Política

No Brasil, o Censo Agropecuário adota as premissas sugeridas pelo Programa do Censo Agropecuário Mundial, de periodicidade decenal, implementado pela FAO

Introdução

O Plano de Trabalho do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 20241 prevê o início das atividades preparatórias para a realização do próximo Censo Agropecuário (CA), em 2026. Entre elas estão a elaboração, o teste e a prova piloto do questionário. É um período, portanto, que deve merecer especial atenção das pessoas que o utilizam.

O CA é mais antiga e a mais completa investigação estatística e territorial sobre o “Brasil Agrário”. É uma fonte essencial de informação para as ações dos governos e da sociedade civil e tem cumprido o fundamental papel de ampliar e democratizar conhecimentos. Ele foi realizado pela primeira vez no país em 1920 e desde 1965 tem periodicidade legal de cinco anos. Mas após 1985, apenas três pesquisas foram realizadas (1995/1996, 2006 e 2016/2017), especialmente em decorrência da falta de recursos orçamentários.

No Brasil, o Censo Agropecuário adota as premissas sugeridas pelo Programa do Censo Agropecuário Mundial (CAM)2, de periodicidade decenal, implementado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, em inglês), com a participação do Brasil. Em princípio, o próximo censo está previsto para acontecer durante a vigência do CAM 2030 (em elaboração), uma vez que o CAM 2020 corresponde ao período 2016-2025.

O CAM tem como objetivo principal harmonizar conceitos, definições, métodos e diretrizes operacionais para possibilitar a comparabilidade dos resultados obtidos nos países que realizam esse tipo de pesquisa. O CAM 2020 manteve as diretrizes do CAM 2010 de promover a integração do Censo Agropecuário em um sistema geral de estatísticas agropecuárias e a integração da agricultura nos sistemas nacionais de estatísticas, com fortalecimento dos vínculos conceituais e operacionais com as pesquisas demográficas e domiciliares. Esses dois CAM foram desenvolvidos sob a orientação da Declaração do Milênio das Nações Unidas de 2000, que estabeleceu Objetivos de Desenvolvimento (ODM) globais. Entre as novidades do CAM 2020 estiveram a ênfase na produção de dados sobre o ambiente, trabalho, segurança alimentar e às relações entre gêneros, além da adoção de um sistema modular para o conteúdo, que distingue os itens essenciais, “de estrutura” e adicionais e prevê a coleta de dados complementares (mais detalhados) por meio de pesquisas sobre temas específicos.

Antecedentes

O CA 2017 foi previsto originalmente para ocorrer em 2015, mas foi adiado duas vezes. As suas atividades foram iniciadas em 2013, sob a perspectiva de reformulação das pesquisas agropecuárias do IBGE, que discutia, a partir de recomendações e experiências internacionais, a criação de um Sistema Nacional de Pesquisas por Amostragem de Estabelecimentos Agropecuários (SNPA) e, em consequência, a redefinição do escopo do Censo Agropecuário. Essa reformulação não teve continuidade no ritmo esperado pelo Instituto.

A discussão pública do conteúdo do Censo Agropecuário anterior ocorreu por meio de dois Fóruns de Usuários de Dados organizados pelo IBGE, realizados em dezembro de 2013 e agosto de 2014, sendo esse último após a 1ª Prova Piloto do questionário. O CA 2017 foi o primeiro a abordar em uma mesma pesquisa as atividades agropecuárias, florestais e aquícolas, a cor/raça do(a) produtor(a) e seu(sua) cônjuge e a codireção do estabelecimento (casal), entre outros aspectos.

Após o primeiro adiamento, as despesas do CA foram estimadas em R$ 1,6 bilhão, para execução nos anos de 2016 e 2017. A proposta orçamentária do governo para 2017, porém, não incluiu o valor correspondente. A partir deste fato, foi formada a Frente Parlamentar Mista de Geografia, Estatística e Meio Agroambiental, composta por 220 deputados(as) federais e 35 senadores(as), que obteve, por meio de emendas ao Orçamento, aproximadamente de R$ 780 milhões, ou seja, um pouco menos da metade do previsto. Esse número é equivalente a R$ 1,3 bilhão de dezembro de 2023, considerando a correção pelo IPCA, do IBGE, e uma distribuição aproximada de dois terços do valor total no segundo ano de execução.

A drástica restrição de recursos repercutiu sobre o menor número de pessoas contratadas (de 80 mil para 26 mil), a alteração do período de referência (do ano civil de 2016 para outubro de 2016 a setembro de 2017), o aumento do período de coleta (de três meses para cinco meses) e a redução do conteúdo da pesquisa, com o objetivo de diminuir o tempo médio de cada entrevista (de 90 minutos para 45 minutos). Essa meta, em especial, foi superada, pois esse tempo alcançou a média 28 minutos no período efetivo de coleta.

