelson Rodrigues, e o leitor pode até reclamar.

Paciência, é o que se pede às leitoras, aos leitores.

O cronista flagrou o nascimento do Rei, a genialidade dele, e deu-lhe coroa e capas e sobretudo reconhecimento.

Ele sabia a quem chamava de Rei.

Reconheceu o orgulho negro.

Ouvimos aqui e ali, com a natural má vontade oriunda das profundezas da alma racista, a exigência de Pelé ser um homem de esquerda, ter um discurso de esquerda.

Não, não se perguntam sobre a realidade da existência dele, tão rica, as circunstâncias da vida, o ambiente de cultura do menino e depois do homem feito.

Foi ele, em meio ao desenvolvimentismo brasileiro, o primeiro negro, e se quiserem, se a alguns interessarem, negro retinto, a apresentar o Brasil ao mundo, a nos tornar conhecidos no mundo inteiro.

Neguinho abusado, alguns murmuravam, cheios de despeito e preconceito.

Embaixador em terras estrangeiras, menino, menino a nos apresentar ao mundo.

Embaixador negro, retinto.

Falássemos Brasil no exterior e imediatamente uma palavra saltava: Pelé. Invariavelmente.

Desde 1958, quando nasceu para o mundo na Copa da Suécia.

Em qualquer lugar do planeta.

Isso não tem preço.

Tal dívida com Pelé é impagável.

Ele e o orgulho negro dele fizeram muito pelos afrodescendentes de todo o país e por todo o povo brasileiro, de quem foi sempre digno representante

Embaixador negro.

Nunca foi um racialista, e sempre foi um defensor dos negros, com a prática dele.

Se quiserem, sacamos a máxima antiga: a prática é o critério da verdade.

E se analisamos a vida de Pelé, toda a trajetória dele foi de contribuição ao país.

Grande contribuição.

Com o futebol, com a genialidade dele em campo, até hoje insuperável, soube encantar milhões no Brasil.

Seduzir povos mundo afora.

Mostrar o valor do negro no mundo e no Brasil.

Confrontar, do jeito dele, confrontar mesmo o racismo brasileiro, presente ontem e hoje.

Com o futebol e com o jeito dele de ser Rei fez o confronto.

Nunca abaixar a cabeça.

Dizer sempre:

_ Aqui é o Brasil. Eu sou o Brasil. E se sou o melhor, e sou, devo ao meu país.

Ele dizia, não em palavras, mas com a prática, com a existência dele.

Não discutiremos aqui, mas apenas registramos: parece haver um gosto de parcelas de nossa inteligência, e não falamos apenas da direita ou extrema-direita, em destruir nossos heróis, os quais não precisam ser trágicos.

Estes, os trágicos, prefeririam não figurar nessa condição.

Vinde a mim as criancinhas

Na cultura, só lembrar Roberto Carlos, impressionante exemplo de afirmação cultural.

Seguiu caminho e cresceu.

Vítima de preconceitos da esquerda brasileira.

Houve um lindo movimento de Caetano Veloso, a resgatá-lo, mostrar a importância dele para a cultura brasileira.

E uma troca entre eles.

Visita de Roberto Carlos a Caetano em Londres, ainda exílio.

Emocionante, comovente, como confessou Caetano, a visita.

Nela, Caetano chorou como criança ao ouvir a ainda inédita “Nas curvas da estrada de Santos”, cantada à capela por Roberto Carlos.

Na sequência, Roberto Carlos fez uma das mais lindas músicas do cancioneiro brasileiro, homenageando o amigo, preciosidade poético-musical: “Debaixo dos caracóis dos teus cabelos”.

Atitude poética, lindamente poética – dirão alguns.

Mas também política, corajosa.

É importante saber a quem a gente chama de Rei, dirá Caetano sobre aquela visita a Londres. Claro, eles ainda terão divergências, mas Caetano, já antes de Londres se movimentara no sentido de mostrar o valor de Roberto Carlos e da Jovem Guarda, estimulado por Maria Bethânia.

Sobre a visita dele a Londres, relembra.

Roberto agia “como um rei de fato, claramente falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade (e propriedade) do que os milicos que nos tinham expulsado, do que a embaixada brasileira em Londres e muito mais do que os intelectuais, artistas e jornalistas que a princípio não nos entenderam e nos queriam agora mitificar: ele era o Brasil profundo”.

Caetano defendia um grande nome cultural e musical do país, outro Rei.

Pelé, voltamos a ele, tinha orgulho de ser brasileiro.

Inegavelmente, um dos nossos heróis, um herói popular, amado pelo povo brasileiro – insista-se por necessário.

Era o Brasil profundo, personificação do povo dessa querida nação.

Esta nação o amou como a poucas lideranças.

Caetano, ainda ele, quando Pelé morreu, em 29 de dezembro de 2022, disse, com muita propriedade:

_ Pelé é a afirmação concreta da vitalidade brasileira.

É.

Inegavelmente é.

As distorções, as manipulações em torno das falas dele, se avolumaram ao longo da vida.

Imaginem o que foi o escândalo sobre a declaração dele sobre as criancinhas.

Corria o dia 19 de novembro de 1969. Ditadura, a todo vapor.

Jogo Vasco x Santos.

Maracanã lotado.

Se marcasse, Pelé comemoraria o milésimo gol dele, um feito excepcional.

Jogo estava 1 x 1.

Pênalti.

Pelé pega a bola, iria bater, e confessa: pela primeira vez, nervoso.

Se a bola entrasse, seria um momento de glória.

Perdesse, decepção para milhões de brasileiros.

Tremia.

A bola ali, na marca do pênalti.

Os companheiros de time, no centro do campo, fazendo figa.

