Especial do Golpe

O outro fator importante foi a Ação Católica, em especial os movimentos juvenis. Esses movimentos tinham um perfil sacramental e litúrgico até os anos 1950, mas deram uma guinada para o engajamento social.

Os antecedentes

Até os anos 1950, a Igreja Católica no Brasil era bastante semelhante àquela de outros países: uma atuação religiosa tradicional, pouco presente na questão social, marcada pelo entendimento com as classes dominantes e, no campo, pela boa convivência com a oligarquia rural.

No entanto, no decorrer dessa mesma década, em razão da agitação no meio rural, motivada pelas duras condições de vida e de trabalho dos agricultores, surgem, pouco a pouco, pronunciamentos episcopais críticos, especialmente quanto à questão do campo. Destaca-se, nesse período, a figura de D. Helder Câmara, bispo auxiliar do Rio de Janeiro que foi o fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1952. D. Helder foi seu secretário-executivo nos doze primeiros anos e reuniu em torno de si um grupo de bispos comprometidos com a renovação da Igreja. D. Helder recebeu um grande apoio do Núncio Apostólico do Vaticano de 1954 a 1964, Monsenhor Armando Lombardi. Durante essa década, foram nomeados mais de cem bispos e a influência de D. Helder se fez sentir na sua escolha. Muitos desses bispos teriam um papel fundamental na década seguinte.

O contexto social vai ter um papel importante aqui, pois é um período de grande efervescência, particularmente no campo. Surgem, em 1955, as Ligas Camponesas no Nordeste, movimento que vai se espalhar por várias regiões do país. Também o movimento operário e sindical tem um grande impulso e, pouco a pouco, as centrais sindicais se tornam mais poderosas. Cresce o movimento de educação popular, de um lado pelo Movimento de Educação de Base (MEB), que é criado pela Igreja Católica em 1961. Por outro lado, é o momento em que aparece Paulo Freire e seu método revolucionário de alfabetização. Ele se baseia na chamada Pedagogia do Oprimido que terá ampla divulgação, tanto entre os estudantes quanto entre os setores mais comprometidos da Igreja.

Finalmente, a vitória da Revolução Cubana no início de 1959 foi um acontecimento com muita repercussão nas esquerdas e nos movimentos sociais do continente, inclusive do Brasil, pois significava que a mudança era possível, que a ruptura com a dominação imperialista dos Estados Unidos era viável. Ela gerou uma grande esperança no meio dos cristãos de esquerda.

O outro fator importante foi a Ação Católica, em especial os movimentos juvenis, a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Juventude Estudantil Católica (JEC). Esses movimentos tinham um perfil marcadamente sacramental e litúrgico até os anos 1950, mas, na virada de 1959 para 1960, deram uma guinada para o engajamento social. Vários militantes da JUC foram atuar no MEB, junto aos camponeses, tomando contato, pela primeira vez, com suas condições de vida.

Completa este quadro a atuação do Papa João XXIII, elevado ao pontificado em 1958 e que revolucionou a Igreja com a convocação do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Ele será responsável por um empenho cada vez maior dos bispos latino-americanos pelos pobres do continente, graças a duas cartas escritas diretamente a eles, uma em 1958 e outra em 1961. Por outro lado, nos cinco anos em que governou a Igreja, lançou duas encíclicas sociais, Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963). O Concílio, que durou quatro anos – três meses por ano - teve um forte poder de mudança. Ele está na raiz de profundas transformações ocorridas na Igreja, tanto em nível internacional quanto no Brasil. A partir da inspiração do Concílio, no Brasil, vários bispos deram início às comunidades de base em suas dioceses.

Outro evento muito importante para a Igreja latino-americana foi a II Conferência do Episcopado Latino-Americano em Medellín (1968). Especialmente em dois dos dezesseis documentos, o Documento sobre a Justiça e o Documento sobre a Paz, Medellín inicia uma nova reflexão teológica, dando lugar central ao pobre e àquilo que passou a se chamar o “pecado estrutural”. É uma primeira expressão daquela que vai se chamar, três anos depois, Teologia da Libertação1.

