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As águas, as florestas, as árvores, os morros, as minas, os biomas vão sendo impiedosamente destruídos, e disso o homem, o modo de produção capitalista de modo especial, não tira qualquer consequência.

A natureza reage. As tragédias parecem surgir assim como um raio num dia de céu azul.

Como não houvessem causas muito mais profundas.

Vindas dos séculos saeculorum amém.

A tragédia enfrentada pelo Rio Grande do Sul assusta. E mata.

Ainda bem: existe o governo Lula, a correr para socorrer os gaúchos.

A tomar as providências imediatas. E a pensar o pós-tragédia.

E o negacionistas, calados.

Porque não há nada a ser dito por eles.

Nesse grito, nesse assustador rugido da natureza no Rio Grande há um recado.

Poderoso recado. Impossível de ser ignorado. Como tantos outros nesse Brasil.

Claro, poderíamos discutir a maneira secular de lidar com a natureza. Como se, nessa relação, homem-natureza, um, o homem, fosse senhor de baraço e cutelo, dono de todo o poder, e a outra, elemento passivo, capaz de tudo suportar, e para todo o sempre. Como se um, de posse do machado, pudesse seguir destruindo, devastando, e ela, natureza, tudo suportando, e resistindo, e ainda servindo ao braço armado.

As águas, as florestas, as árvores, os morros, as minas, os biomas vão sendo impiedosamente destruídos, e disso o homem, o modo de produção capitalista de modo especial, não tira qualquer consequência. Como pudesse fazer isso eternamente, e a natureza suportasse para todo o sempre. Não é assim.

Volto: é muito significativo o silêncio dos negacionistas diante da tragédia do Rio Grande do Sul.

Os biomas atacados

Ainda numa visão estrutural, a Amazônia, a Caatinga, o Cerrado, a Mata Atlântica, o Pampa e o Pantanal, nossos biomas sofrem um ataque cerrado, sem cessar, do mundo do capital, e vão sendo progressiva e rapidamente destruídos.

Nem se fale em números. Quem quiser, vá atrás. São catastróficos. A catástrofe do Rio Grande está aí para não nos deixar mentir. E por catástrofe não se entenda uma linguagem metafórica.

Agora, é possível tratar de tal tragédia, a do Rio Grande do Sul, tão somente com um olhar estrutural? Ou caberia descer um pouco à política, às políticas do governo do Rio Grande, todas elas dedicadas de modo impiedoso à destruição do meio ambiente, à agressão à natureza? Ou às iniciativas da própria Câmara Federal? Neste caso, não há acaso.

Em março deste ano, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal aprovou projeto autorizando o desmatamento de 48 milhões de hectares de “campos nativos”, área equivalente, anotem, à soma dos estados do Rio Grande do Sul e Paraná. Não é preciso dizer, mas se diz: desmatamento impulsiona acontecimentos climáticos extremos, e com isso vamos reafirmando o fato de tragédias como a do Rio Grande do Sul não serem obras de uma espécie de “maldade” da natureza, de algum acaso. Não. Elas são provocadas pelo homem.

Pelo homem, genérico demais: por vorazes capitalistas, indiferentes. No parlamento, esses capitalistas têm representantes. Adivinhem quem foi o relator do projeto da destruição dos “campos nativos”? Tentem. O deputado gaúcho Lucas Redecker, do PSDB do Rio Grande do Sul. O céu desabou. Porque provocado.

O nível do Lago Guaíba atingiu marca recorde: passou de cinco metros no sábado (dia 4 de maio). Superou a cheia histórica de 1941, quando a água atingiu a marca de 4,76 metros, e deixou 25% da população de Porto Alegre desabrigada. Vem de longe, o problema, como se vê.

Neste caso, dessa tragédia, houve a sobreposição de fenômenos climáticos, a transformar a região central do Rio Grande do Sul num “alvo”, se a palavra couber. Em face disso, e se sabia de tudo, eram exigidos planos de contingência, de prevenção, e nada disso aconteceu. Faltou ação do governo do Estado, importante registrar.

– Todos os alertas de ocorrência de eventos climáticos extremos têm sido ignorados pelo poder público no Rio Grande do Sul.

É afirmação de Miriam Prochnow, da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi). Ela diz mais, tocando o dedo na ferida: as cidades ignoram que isso tem que ser levado em conta quando se faz planejamento urbano. Não pensam em retirar pessoas de áreas de risco, permitem ocupação em áreas aonde a enchente já chegou. É ignorar a crise climática solenemente.