O corte do conteúdo foi, evidentemente, seletivo. Em relação ao que foi acordado nos Fóruns de Usuários, ele atingiu majoritariamente as questões não existentes nos censos anteriores, exceto no caso das variáveis utilizadas para identificação dos estabelecimentos da Agricultura Familiar, cuja série foi iniciada em 2006. Entre as possíveis novidades suprimidas estiveram as relacionadas às pessoas com laço de parentesco com o(a) produtor(a) (sexo, atividade realizada no estabelecimento e fora dele, grau de parentesco, escolaridade, remuneração no estabelecimento); às pessoas sem laço de parentesco com o(a) produtor(a) (sexo, idade, categoria de trabalho); aos agrotóxicos (tipo e do modo de aplicação, uso de equipamentos de proteção individual, destinação de embalagens vazias, casos de intoxicação, uso de outras práticas para controle de pragas e doenças); o acesso a programas governamentais específicos e discriminados individualmente (Bolsa Família, Programas de Aquisição de Alimentos e de Alimentação Escolar e outros); à irrigação (origem da água, pagamento pela utilização da água); à pecuária (integração à indústria, destinação de dejetos, controle de parasitas e doenças, sexo e idade dos animais) e à produção vegetal (principal destino da venda, especificações de uso de adubos, agrotóxicos e de irrigação por produto, principais meses de plantio e de colheita).

A alteração do conteúdo do CA foi anunciada em abril de 2017 e fortemente contestada por vários órgãos e entidades, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o Ministério Público Federal, a Fiocruz, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Rede de Estudos Rurais, a Associação Nacional de Agroecologia, a Associação de Geógrafos do Brasil, entre tantas outras. Uma parte do conteúdo alterado foi restituída (variáveis para a identificação dos estabelecimentos da Agricultura Familiar), mas outra parte, não. A mudança parcial no conteúdo não afetou a aplicação das novas tecnologias e a grande cobertura obtida.

Para o CA 2017 foram constituídos cerca de 127 mil setores censitários (unidades de controle cadastral), a grande maioria deles em áreas rurais (92% do total). Foram contratadas aproximadamente 26 mil pessoas, a maioria delas (72% do total) para o cargo de recenseador(a). Foram visitados 7,5 milhões de endereços, dos quais 5,1 milhões atenderam aos critérios de estabelecimento agropecuário para realização da coleta de dados. O total de recusas à entrevista foi insignificante (6 mil). O conteúdo final do CA 2017 foi organizado em 41 quadros contendo 565 perguntas3.

A elaboração do conteúdo do CA 2017 ocorreu simultaneamente ao debate sobre a inclusão de temas relacionados aos Povos e Comunidades Tradicionais (PCT). A partir de uma oficina realizada em agosto de 2014 foram constituídos grupos específicos (governamentais e mistos) para contribuir na elaboração de propostas. Essas propostas repercutiram na produção inédita de dados sobre estabelecimentos agropecuários em Terras Indígenas, Reservas de Desenvolvimento Sustentável, Reservas Extrativistas e Florestas de Uso Sustentável, além das produções agropecuária e extrativista, segundo a cor ou raça do(a) produtor(a) e recortes territoriais específicos.

Além delas, os grupos constituídos contribuíram para que em 2020 o IBGE divulgasse estudos experimentais para dimensionamento da população residente em áreas indígenas e quilombolas e que incorporasse ao Censo Demográfico 2022 a possibilidade de autodeclaração como quilombola para todos(as) os(as) moradores(as) em área quilombola identificada em registro administrativo contendo localização georreferenciada.

Perspectivas

Assim como o CAM 2010 e o CAM 2020 estiveram voltados para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), é provável – e seria desejável – que o CAM 2030 esteja orientado para os compromissos estabelecidos pela Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável e os seus Dezessete Objetivos Globais (ODS), renovando a importância dos temas ambientais, especialmente os relacionados às mudanças do clima, e sobre segurança alimentar, entre outros.

A proximidade das definições sobre o conteúdo do próximo CA sugere a retomada da discussão sobre as suas prioridades. Além dos temas suprimidos em abril de 2017, que poderão voltar à pauta de discussão, há perspectiva de continuidade da investigação detalhada de PCT, de práticas agroecológicas, sobre a cor/raça das pessoas ocupadas e sobre os domicílios em estabelecimentos agropecuários, entre tantos outros temas. Entre eles, o da pertinência da pesquisa sobre a percepção dos(as) produtores(as), como por exemplo, sobre os problemas encontrados nas atividades dos estabelecimentos, que foram discutidas em 2013/2014.