Isto não deve nos fazer perder de vista que a maioria da Igreja, a maioria do episcopado, é conservadora. Assim, quando a agitação social cresce e os cristãos leigos se envolvem diretamente na ação política, estes setores mais conservadores se alarmam. Duas campanhas católicas, desencadeadas poucos meses antes do golpe, foram cruciais para criar um clima favorável aos golpistas: a Cruzada do Rosário em Família e, em seguida, as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Ambas eram caracterizadas por um forte teor anticomunista e de desmoralização daqueles que se mobilizavam exigindo justiça social.

A Igreja e o golpe militar

Quando o golpe militar foi desencadeado, uma parte da Igreja sentiu-se como se suas preces tivessem sido ouvidas. Este é praticamente o teor do documento episcopal emitido dois meses depois do golpe:

[...] Atendendo à geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa terra. [...] De uma a outra extremidade da pátria, transborda dos corações o mesmo sentimento de gratidão a Deus, pelo êxito incruento de uma revolução armada. […]”

O documento contém também críticas ao novo regime, rejeita acusações contra a Igreja e movimentos como a Ação Católica e o MEB, exige o respeito aos direitos humanos, especialmente o direito de defesa e insiste na busca da justiça social. Mas a marca fundamental desta primeira declaração oficial do episcopado é de aprovação.

Na verdade, no mesmo momento em que a direita toma o poder do Estado, no interior da Igreja também a direita assume a direção. D. Carlos Carmelo Mota, que era arcebispo de São Paulo, é transferido para uma diocese do interior, Aparecida, e D. Helder Câmara é transferido para Recife, onde pensavam que ele incomodaria menos. Neste mesmo ano, D. Agnello Rossi é eleito presidente da CNBB e se torna Arcebispo de São Paulo e D. José Gonçalves, outro conservador, é eleito secretário-geral. Esta direção vai conviver pacificamente com o regime ditatorial.

No entanto, se há calmaria na cúpula, surgem e crescem conflitos nas bases. Militantes e padres assistentes de movimentos de Ação Católica, particularmente JUC, JEC e Juventude Operária Católica (JOC), além da Ação Católica Operária (ACO), vão ser presos ou ameaçados nestes primeiros anos do golpe (1964-1968). Em vários lugares do país, padres serão alvo da repressão por proferirem sermões críticos à ditadura, e os estrangeiros sofrerão processos de expulsão. Vários bispos entram em conflito com autoridades militares em razão da repressão: os casos mais conhecidos foram os de Volta Redonda, cujo bispo é D. Waldir Calheiros e de Recife, que tem por arcebispo D. Helder Câmara.

O movimento estudantil foi o principal setor de oposição à ditadura. Foi a época das passeatas, sempre reprimidas pela polícia. Em 1968, numa destas manifestações no Rio de Janeiro, em março, um estudante foi morto. Formou-se um cortejo de mais de 20 mil pessoas. Em resposta à repressão, setores da Igreja apoiaram os estudantes. Poucos dias depois, em missa pelo jovem morto, a cavalaria investiu sobre padres, estudantes e outros participantes. O protesto culminou na passeata dos 100 mil, em junho, a maior manifestação de massa até então.

O que se observou neste primeiro período foi que mesmo bispos conservadores foram, pouco a pouco, levados a apoiar seus colegas em confronto com os responsáveis pela repressão: o discurso da caserna contra membros do episcopado levou a que o espírito de corpo falasse mais alto. Governantes ou simples autoridades militares se arvoraram em professores de teologia, querendo ensinar à Igreja qual era sua missão. O episcopado reagiu. Os conflitos eram localizados, mas levavam a reações mais amplas.

O endurecimento do regime

O protesto crescente na sociedade civil contra o regime ditatorial levou os generais a endurecer: perceberam que só manteriam o poder pela força, calando a oposição. A 13 de dezembro de 1968, decretaram o Ato Institucional nº 5, que fechava o Congresso e suspendia as liberdades constitucionais. Daí por diante, a tortura, que já era utilizada contra prisioneiros políticos, mas esporadicamente, se tornou uma prática sistemática nos interrogatórios.

