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Este artigo busca situar o panorama atual do olhar para os territórios periféricos brasileiros a partir da agenda instituída com a criação da Secretaria Nacional de Periferias no Governo Federal

Nossas cidades foram formadas a partir da dinâmica de desenvolvimento econômico que transforma o espaço urbano em mercadoria. Assim, o acesso à infraestrutura adequada torna-se privilégio de uma minoria que, via de regra, vive nos bairros centrais ou, ao menos, naqueles que dispõe de mais infraestrutura. Com uma cidade voltada para a produção de riqueza e sem a contrapartida social, desde o pós abolição, as periferias passam a ser o espaço de concentração de trabalhadores pobres, com cada vez mais direitos negados.

Essa parcela da população também vai se descolando da vida produtiva, enquanto a economia do país radicaliza seu processo de terceirização e afins, seguindo ritmo internacional. Milhões sobrevivem de trabalho informal, sazonal e inconstante. A sobrevivência é cada vez mais a ordem do dia.

Essa história da construção do nosso país, marcada pela desigualdade, está expressa hoje em territórios sistematicamente excluídos da atuação estatal. A conformação desses territórios periféricos simboliza a segregação socioespacial brutal das nossas cidades e sinalizam, hoje, a prioridade urgente de se construir uma agenda política que dê conta de superar essa deficiência histórica de atuação do Estado.

Após a vitória eleitoral de 2022, o Presidente Lula forma um governo voltado para a reconstrução do país, já que, desde o golpe de 2016, as políticas sociais que marcaram as gestões anteriores foram sistematicamente destruídas.

Quando ele reforça como bandeira central do seu terceiro mandato a necessidade de se "colocar o pobre no orçamento", sinaliza a demanda de se construírem políticas públicas que dêem conta de gerar uma segurança social capaz de incluir as pessoas pobres num ciclo de dignidade humana com acesso à alimentação, educação, saúde, renda mínima, equidade de condições para acessar oportunidades etc. Espacialmente a concentração dessa realidade está, justamente, nas periferias. Desta forma, é importante que essas políticas sejam direcionadas de maneira coordenada para estes espaços.

A criação da Secretaria Nacional de Periferias

Foi pensando nessa perspectiva integrada que o Governo Federal criou, quando da recriação do Ministério das Cidades em 2023, a inédita Secretaria Nacional de Periferias (SNP). O órgão demarca uma inovação institucional histórica na agenda da política urbana e na busca pela redução das desigualdades socioespaciais no Brasil. Ao estabelecer um recorte de atuação territorial para a SNP – as periferias urbanas – em detrimento de um recorte temático, o Governo Federal se coloca o desafio de promover uma abordagem holística e integrada para solucionar a multiplicidade de carências e vulnerabilidades impostas aos sujeitos periféricos.

De partida a SNP já inicia sua atuação com o argumento de que é fundamental compreender esses espaços não apenas como espaços de carências e vulnerabilidades, mas também a partir das suas grandes potencialidades. As periferias, ao longo do tempo, conseguiram desenvolver mecanismos de organização absolutamente inovadores do ponto de vista do que o Estado produz de maneira hegemônica para as cidades. Pela sua própria forma de constituição, estes territórios criaram identidades culturais muito próprias, com formas de organização comunitária potentes e inspiradoras – que precisam ser reconhecidas pelos governos.

Parte do desafio dessa nova estrutura institucional criada, consiste em resgatar e ressignificar a urbanização de favelas como eixo fundamental da política urbana e habitacional do Governo Federal. Oriunda de práticas inovadoras de gestões municipais progressistas ao longo dos anos 1980 e 1990, a urbanização de favelas tornou-se eixo estruturante da política habitacional nacional no final dos anos 1990 e passou por uma significativa ampliação de escala, com a destinação de volumosos recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), entre 2007 e 2013.

A urbanização de favelas, junto com o saneamento integrado e as ações de prevenção e mitigação de riscos, que afetam sobretudo as áreas onde moram as famílias em situação de maior vulnerabilidade, foram as linhas de atendimento que de fato promoveram o direcionamento de recursos públicos para as periferias urbanas, já constituídas, durante esse período, muito embora tenham se restringido sobretudo às dimensões da infraestrutura urbana, que dialogam apenas com uma parte das necessidades dos territórios periféricos. Esses programas, no entanto, foram descontinuados ao longo da última década.

No entanto, o afastamento do Governo Federal das periferias urbanas no último ciclo não deixou apenas um vazio. Ele foi preenchido pelo florescimento de diversas iniciativas de solidariedade, apoio mútua e auto-organização a favor do conjunto de necessidades dessa população. A voz das periferias emergiu para apontar que estes territórios, onde vive a maior parte da população que depende, efetivamente, do apoio do Estado, são centrais para um conjunto amplo de políticas públicas, que, para serem efetivas, precisam ser ofertadas de forma integrada.

A construção de um novo programa para as periferias: o Periferia Viva

Historicamente, a ausência do Estado é compensada pela constituição de uma complexa rede não institucional de atores que fatalmente cumprem o papel de autoridade, mediação e assistência. Nunca é demais salientar que a relação das periferias com o Estado não se dá apenas pela ausência com consequente produção estrutural de carências. Também é fundamental reconhecer que para parte expressiva da população periférica, o Estado é sinônimo de violência, perseguição e morte.

Assim, em diálogo com esse diagnóstico, e a partir do argumento central da necessidade de presença efetiva do Estado nesses territórios e da integração coordenada de políticas, foi que a Secretaria Nacional de Periferias começou a gestar um novo programa - o Periferia Viva. Ele nasce da constatação de que a melhoria da qualidade de vida nas periferias requer uma abordagem territorial, ancorada na valorização da organização social e comunitária, e que agregue a retomada de obras de infraestrutura urbana com ações que dialoguem com o conjunto de necessidades identificadas em cada território.

Para isso, o programa busca promover a estruturação e integração de uma matriz ampla de políticas públicas, articuladas em torno de quatro eixos: Infraestrutura Urbana; Equipamentos Sociais; Inovação, Tecnologia e Oportunidades; e Fortalecimento Social e Comunitário.

Como constituição basilar do programa está a inclusão de arranjos de assessoria técnica no território, de maneira a articular a presença constante e cotidiana do Estado. Neste espírito, com o lançamento do Novo PAC em 2023, o escopo da ação de apoio à urbanização de favelas foi revisto, incorporando, entre outros aspectos, a obrigatoriedade do envolvimento de assessorias técnicas nas operações de urbanização de favelas e a exigência de que os entes públicos tomadores de recursos da União instalem um posto territorial no local das ações com a presença cotidiana dessas assessorias técnicas.

O papel destas entidades com atuação multidisciplinar, dentre outras possibilidades, é a elaboração do Plano de Ação Periferia Viva – nstrumento criado para permitir o financiamento, em uma ação rápida de organização, mobilização e articulação de agentes territoriais para a qualificação dos projetos, obras e inserção de outras ações para além da infraestrutura urbana. Trata-se de uma importante ferramenta para a melhoria das condições de vida nas periferias das nossas cidades.

A oportunidade que 2024 apresenta de colocar a agenda das periferias como centro do debate político-eleitoral

O passo simbólico significativo dado pelo Governo Federal de criar uma estrutura institucional dedicada para a agenda transversal das periferias, somado às inúmeras ações realizadas em pouco mais de um ano na direção de reconhecer as práticas e os arranjos das organizações socioterritoriais locais, de modo a incluí-los na construção de uma nova política pública, dão esteio para a promoção de uma grande aliança das candidaturas do campo progressista em torno da solidificação dessa agenda.

Os marcos que estão sendo construídos nacionalmente caminham para constituir novas diretrizes, métodos e modelos de financiamento inovadores. Estes passos são importantes para a garantia do direcionamento cada vez mais amplo do orçamento público federal para esta pauta. Outrossim, a solidificação dessas inovações depende, de maneira direta, do sucesso da implementação destas políticas no nível local.

A seleção do Novo PAC no eixo do Periferia Viva – urbanização de favelas proporcionará a primeira leva de experiências junto aos gestores e gestoras municipais e estaduais. O engajamento político com essa agenda e essa nova forma de abordagem nos territórios periféricos, mais presente e mais participativa pode ser chave na inspiração e replicação desse método em outras variadas escalas.

As eleições municipais de 2024 são, portanto, uma oportunidade histórica de incluirmos na agenda das candidaturas de esquerda marcos comuns para a centralidade da agenda periférica.

O que está colocado é a forma como os gestores públicos enxergam as periferias e favelas do país. Mesmo no seio do progressismo, uma abordagem comum tem sido entender esses territórios como sinônimos de problemas, ou, no mínimo, como territórios sensíveis. Seja pelo emaranhado de carências estruturais, mais do que visíveis, seja pela dificuldade de diálogo com as lideranças que vão surgindo aos montes, quase sempre sem referências políticas na esquerda. Para além das mudanças estruturais no mundo do trabalho, esse estranhamento em relação à dinâmica da vida periférica ajuda a explicar as ameaças de desconexão entre o campo progressista e as populações mais vulneráveis da cidade.

Ao visitarmos mais de cem territórios periféricos ao longo da Caravana das Periferias em 2023, constatamos com olhos de quem está na gestão, algo que os movimentos sociais gritam há muito: as periferias têm voz, produzem soluções, planejam seu futuro e têm representantes. Não precisam e não querem mais tutores, especialistas ou mandatários se não os que sejam oriundos de seus fundões ou no mínimo que estejam organicamente emaranhados em sua vida cotidiana.

Não é necessário e nem desejável que a política envie seus emissários para “entender” as periferias. Elas têm seus mestres e doutores, seus próprios artistas, filósofos e intérpretes. Trata-se, mais do que nunca, de consolidar o entendimento de que periferias e favelas são parte constitutiva de nossas cidades e, se se diferenciam e constroem representações próprias, é porque durante décadas foram alijadas do direito de pertencer à cidade.

Por isso, defendemos que a agenda periférica em toda a sua complexidade seja incorporada ao debate eleitoral em 2024 pelas forças progressistas. Nas periferias do Brasil temos os mais atados nós das contradições sociais e ao mesmo tempo, os mais promissores apontamentos de futuro. Estamos falando do território que expressa espacialmente nossa herança escravista e de segregação. Portanto, estamos nos referindo a um profundo déficit de políticas públicas. No entanto, falamos também de sementes importantes para as políticas públicas inclusivas e de reparação, tão necessárias às classes trabalhadoras do Brasil. Um exemplo vivo é a construção autônoma das Cozinhas Solidárias por parte dos movimentos urbanos que aponta para uma importante ferramenta de combate à fome e enraizamento social.

O desafio contido na afirmação das periferias enquanto agenda prioritária é também a disputa pelos rumos dessa agenda. Seguiremos assistindo passivos à ofensiva neoliberal nos territórios e a consequente capitulação de lideranças pelo mais rasteiro modelo “self-made man” das favelas? Ou apresentamos desde já um projeto com horizonte coletivo e social, no qual problemas e soluções são discutidos a partir de uma perspectiva de políticas públicas? O respaldo dado pelo Presidente Lula ao criar a SNP nos parece também um recado ao nosso campo.

Flávio Tavares é urbanista, compõe o NAPP Cidades desde a sua criação, foi Secretário de Planejamento de Conde (PB) entre 2017 e 2020 e atualmente ocupa o cargo de Coordenador-Geral de Articulação e Planejamento da Secretaria Nacional de Periferias do Ministério das Cidades.

Guilherme Simões é cientista social, do Grajaú, periferia de São Paulo, liderança nacional do MTST e é a primeira pessoa a ocupar o cargo de Secretário Nacional de Periferias do Ministério das Cidades.