_ Agora, era comigo.

Correu para a marca do pênalti, como em câmara lenta, com direito a paradinha, e chutou.

O argentino Andrada bem que tentou, mas Pelé não perderia aquele pênalti por nada desse mundo.

Gol!

Uma digressão dele sobre como bater pênaltis.

Em 1959, aluno atento, assistiu Didi inventar um novo truque: correu para a bola, mas antes de chutar deu uma paradinha e olhou para ver para onde o goleiro se movia. Nessa fração de segundo, avaliou para onde seria melhor chutar a bola, e bateu o goleiro.

Pelé gostou. Didi nunca aplicou o truque numa partida oficial. Pelé, sim. Acabou sendo o inventor da paradinha, sem esquecer a origem do ensinamento, do talento do mestre Didi.

Depois do gol contra o Vasco, o milésimo, Pelé foi para o fundo do gol, beijou a bola, pois tinha intimidade suficiente com ela para aquele beijo.

O estádio explodiu.

Pelé chorava.

E disse dedicar o gol às criancinhas.

E falou um pouco, chorando:

_ Pelo amor de Deus, olha o Natal das crianças, olha o Natal das pessoas pobres, dos velhinhos cegos. Tem tantas instituições de caridade por aí. Pelo amor de Deus, vamos pensar nessas pessoas. Não vamos pensar só em festa. Ouça o que estou falando. É um apelo, pelo amor de Deus. Muito obrigado.

Que recado bonito, inclusive para os dias atuais, para o mundo do futebol.

Foi muito criticado, no entanto.

Muitos queriam dele um discurso contra a ditadura militar, “uma cobrança cruel naquela conjuntura”, como disse o historiador Luiz Antônio Simas, escritor e historiador, ao falar para o ESPN.

Foi uma fala de um homem sensível.

Atenta à situação da pobreza.

Uma fala corajosa.

Só cotejar tal fala com o discurso de tantos jogadores atuais, sempre a agradecer a Deus, mergulhados em suntuosas festas.

Fala a defender as crianças, os excluídos, os desassistidos.

E é por isso criticado, como se demagogo fosse, quando estava falando do fundo do coração, amparado nas lembranças de menino pobre, cujo talento foi capaz de tirá-lo da miséria.

Apesar disso, de não ser mais pobre, não se esquecia das pessoas carentes, especialmente as crianças, comovido com um drama social.

Mas o racismo queria dele, quase como pirraça, e isso vinha sobretudo de áreas do pensamento de esquerda, uma postura de herói trágico.

Se não era, se não podia ser esse herói, podia ser um cidadão sensível às crianças, querendo atenção a elas.

E isso não era pouco.

Retrocedamos.

Memorável, aquele menino de 17 anos, capaz de dar um chapéu no sueco Bengt Gustavsson, fazer um gol memorável, e chorar, chorar muito ao final do jogo e conquista da Copa de 1958, no Estádio Rasunda, em Solna, Região Metropolitana de Estocolmo.

Chorar de alegria.

Deixar as lágrimas correrem.

Como disse Nelson Rodrigues, longe de ser ele a tremer, fez os estrangeiros tremerem, e se quedarem estupefatos diante daquele menino-rei, cheio de autoridade, capaz de todas as estripulias dentro de campo.

As lágrimas falavam: o Brasil venceu.

E eu sou parte, o garoto pensava.

Sem qualquer complexo de vira-latas.

Era um complexo ausente nele.

Contra todos os preconceitos, contra o racismo, a gente sabe a quem chama de Rei.

Queremos dar um viva, sem medo de ser feliz, celebrar uma genial, calorosa, fraterna existência: Viva Pelé! Viva o Rei Pelé!

Referências

CASO Escola Base: Globo terá de pagar R$ 1,35 milhão. Terra, 16/9/2005;

CASO Escola Base. Wikipédia, consultada em 28/1/2024.

JENNINGS, Andrew. Wikipédia, consultada em 28/01/2024.

LANCELLOTTI, Sílvio. Briga com Pelé já tem 20 anos, Folha de S. Paulo, São Paulo, 21/2/1994.

LOVE, love, love’. Discurso de despedida de Pelé inspirou canção de Caetano Veloso. Rei do futebol faleceu nesta quinta-feira, 29, aos 82 anos. O GLOBO, Rio de Janeiro, 29/12/2022.

NOGUEIRA, Kiko. Leia a crônica de Nelson Rodrigues em que Pelé foi chamado de “Rei” pela primeira vez. Diário do Centro do Mundo, 29/12/2022.

OSIAS, Sílvio. Roberto Carlos não se envolve com política, mas fez música para Caetano Veloso depois de visitá-lo no exílio em Londres. Jornal da Paraíba, 15/9/2020.

PELÉ explica o discurso sobre as crianças no milésimo gol; leia trecho de autobiografia. Livraria da Folha, 2/06/2010.

VALENTE, Rafael; GOMES, Marcelo. Pelé relembra discurso do milésimo gol e diz que repetiria apelo pelas crianças: ‘Viraram bandidos’. ESPN, 17/11/2019.

VELOSO, Caetano. Página dele no Facebook, 17/6/2020, onde ele relata o que chama a “visita comovente” de Roberto Carlos a ele em Londres, ocasião para ele demonstrar gratidão pelo apoio anterior de Caetano à Jovem Guarda.

Emiliano José é jornalista, doutor em Comunicação pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, escritor, deputado federal (PT-BA)

Zulu Araújo é arquiteto, mestre em cultura e sociedade, ex-presidente da Fundação Cultural Palmares, conselheiro do Grupo Cultural Olodum e doutorando em Relações Internacionais (UFBA)