O número de prisões cresce enormemente, e ampliam-se casos de morte sob tortura e/ou de desaparecimento. E assassinatos também. No caso da Igreja, começou em 1969 com um auxiliar de D. Helder, o padre Henrique Pereira Neto, que trabalhava com a juventude. D. Helder, em suas viagens ao exterior, denunciava as torturas do regime militar. O assassinato de seu assessor foi uma forma de retaliação. Em dez anos (1968-1978), sete padres ou seminaristas foram assassinados. Houve inúmeras outras formas de repressão, sendo uma das mais comuns os ataques difamatórios e, muitas vezes, a imprensa se prestou a esta forma de ataque. Dez padres estrangeiros foram expulsos do país. Vinte e nove bispos foram atingidos de uma ou outra maneira. Nenhum deles chegou a ser levado à prisão, mas alguns tiveram suas casas invadidas ou metralhadas (caso de D. Helder), documentos expropriados, um bispo foi sequestrado (D. Adriano Hipólito, de Nova Iguaçu). Casas e prédios pertencentes a entidades ligadas à Igreja foram invadidos (caso do Ibrades, no Rio de Janeiro), publicações foram apreendidas, às vezes na gráfica (como a Carta Pastoral de D. Pedro Casaldáliga, em 1971).

Em novembro de 1969, sete religiosos dominicanos são presos e torturados, por ligação com a organização revolucionária Ação Libertadora Nacional (ALN), dirigida por Carlos Marighella. O próprio Marighella é morto pela polícia dois dias depois. A mídia desencadeia ampla campanha contra “a Igreja terrorista”, “os padres comunistas”, os “traidores do Evangelho”. A Ordem dos Dominicanos, particularmente visada nestes ataques, no entanto, apoia seus membros. Três meses depois, um dos frades, frei Tito de Alencar Lima, é novamente levado para interrogatório, na Operação Bandeirantes (Oban), mais tarde renomeada como DOI-CODI, e barbaramente torturado. Depois de três dias, para interromper as torturas, frei Tito tenta o suicídio. É levado para um hospital militar e consegue se recuperar. Seu relato sobre a tortura acaba saindo da prisão e é publicado em muitos lugares no Brasil e no exterior2. Frei Tito foi solto junto com outros prisioneiros políticos quando do sequestro do embaixador suíço, em 1971. Depois de passar pelo Chile, ele se estabelece na França onde, como sequela psicológica das torturas, vem a se suicidar, em 1974. É considerado um mártir da Igreja.

A postura favorável à ditadura, presente logo após o golpe e nos primeiros anos do regime, cedeu o lugar a posições mais críticas. Em 1968, é eleito um secretário-geral da CNBB bastante crítico à ditadura, D. Aloísio Lorscheider. Em 1970, na Assembleia Geral dos Bispos, o documento final denuncia as torturas, mas num tom ainda cuidadoso. Até este momento, predominava na direção da Igreja uma preocupação de manter o diálogo com os militares, de não romper, não entrar em conflito direto.

Igreja x Regime Militar

A mudança de postura vai ocorrer em outubro de 1970, impulsionada pelo Papa Paulo VI. Um dia depois de um duro discurso contra a tortura no mundo – interpretado pela mídia internacional como sendo destinado ao Brasil -, o Papa destituiu o Arcebispo de São Paulo, D. Agnelo Rossi, promovendo-o a uma Congregação do Vaticano e nomeou D. Paulo Evaristo Arns para assumir o seu lugar. Foi a maneira diplomática encontrada pelo Vaticano para afastar D. Agnelo de São Paulo – um dos lugares onde a repressão era mais virulenta – e da direção da CNBB. D. Agnelo era considerado por muitos como um bispo pouco firme frente ao regime militar.

Em pouco tempo, D. Paulo mostrou a que veio. Três meses depois de assumir a Arquidiocese, um padre e uma assistente social foram presos. O bispo foi avisado e imediatamente se apresentou ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), para onde eles tinham sido levados, e pode vê-los com marcas de tortura no corpo. Ele mandou publicar, no domingo seguinte, em todas as igrejas da Arquidiocese, um sermão onde denunciava as torturas e fazia um contundente pronunciamento contra o caráter ditatorial do regime. A postura mudava radicalmente: em vez da busca de conversa, a denúncia; em vez do segredo, a publicidade.

A atitude de D. Paulo provocou uma profunda mudança na maneira de a Igreja agir. Pouco a pouco, começaram a aparecer declarações públicas de bispos e de conjuntos de bispos denunciando os atentados aos direitos humanos, não apenas contra membros da Igreja, mas contra qualquer pessoa, e exigindo a volta à democracia. O primeiro documento neste sentido é do episcopado do estado de São Paulo, “Testemunho de Paz”, de 1972.

