Há efemérides e “efemérides”, as que comemoramos e as que amaldiçoamos. O sexagésimo aniversário do golpe militar de 1º de abril de 1964 faz parte do segundo tipo. Aquele golpe não apenas deu início a uma ditadura militar, que estrangulou as liberdades democráticas por 21 anos, mas também bloqueou o caminho do país para o bem-estar social, para o desenvolvimento e para a soberania. Os efeitos do golpe não morreram com o fim da ditadura: as sequelas seguem presentes até hoje, em todos os terrenos da vida nacional. Uma dessas sequelas é o comportamento, presente em boa parte das elites políticas e culturais, de subalternidade frente aos Estados Unidos.
Desde 1823 até hoje, os Estados Unidos afirmam que “a América é para os americanos”. Ou, em bom português, que o conjunto do continente americano deve estar submetido aos estadunidenses. Esta crença foi acompanhada, ao longo dos últimos duzentos anos, de um conjunto de medidas práticas – de natureza diplomática, econômica, cultura política e militar – que efetivamente submeteram a maior parte da região aos Estados Unidos.
Os efeitos disso, sobre os diferentes países americanos, não foram homogêneos. No caso específico do Brasil, os Estados Unidos contribuíram decisivamente para que a classe dominante brasileira bloqueasse diversas tentativas de ampliar qualitativamente nosso desenvolvimento, bem-estar social, liberdades democráticas e soberania nacional. Evidentemente, o principal obstáculo para mudanças estruturais pró-povo em nosso país é a classe dominante brasileira. Mas é óbvio que, sem o apoio dos Estados Unidos, aumentariam muito as chances da “nossa” classe dominante ser derrotada.
A ingerência gringa se fez presente, notadamente, nos golpes contra Vargas (1945 e 1954), Goulart (1964), Dilma (2016) e Lula (2018). Os responsáveis institucionais por cada um desses golpes foram os presidentes Truman, Eisenhower, Lyndon Johnson, Obama e Trump, respectivamente. Valendo lembrar que o vice de Obama, durante o golpe contra Dilma, era o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.
Desses vários golpes, o mais profundo e negativo – historicamente falando – foi o de 1964. O Vargas deposto em 1945 vinha de uma ditadura; o suicídio de Vargas, em 1954, adiou o golpe por uma década. Seis anos depois do golpe contra Dilma e quatro anos depois do golpe contra Lula, o PT venceu novamente as eleições presidenciais. Já o golpe de 1964 desembocou numa ditadura que durou 21 anos, sem contar os quatro anos de transição conservadora e, depois disso, mais quatro décadas de impunidade para os crimes dos golpistas e da ditadura.
A participação dos Estados Unidos no golpe de 1964 teve várias camadas, envolvendo orientação política privada e pública, financiamento legal e ilegal, conspiração e suporte militar, que chegou a ponto de haver uma frota trazendo tropas, aviões e suprimentos, à disposição, para ajudar, caso houvesse resistência ao golpe. Lamentavelmente, para nossa eterna vergonha, especialmente para quem acreditava no “dispositivo militar” do governo Jango, não foi necessária a intervenção direta dos gringos e de sua Operação Brother Sam.
O suporte dos Estados Unidos às nossas forças armadas prosseguiu durante a ditadura, inclusive no apoio à repressão, tortura incluída. Aliás, desde a Segunda Guerra (1939-1945), as forças armadas brasileiras vieram sendo convertidas em força auxiliar dos Estados Unidos. A submissão inclui doutrina, inteligência, treinamento e equipamentos. E, claro, um pouco de turismo pago pelos cofres brasileiros, sem falar na expertise, contatos e contratos resultantes de certas concorrências e compras. Mas para que chegássemos à desejada submissão, foi preciso que ocorresse o golpe de 1964.
A ditadura, como se sabe, perseguiu os partidários do governo João Goulart, em particular brizolistas, comunistas, sindicalistas e que tais. E manteve dura vigilância sobre quem atuava no mundo das artes, da cultura e da comunicação, na educação, nas estatais e no funcionalismo público em geral. Mas basta comparar o que aconteceu no Itamaray, na Petrobras e nas Forças Armadas, para perceber que foi nos quartéis que a ditadura pegou proporcionalmente mais pesado, no sentido de extirpar todos os oficiais e soldados que tivessem algum compromisso com a democracia e a soberania efetivas. A direita e a extrema direita não bobeiam, quando se trata de controlar quem controla o arsenal.
Isso não eliminou todas as contradições entre a cúpula militar e os Estados Unidos, como se viu, por exemplo, durante o governo Geisel, em episódios como o reconhecimento das independências de ex-colônias portuguesas, o acordo nuclear com a Alemanha e a tortura de presos políticos. Mas, à medida que as novas gerações eram promovidas, o vínculo subalterno com os Estados Unidos se aprofundou. E isso não incluiu apenas adesão à doutrina de defesa hemisférica e a de segurança nacional, mas também adesão à política neoliberal. A esse respeito, aliás, uma grande economista petista disse uma vez, em tom de blague, que os milicos nacionalistas eram fascistas e os milicos “democráticos” eram entreguistas.
A atitude geral dos Estados Unidos para com a América Latina e Caribe, em geral, e para com o Brasil, em particular, não depende deste ou daquele governo que ocupe a Casa Branca. Embora existam diferenças entre as gestões de fulano ou de beltrano, às vezes com relevantes implicações políticas de ordem tática, como vimos em 2022, a doutrina Monroe foi e segue sendo uma política de Estado, ou seja, uma política permanente, sustentada por aquilo que alguns chamam de “Estado profundo”. O que nos tempos que correm tem a seguinte tradução: não pode haver desalinhamento do Brasil com os objetivos definidos na estratégia de segurança nacional dos Estados Unidos. Cuja edição mais recente, de 2022, estabelece China e Rússia como inimigos em maior e menor grau.
Sendo assim, se queremos extrair alguma utilidade de nossos conhecimentos acerca do que os Estados Unidos fizeram em 1964 e durante a ditadura, devemos nos perguntar o que fazer, agora, para os gringos perderem, em todo ou em parte, sua capacidade de influenciar os acontecimentos.
Valter Pomar é professor de relações internacionais na UFABC e diretor da Fundação Perseu Abramo.