A evolução das técnicas de processamento e de divulgação dos dados tem permitido que os resultados dos censos sejam disponibilizados por meio de diferentes ferramentas, o que viabiliza o maior acesso às variáveis pesquisadas, individualmente ou combinadas entre si, como, por exemplo, no caso dos estabelecimentos da Agricultura Familiar. Além delas, novas tecnologias de sensoriamento remoto permitem, cada vez mais, que se explore a combinação das informações literais geradas diretamente pelos(as) entrevistados(as) com as informações geográficas de áreas com recortes não tradicionais, pré-definidas (assentamentos, terras indígenas, terras de quilombolas, unidades de conservação, etc.) ou definidas especialmente pelos(as) usuários(as).

Ainda que a reformulação das pesquisas agropecuárias do IBGE não tenha evoluído no ritmo esperado pelo Instituto, é possível que a discussão do próximo CA resgate alguns dos seus elementos, especialmente os relativos aos métodos alternativos para os Censos, como por exemplo, as pesquisas que utilizam, de forma combinada, levantamentos amostrais e os registros administrativos. O Censo Demográfico, por exemplo, é a base para as Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), que têm um menor número de temas do que ele, mas são realizadas a cada três meses. No período recente o IBGE tem realizado estudos para a modalidade Censo Demográfico Contínuo.

Além do conteúdo do próximo Censo, a geração de dados de boa qualidade depende de atenção às suas demais etapas, como a constituição do cadastro de endereços georreferenciados de produtores(as), a elaboração do Manual do(a) Recenseador(a), que contém orientações para a aplicação do questionário em nível de campo, o conteúdo do treinamento que será oferecido a recenseadores(as) e supervisores(as), a divulgação e os esclarecimentos às pessoas que poderão ser entrevistadas.

Todas estas atividades dependem, evidentemente, do esforço e das articulações políticas e institucionais para garantir que o próximo CA aconteça em um cenário minimamente favorável em termos orçamentários, financeiros e operacionais. Ele será o primeiro após o Censo Demográfico 2022, que apresentou vários problemas para a sua realização, alguns deles em maior intensidade que as pesquisas anteriores. Originalmente previsto para acontecer em 2020, a realização do Censo Demográfico dependeu de determinação expressa do Supremo Tribunal Federal (STF), o que ocorreu em maio de 2021.

Além da pandemia, os Orçamentos aprovados resultaram em dificuldade para a contratação e o pagamento de pessoal (remuneração não atrativa, atrasos, abandonos). A pesquisa foi fortemente afetada pela dispersão de notícias falsas (desinformação), o que resultou em altas taxas de não respostas (moradores(as) ausentes) e de recusas, além da necessidade de prorrogações do período de coleta de dados. Elevadas taxas de recusas também têm sido observadas em outras pesquisas do IBGE, o que pode levantar preocupações em relação às possibilidades do CA seguir aperfeiçoando e democratizando conhecimentos.

O CA 2017 recebeu apoio formal da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) e da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), que organizam os interesses empresariais no campo. A Frente Parlamentar Mista, que garantiu recursos para esse Censo, reuniu inclusive parcela da base de apoio do governo Temer e do futuro governo Bolsonaro. No entanto, esses(as) mesmos(as) parlamentares foram responsáveis por enormes dificuldades para a realização do Censo Demográfico.

Ou seja, a realização do próximo Censo Agropecuário em um ambiente de previsibilidade orçamentária, financeira e operacional para realizar adequadamente todas as suas etapas (ao menos três anos), depende da constituição de um campo político e institucional amplo.

Vicente P. M. de Azevedo Marques, doutorando, Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento, Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Gepad/PGDR/UFRGS)

Caio Galvão de França, doutorando, Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento, Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Gepad/PGDR/UFRGS)

Mauro Eduardo Delgrossi, professor da Universidade de Brasília (UnB)

1Disponível em: https://www.ibge.gov.br/np_download/novoportal/documentos_institucionais/Plano_de_trabalho_2024_ebook.pdf

2Sobre o Programa e o acesso aos dois volumes do CAM 2020 ver: https://www.fao.org/world-census-agriculture/es/.

3Sobre o questionário do Censo Agropecuário 2017 ver: https://censoagro2017.ibge.gov.br/coleta-censo-agro-2017/questionarios-censo-agro-2017.html