Em 1971, D. Pedro Casaldáliga, um bispo de origem espanhola, recém-nomeado para a Prelazia de S. Félix do Araguaia, inaugura uma nova maneira de escrever Carta Pastoral, com a publicação de “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. O próprio título da Carta Pastoral já aponta o adversário desta Igreja: o latifúndio. O texto é dividido em duas partes. Na primeira, apresenta uma análise da realidade social da prelazia, relata o que tem sido feito e qual a proposta de ação; a segunda é uma documentação sobre todos os grandes proprietários de terra e empresas da região (com nome, endereço e telefone) e relatos testemunhais de casos de exploração de posseiros e trabalhadores da região por essas empresas.

A preocupação da Igreja com a situação dos povos indígenas leva à criação, em 1972, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão vinculado à CNBB. Constituído por missionários e bispos vinculados a este trabalho pastoral, o Cimi tem papel muito importante durante o período ditatorial, posto que a posição do regime militar é de que “os indígenas não podem impedir o progresso”. Desse modo, o Cimi contribui para a auto-organização e a autodefesa dos povos indígenas.

O ano de 1973 foi rico em publicações. Comemorando os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos em três regiões/realidades sociais, vieram a público os seguintes documentos: Eu ouvi os clamores de meu povo, documento de bispos e superiores religiosos do Nordeste (assinado por 14 bispos e quatro provinciais); Marginalização de um povo – o grito das Igrejas, documento de bispos do Centro-Oeste (assinado por seis bispos) e Y-Juca-Pirama – O índio: aquele que deve morrer, documento de urgência de bispos e missionários (assinado por seis bispos e seis missionários). Estes textos marcaram a história da Igreja do Brasil durante a ditadura: eles são, em primeiro lugar, uma denúncia das condições de vida do povo, mas também apontam e analisam a causa da situação, que estaria no capitalismo, sustentado pela ditadura militar, e conclamam à ação. O documento do Centro-Oeste inovava em mais um elemento: o texto foi escrito em linguagem simples, cheio de imagens, para ser acessível também aos setores populares.

Em 1975, surge a Comissão Pastoral da Terra (CPT), para ajudar a organizar e a defender os trabalhadores rurais, eles também vítimas da política agrária e agrícola da ditadura. A CPT foi um grande apoio para sua luta. O caderno Conflitos no Campo, publicado anualmente, é, até hoje, o mais completo levantamento dos conflitos envolvendo os trabalhadores rurais no Brasil.

O ano de 1976 talvez tenha sido o mais pesado para a Igreja. Dois padres foram mortos: o padre João Bosco Penido Burnier, assassinado ao lado de D. Pedro Casaldáliga, em São Félix do Araguaia e o padre salesiano Rodolfo Lukenbein, missionário, além de um indígena, Simão, em Merure, Mato Grosso. Um bispo, D. Adriano Hipólito, de Nova Iguaçu (RJ), foi sequestrado, deixado nu e pintado de vermelho, à noite, num lugar afastado. Na mesma noite, seu carro, vazio, foi explodido em frente à sede da CNBB, no Rio de Janeiro. Os fatos geraram forte reação por parte dos bispos, inclusive um documento, Comunicação pastoral ao Povo de Deus, que analisa os fatos e faz uma longa reflexão teológica sobre o papel da Igreja.

A postura ativa em defesa dos direitos humanos, dos pobres, dos indígenas, dos trabalhadores, dos posseiros, dos oprimidos atrai a repressão a estes setores da Igreja. A CNBB, a partir de 1971, tendo à sua frente D. Aloísio Lorscheider, presidente, e D. Ivo Lorscheiter, secretário-geral3, assume uma posição firme pelos direitos dos presos políticos, contra a perseguição, contra a tortura.

Na Assembleia Geral do Episcopado em 1977, os bispos aprovam um documento, “Exigências Cristãs de uma Ordem Política”, crítico à ditadura, cuja novidade consiste em ter sido assinado pelo conjunto dos bispos. Até então, já tinham sido lançados outros documentos, alguns mais críticos do que este, mas eram assumidos apenas por parte do episcopado.

Em 1979, outro atentado é cometido pelos militares contra D. Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu. Explodiram uma bomba embaixo do altar-mor da catedral da diocese. Em reação a este ato, dez dias depois, 10 mil pessoas participaram de uma procissão em desagravo a D. Adriano.

O episcopado continuou a publicar documentos coletivos sobre questões sociais nos anos seguintes, que foram discutidos e aprovados por ocasião de cada Assembleia Geral da CNBB.

Falamos até agora do posicionamento dos bispos, da CNBB, mas é preciso mostrar o que estava acontecendo nas bases da Igreja, onde o mais importante era o surgimento e o crescimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). As CEBs nascem do movimento de renovação da Igreja no início dos anos 1960. Surgiu a proposta de formar comunidades de base, onde os fiéis tivessem um papel ativo, como leigos. O Concílio Vaticano II veio dar um forte impulso a este movimento de renovação. O Plano de Pastoral de Conjunto (PPC), feito pelos bispos brasileiros ao final do Concílio e divulgado em 1966, fala, pela primeira vez, nestas comunidades. As CEBs dão muita força à articulação dos setores populares em defesa dos seus direitos, criam ou fortalecem movimentos sociais e contribuem para a resistência à ditadura.

A atuação da Igreja do Brasil, no período da ditadura militar, ficou marcada também pela intervenção do Vaticano, a partir do pontificado de João Paulo II, eleito em 1978. Seu pontificado criou sérias dificuldades para bispos, padres e leigos comprometidos com a libertação das maiorias oprimidas do continente. Sendo a CNBB a conferência episcopal mais importante da região, foi sobre ela que se exerceu a maior pressão. Ao menos 30 bispos sofreram alguma forma de advertência oficial do Vaticano em razão de sua atuação no campo sociopolítico.

A ofensiva maior foi contra a Teologia da Libertação. A preocupação com a influência da análise marxista nos textos de seus autores levou a uma condenação pela Congregação da Doutrina da Fé (antigo Santo Ofício), intitulada “Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação”, escrita pelo Cardeal Ratzinger (1984). Neste mesmo ano, abriu-se um processo contra o teólogo Leonardo Boff, o maior expoente desta teologia no Brasil. O processo resultou, em 1985, na sua redução ao silêncio por um ano (proibição de dar aulas e de publicar). A pressão de vários bispos brasileiros em favor do teólogo conseguiu a suspensão do silêncio um mês antes do fim do prazo determinado. Seguiu-se uma nova Instrução da Congregação, publicada em 1986, mais branda. No entanto, a Teologia da Libertação continuou sendo perseguida, suas publicações foram dificultadas ou suspensas, vários de seus autores sofreram processo do Vaticano, como ocorreu com o teólogo jesuíta Jon Sobrino (2007), já no pontificado de Bento XVI. No entanto, mesmo reprimida, esta corrente teológica continuou tendo adeptos e gerando novas reflexões.

Até o final da ditadura, em 1985, a Igreja Católica manteve a postura firme daqueles anos, em defesa dos direitos humanos, dos presos políticos, dos povos indígenas, dos trabalhadores e com crescimento das comunidades de base. A partir de meados dos anos 1990, os ventos conservadores passaram a ter mais força e contribuíram para uma menor presença no campo sociopolítico.

Ivo Lebauspin é sociólogo, professor aposentado da UFRJ, coordenador da ONG Iser Assessoria (Rio de Janeiro)

1 Cabe observar que o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, iniciador da Teologia da Libertação (1971), estava nesta Conferência, como assessor teológico.

2 Naquele ano, recebeu o prêmio de melhor reportagem da revista Look, dos EUA. O relato do frei Tito e sua história está longamente tratado no livro de frei Betto, Batismo de Sangue (2006; 1ª ed. em 1982). Um livro mais recente, das jornalistas Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meirelles, aborda outros ângulos desta história: Um homem torturado: nos passos de Frei Tito de Alencar Lima (Civilização Brasileira, 2014).

3 De 1971 a 1979, por dois mandatos, D. Aloísio e D. Ivo são mantidos nestes cargos. D. Ivo foi presidente nos dois mandatos seguintes, 1979-1983 e 1983-1987. Neste último período, D. Luciano Mendes de Almeida foi secretário-geral e, nos dois mandatos seguintes, de 1987 a 1995, foi presidente da CNBB.