Especial

Theodomiro fugiu às portas da anistia em 17 de agosto de 1979. Quase dois meses e meio de fuga, de peregrinação. Era, então, o ex-preso mais famoso do Brasil, quiçá, naquele momento, do mundo.

Theodomiro fugiu às portas da anistia em 17 de agosto de 1979.

Preso na Penitenciária “Lemos Brito” desde outubro de 1970, acreditava, ficando sozinho na prisão por ter cometido o chamado “crime de sangue”, e assim impedido de ser beneficiado pela anistia, pudesse ser morto na cadeia.

Tinha fundadas razões para tal desconfiança.

Chegara a Brasília em 30 de outubro daquele ano de 1979, depois de um percurso a envolver cacaus e sertões da Bahia e uma longa viagem até o Rio de Janeiro e depois em direção à capital federal.

Quase dois meses e meio de fuga, de peregrinação.

Era, então, o ex-preso mais famoso do Brasil, quiçá, naquele momento, do mundo.

A resolução pela tentativa de asilo na nunciatura Apostólica fora decorrente de várias negativas de outras embaixadas, procuradas pelos deputados Francisco Pinto, Airton Soares e Freitas Nobre.

Não pediriam antes.

Theodomiro entraria na nunciatura assim como quem nada quisesse, vestido de padre, seguido por Pinto e Soares, e o fato estaria criado, e a Igreja não teria condições de negar o asilo.

Assim foi.

Dom Carmine Rocco, o núncio apostólico, era um arcebispo notoriamente conservador.

Era de um tempo na Itália onde ou a pessoa era fascista ou comunista.

Ele, por obviedade, jamais foi comunista.

E nem adepto de quaisquer ideias progressistas.

Nomeado núncio apostólico nas Filipinas em setembro de 1967.

Ao Brasil, chegou em 23 de maio de 1973, auge da ditadura militar, então tendo como ditador o terrível Garrastazu Médici.

 

Núncio nega o asilo

O núncio, surpreendido com a entrada de Theodomiro na nunciatura, não admitia acolher o fugitivo de modo nenhum.

Reafirmou isso depois de ouvir duras palavras de Airton Soares, parlamentar de posições muito seguras, e muito enfático na defesa das posições dele.

O arcebispo, categórico:

_ Vou botar esse rapaz pra fora!

_ Não há o que discutir!

_ Não vamos proteger um assassino!

Airton Soares, irritado com a posição do arcebispo.

A situação caminhava para um perigoso impasse.

Chico Pinto sentiu isso, e se preocupou.

Theodomiro não podia sair dali.

Pinto não era do estilo esquentado, tal e qual Airton Soares.

Antes da retomada da palavra por dom Carmine Rocco, Chico Pìnto, cigarro na piteira à mão, com toda polidez, sem elevar o tom de voz, pediu a palavra.

O arcebispo, surpreendido com a suavidade do parlamentar, a contrastar com a dureza de Airton Soares, com os modos gentis, assentiu.

Chico Pinto estivera a matutar enquanto Soares gritava com o núncio.

Assuntava, refletia.

De uma coisa estava certo: Theodomiro não podia sair da nunciatura.

Seria morte certa.

Olhando fundo nos olhos do arcebispo, Pinto iniciou a prosa pelas bordas:

_ Queria dizer a vossa Eminência: minha família é muito cristã, profundamente vinculada à Igreja Católica.

Não deixou escapar um leve olhar de satisfação do arcebispo;

Prosseguiu:

_ Nós, da família, doamos generosas porções de terra para a Igreja, em Conceição do Jacuípe, ali nas proximidades de Feira de Santana, cidade de que o senhor naturalmente já ouviu falar.

Dom Carmine era todo ouvidos e atenção.

Evidente: estava gostando.

Uma família católica.

E ainda daquelas capazes de presentear a Igreja com ouro, incenso e mirra.

Muito bom.

Pinto seguia, discurso redondo.

Começo, meio e fim.

Falava de caso pensado.

_ Fui educado na compreensão de que a Igreja Católica sempre soube proteger os fracos, os perseguidos, quaisquer perseguidos.

O cardeal deve ter pensado: aí vem é coisa.

Ficou ressabiado.

Sem parar, voz pausada, falando bem baixinho, constrangendo dom Carmine Rocco a prestar atenção para não perder nada, Pinto prosseguia:

_ Fui ensinado, arcebispo, desde menino da posição do Cristo: sempre esteve ao lado dos perseguidos, dos excluídos. O Novo Testamento nos revela isso, fartamente.