O Estado ignora sinais

O Rio Grande do Sul está numa zona afetada pelo El Niño e La Niña. Os governantes sabem disso, como diz Karina Lima, geógrafa cuja ênfase é pesquisar tempestades severas. Modelos matemáticos preveem, como ela diz, e há muito tempo, a tendência de aumento da precipitação média anual e da precipitação extrema – mais chuvas concentradas e severas.

– Com certeza se investe muito pouco em um estado que está tão vulnerável a eventos extremos.

O Estado perdeu há muitas décadas a capacidade para enfrentar os extremos climáticos, como acentua Clóvis Borges, diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental:

– Foi o primeiro estado a cobrir todo o território com propriedade agrícola. Eliminaram praticamente suas áreas naturais.

Borges lembra: restam apenas 7% da área original da Mata Atlântica no Estado e o bioma Pampas é um dos mais ameaçados. Uma fração das mortes, ele diz, e do prejuízo econômico sentido agora, são decorrentes do descumprimento da legislação ambiental:

– Se a classe política continuar relegando isso, vamos passar por situações mais duras.

O negacionismo precisa ser deixado de lado. As catástrofes, cada vez mais intensas, obriga a isso, ou deveria obrigar, conforme o alerta de Heverton Lacerda, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural:

– Os atuais governos, tanto do Estado quanto da prefeitura da capital e outras cidades do interior, estão sob o comando de negacionistas climáticos. Isso fica exposto pelas políticas que eles encaminham.

Desmonte

O governador Eduardo Leite quase desmontou a Defesa Civil, desprezada, estrangulada pela falta de verbas já no primeiro governo dele. Ele próprio, Leite, enviou à Assembleia Legislativa projeto para mudar o Código Estadual Ambiental, de modo a que as empresas se concedessem auto-licenciamentos. Raposa tomando conta do galinheiro.

O capital legislando sobre o meio ambiente: o empresário preenche um cadastro e se auto-licencia. Assume: ele próprio vai cuidar daquilo que ele mesmo pode, e vai, agredir, destruiu, degradar.

Em março deste ano, a Assembleia aprovou outro projeto capaz de escancarar ainda mais a porteira para a boiada passar: flexibiliza, eita palavrinha enganosa, traiçoeira, a legislação ambiental para a construção de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanentes, as APPs. O autor de tal projeto é o deputado Delegado Zucco, do Republicanos, mesmo partido do general senador Hamilton Mourão, irmão do deputado federal Coronel Zucco, da CPI do MST, integrantes, todos, dos agrupamentos de extrema-direita da base do primeiro governo Leite.

No programa do segundo governo Leite, registrado na Justiça Eleitoral, não há uma linha sobre questões ambientais.

Se é verdade, como se disse no início desse texto, a existência de um acúmulo histórico, próprio do capitalismo, um modo de produção voltado à destruição da natureza, e que por isso mesmo requer medidas políticas destinadas a conter tal ímpeto, não é menos verdadeira a contribuição decidida, recente, do governo do Rio Grande do Sul a contribuir não só para a tragédia atual como para outras, vindouras, inevitáveis.

Toda a atividade legislativa, orientada, promovida pelo governador esteve voltada para garantir a passagem da boiada, e assim, ignorar os eventos climáticos extremos. Um colete colorido da Defesa Civil não pode, não consegue ignorar a responsabilidade do governador e também dos parlamentares estaduais e federais, cujos projetos podem ser considerados criminosos, capazes de causar mortes, e atender exclusivamente aos apetites do mundo do capital.

Se é agredida, e o é de modo intenso e permanente, a natureza reage. E a mãe terra, toda ela porque o Brasil não é exceção, vai se tornando progressivamente áspera às populações, atualmente de modo principal às classes mais pobres.

Amanhã, a todos.

São lições gritantes, as do Rio Grande do Sul. Os efeitos trágicos chegaram a todos. Não se sabe se tais lições ensinarão, se servirão. Se serão capazes de conter os negacionistas.

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre

Referências

MENDES, Moisés. A revolta da natureza na terra de Lutzenberger. Diário do Centro do Mundo, 4/05/2024.

PONTES, Nádia. ´Negacionismo climático’: Por que o RS está tão exposto às catástrofes. UOL, 4/05/2024.

SOUZA, Oswaldo Braga de. Câmara aprova projeto que permite devastar área de campos nativos do tamanho de RS e PR. Toda vegetação “não florestal” do país, de todos os biomas, está em perigo. Mais de 50% do Pantanal estão ameaçados. Instituto Sócio-Ambiental (ISA), 20/03/2024.