Chico, homem de muitas leituras, dava noção de conhecimentos bíblicos.

Melhor não recorrer ao Velho Testamento, aquele deus justiceiro, duro.

Ao valer-se do Novo Testamento, encontrava um Cristo amoroso, solidário com os perseguidos do mundo.

 

Chico Pinto: “Se Theo for morto, o senhor será o responsável”

O arcebispo já dava sinais de impaciência, não se mostrava tão diplomático.

Desconfiava aonde Pinto queria chegar.

E ele chegou, agora com a voz ligeiramente mais alta:

_ Diante de tudo isso, dessa visão do Cristo do Novo Testamento, eu me surpreendo, e me surpreendo muito, ouvir vossa Eminência falar nesse tom.

E Pinto fez a pergunta:

_ Será que o senhor não se apercebeu ainda de que esse rapaz pode ser morto se sair daqui?

Mostrou o significado da atitude do arcebispo:

_ Será que não avaliou o quanto isso pesaria para a Igreja?

O núncio ainda relutou um pouco.

Logo, no entanto, fiel ao espírito autoritário dele, se recompôs:

_ Não há discussão, o rapaz terá que sair. Não tem conversa.

Pinto, normalmente muito calmo, muito fiel à tradição do velho PSD, diante da intransigente posição do núncio, perdeu a calma.

Largou o cigarro e a piteira sobre a mesa, dedo em riste, a voz subiu alguns decibéis:

_ Então, dom Carmine, não tenha dúvida: nós o denunciaremos como corresponsável pelo assassinato de Theodomiro.

Não era bravata de Chico Pinto.

Não era simples ameaça destinada a assustar o núncio.

Pinto estava absolutamente disposto a fazer a denúncia, tal e qual prometera caso o arcebispo se mantivesse irredutível e ordenasse a saída de Theodomiro da nunciatura, entregando-o às feras, condenando-o à morte pela segunda vez, e desta vez o risco era ainda maior.

E ele seria seguido na denúncia por Airton Soares, parceiro por completo de Pinto.

Dom Carmine levou um baita susto.

Respirou fundo, empalideceu.

Olhou para Pinto, para Soares por longos segundos.

Deve ter refletido no escândalo da Igreja denunciada como cúmplice de um assassinato.

Tal assassinato o arcebispo, sujeito experiente, sabia ser possível sob uma ditadura.

Mexeu-se na cadeira, olhou para o anel cardinalício, pensou nas consequências para a biografia dele, e considerou ser melhor render-se:

_ Está bem. Ele fica.

Novamente respirou fundo, olhou para o teto, juntou as mãos como se estivesse orando, e falou baixinho, de si para si:

_ Só Deus sabe os problemas que vou enfrentar.

Só Deus saberia.

Enquanto dom Carmine refletia sem parar nos problemas a serem enfrentados com aquela decisão, dom Renato Rafaelo Martino chama Theodomiro:

_ A partir de agora, sou o responsável por você.

Martino, primeiro-secretário da nunciatura, era sujeito experiente.

Havia enfrentado problemas semelhantes no Líbano.

_ Sua vida aqui dentro será bastante controlada, explicou a Theodomiro.

Duro ouvir isso.

Theodomiro tinha noção de que seria assim.

Mas sofria um impacto ao se confirmarem as apreensões dele.

Parecia adivinho, mas não era.

Havia dito ao PCBR quando das discussões em torno do pós-fuga, os diversos caminhos pensados: o asilo numa embaixada poderia se transformar numa nova prisão.

A previsão dele se confirmava.

Lamentavelmente.

Dom Martino falou de direitos e deveres.

Mais de deveres.

Não poderia sair do quarto, salvo para uma área fechada de aproximadamente 20 metros quadrados.

Pensou: na Penitenciária “Lemos Brito” tinha um campo de futebol à disposição, duas vezes por semana.

Precário, improvisado, mas campo de futebol.

Ali, 20 metros quadrados, área fechada.

Esperança, a última que morre: ao menos torcer para uma estadia não tão longa.

Fosse breve a nova prisão.

Foi informado: toda e qualquer correspondência endereçada a ele, seria aberta antes por dom Martino, inapelavelmente.

Ele não podia adivinhar, mas essa medida salvará a vida dele mais tarde.

Dom Martino autorizou uma ligação para dona Georgina, a mãe de Theodomiro.

Ela, à beira de um ataque de nervos.

_ Calma, calma, minha mãe, está tudo bem. Logo, logo haverá uma solução positiva.

Foi estreitando as relações com dom Martino, e ele ia passando a Theodomiro todas as negociações visando a saída dele do país.

Havia uma dificuldade.

O Estado do Vaticano não tinha tratado de asilo com o Brasil.

Não poderia, então, conceder o asilo diretamente.

Dom Martino passou a gostar de Theodomiro.

Conversou, conversou, valeu-se de todas as habilidades diplomáticas construídas ao longo da vida.

O México, diante das gestões de dom Martino, aceita receber Theodomiro.

Ele exultou, finalmente uma luz no fim do túnel.

Mas ainda não tinha certeza de que a estadia na nunciatura fosse rápida, como desejava.

Persistia a preocupação de aquela permanência na embaixada tornar-se uma prisão, como ele vaticinara.

Cabra marcado para morrer

Um dia antes de seguir para o México, um dia antes de partir, dom Martino aparece subitamente no quarto de Theodomiro.

Parecia estranho, evidenciava uma atitude conspirativa, modos de clandestino, tão conhecidos de Theodomiro.

Falando baixinho, começou de modo preocupante:

_ O que você vai ouvir de mim, olhe bem, não pode contar a absolutamente ninguém. Salvo quando as nuvens turvas se dissiparem.

Theo, assustado, sem saber aonde ele queria chegar.

Por enquanto, só ouvindo.

_ Três dias após você ter chegado à Nunciatura, recebemos um envelope pardo, grande, relativamente volumoso, endereçado a você.

Theodomiro, assuntando, preocupado.

_ Como você sabe, tenho de olhar toda a correspondência dirigida a você. Abri, e dentro havia outro envelope, um pouco menor, branco, onde se encontrava o que lhe era verdadeiramente dirigido.

Theodomiro agoniado, querendo saber dos finalmente.

Mas ia se contendo.

_ Como havia muita cola, abri os quatro lados com muito cuidado, com uma espátula.

_ Sim, e daí?, pergunta Theodomiro, já bastante nervoso.

_ Dentro, havia um Caderno do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS).

Theodomiro, ainda à espera.

_ Dentro do caderno, um emaranhado de pequenos fios. Não entendi nada. Deixei tudo em cima da mesa e fui dormir.

Dom Martino deitou-se.

A alma, em paz.

De repente, antes de conciliar o sono, um sobressalto.

Gelou.

De si para si, murmurou:

_ Aquilo é uma bomba!

_ Uma bomba com certeza!

Uma bomba destinada a matar Theodomiro.

Lá atrás, Theodomiro tivera a certeza: era homem marcado para morrer.

Por isso, por tal certeza, fugiu da “Lemos Brito” às portas da anistia.

Sabia: ficasse sozinho na prisão, eles dariam um jeito de matá-lo.

E ele, não fugisse, restaria sozinho na Galeria F da “Lemos Brito”.

Agora, com a história contada por dom Martino, percebeu não ser especulação a ideia de ser cabra marcado para morrer.

A ditadura, passado tanto tempo, queria vingança.

Não o queria vivo.

Dom Martino naquela noite mal dormiu.

Teve um sono entrecortado por pesadelos.

Acordava sobressaltado.

Tentava voltar a dormir.

Dormia um pouco.

Acordava.

Como a torcer para a noite passar rápido.

E ele dar os passos necessários para desarmar a bomba.

Dia clareou, e levantou-se, de um salto.

Barbeia-se rapidamente, toma um café ligeiro, e mal o expediente se inicia, liga para a embaixada americana.

Isto: embaixada americana.

Ironia da história: pediu a ajuda à CIA.

Na noite, nos intervalos do sono, pensou: não posso chamar ninguém do governo brasileiro.

Afinal, uma ditadura.

Melhor mesmo, recorrer ao governo americano e especificamente à CIA.

Os agentes da central de inteligência norte-americana não precisaram de muito tempo para concluir: era de fato uma bomba.

Deflagrada, mataria Theodomiro.

Cabra marcado para morrer.

Os agentes desmontaram a bomba.

A nunciatura, depois da saída de Theodomiro do Brasil, fez um protesto formal, e veemente, ao Itamaraty.

A ditadura não tomou nenhuma providência.

Dia 17 de dezembro de 1979, exatamente quatro meses após a fuga da “Lemos Brito”, Theodomiro levanta.

Mal haviam despontado os primeiros raios de sol, antes das cinco da manhã.

Viajaria para o exílio.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros