Especial do Golpe

Estávamos nas ruas protestando com passeatas, bem organizados, movimento estudantil, do movimento sindical e sobretudo dos bancários e metalúrgicos. Nessa época, eu estava em Belo Horizonte, no quarto ano do curso de Sociologia, e era professora primária do Estado de Minas Gerais.

Na realidade, o golpe não se deu em 31 de março, mas sim no 1º de abril. Num breve retrospecto, o golpe surge em preparação para abril de 1964, com a renúncia do Jânio Quadros (PDC/UDN). João Goulart (PTB), o Jango, era o vice e a burguesia nacional e internacional, não queriam de jeito nenhum que ele assumisse a presidência da República. E ele assumiu com muitas amarras. Mas uma parte fundamental de suas propostas foram mantidas, e eram as do campo progressista, de esquerda, como as Reformas de Base. E essas reformas desencadearam uma violenta oposição, agravando o panorama político da conjuntura.

Se agravando por quê? As reformas de base incluíam, inclusive, a reforma agrária. E o Jango não abria mão disso. Quando fez o comício da Central do Brasil, no dia 13 de março, ele sente que a força social estava grande, mas que de fato existia um golpe em ebulição, um golpe de extrema-direita civil-militar para retirá-lo. A Câmara Federal decreta que a Presidência está vaga, porque ele estaria fora do país e, na realidade, ele não estava, pois embarcava para o Rio Grande do Sul. Acontece realmente o golpe, forças políticas de Minas Gerais e de São Paulo já se deslocavam para o Rio de Janeiro. Então, era tido como um caminho sem volta.

Os militares tomam o governo a partir de 1º de abril de 1964 e instalam o regime militar com uma plataforma nacionalista (fundar Petrobras, o BNDES, a Vale, várias empresas nacionais). E, nesse primeiro momento, destaco que as cassações e as repressões foram mais violentas, algumas prisões de líderes bem renomados e o processo de fechamento de algumas instituições. Estou destacando isso por quê? Porque nós nunca poderemos perder a perspectiva do que é um golpe, porque um golpe não é uma coisa de um dia, de uma hora para outra. Ele vai se consolidando. A diferença deste, de 1964, é que se eles tinham um projeto nacionalista, tinham também os coturnos, as botas e as armas. E eles perceberam que se fazia necessário um arrochamento maior nas repressões. E essa repressão foi por atos institucionais. Eles foram fechando as instituições, o Congresso, por meio de atos até chegar em 1968, no Ato Institucional nº 5 (AI-5).

Nós, da esquerda, já estávamos nas ruas protestando com passeatas, bem organizados. E a organização vinha do movimento estudantil, do movimento sindical e sobretudo dos bancários e metalúrgicos. Nessa época, eu estava em Belo Horizonte, no quarto ano do curso de Sociologia, e era professora primária do Estado de Minas Gerais.

Em 1968, com o AI-5, a ditadura fecha o cerco e define no gabinete dos presidentes militares golpistas, quais eram os presos e presas que morreriam, quais seriam assassinados. Isso está em várias publicações. A repressão, costumo dizer, tentou destruir uma juventude que é da minha geração, dos anos 1960, e tentou quebrar seus os sonhos dourados de liberdade e democracia. Porque ali se colocava uma coisa: ou você lutava contra a repressão ou você era alienada. Não tinha outra alternativa. Por isso que acho interessante falar sobre o golpe de 1964.

Trazendo Walter Benjamin, um autor que adoro, que diz que não é para esquecer mas lembrar do passado. Não esquecer para que ele nos ilumine no presente, e que nem no presente ou no futuro volte a acontecer. Por isso é importante esse número da revista Teoria e Debate, sobre 1964. E não podemos esquecer que os militares tinham um projeto nacionalista de sociedade, mas tinham também um projeto de morte. Quem era contra, eles prendiam, matavam, torturavam. Eu, como a maioria da minha geração que lutou, entramos para a clandestinidade. E ela, por mais difícil que seja e que tenha sido, nos ensina uma questão fundamental, pelo menos para mim, que é saber com quem estou falando e o que estou falando, e a hora do silêncio. Há momentos que você tem que silenciar para poder lutar.

Entrei para a clandestinidade, tinha meus 20 e poucos anos e estava grávida da minha primeira filha, que nasceu em 1969, aqui em São Paulo, clandestina também. Eu e meu então companheiro clandestinos. E tive a dimensão da solidariedade. Porque para fazer o parto tive a ajuda da minha mãe, mas tive que procurar, por meio da organização política, médicos para fazer o parto. E essa dimensão da solidariedade é muito importante, porque a profissional médica que fez não sabia quem era a pessoa que estava atendendo. Foi cesariana e nasceu a minha primeira filha. Fui presa quando ela tinha um ano e dez meses. Passei por todos os tipos de tortura, que não vale a pena elencar aqui. Mas uma das piores é a tortura psicológica, porque a física, você respira e tenta aguentar mais um pouco. A psicológica, não. Essa é ‘eu vou matar sua filha, eu vou matar sua filha, eu vou matar sua filha’. E como várias crianças, depois ficamos sabendo que foram torturadas, física ou psicologicamente, a dor da tortura fica muito maior.

Mas, por outro lado, a dor da tortura também nos coloca num patamar não de heroínas – porque triste do país que precisa de heróis ou heroínas. Mas de mulheres. O patamar que me coloca é o patamar de mulheres que construíram, abriram as portas da construção da democracia no nosso país, dessa frágil democracia. bem frágil, bem jovem democracia.

E, nesse sentido, transformar todos os lugares de tortura em museus tem uma orientação importante na perspectiva da memória, verdade e justiça. No Brasil, a questão da memória, verdade e justiça tem um vácuo, porque a verdade está incompleta. E como foi uma anistia ampla, geral e restrita, os torturadores foram anistiados também. O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que me torturou, era um pavor, um horror, foi anistiado também. E isso é muito violento. Por isso que nós, ex-presas políticas e ex-presos políticos, ainda batalhamos, ainda questionamos: onde estão nossos mortos?

Por isso as comissões de mortos e desaparecidos são tão importantes, porque precisamos completar a memória, a verdade e a justiça. Não acho que é virando a página, porque isso não se vira a página. Em 60 anos, foi uma geração de 1968 que lutou, que brigou. E nos 60 anos do golpe civil-militar de 1964, é extremamente importante falar e extremamente doloroso silenciar sobre isso. Porque jovens deram a vida – que é o bem mais precioso que cada um de nós tem, é a nossa própria vida – para que pudéssemos chegar onde chegamos.

E onde chegamos? Chegamos em eleições diretas para presidente, elegemos a primeira mulher ex-presa política presidenta do Brasil, a Dilma Rousseff (PT). Criamos a Comissão Nacional da Verdade (CNV), a presidenta Dilma colocou de pé essa Comissão. Hoje temos uma pauta ampliada que não teríamos conseguido na perspectiva de gênero, raça, classe, LGBTQIA+, indígenas. E quero dizer que todos esses sujeitos, foram sendo nomeados como sujeitos políticos, porque só numa democracia eles podem aparecer. E nessa construção toda, reafirmo a minha convicção de que aquela geração estava certa e reafirmo a convicção na esperança de melhorar sempre.

O feminismo no Brasil, por exemplo, não teria reaparecido com tanta força se nós – presas, torturadas, exiladas, em nome das assassinadas, estupradas na tortura, todas nós, grande parte da minha geração –, não tivéssemos sobrevivido para poder contar a história, para que não se repita mais. E por isso temos que ficar com os olhos bem fincados no retrovisor da história, para que não se repita nunca mais. Costumo dizer que participei de dois golpes, e em ambos fiquei do lado da resistência. O golpe civil-militar de 1964 e o golpe multinacional, misógino e machista contra Dilma Rousseff. E de que lado nós duas estávamos? Do lado da resistência.

São diferentes golpes. O de 2016, contra Dilma Rousseff, não precisou de coturno nem de armas, mas teve a arma do discurso no Congresso Nacional, a arma da fala, da narrativa, da mentira. O golpe contra Dilma foi construído preparando um caminho para prender o presidente Lula (PT) e implantar um dos mais decrépitos governos fundamentalistas que tivemos.

Nesse sentido, encerro dizendo que é muito bonito ver novas gerações assumindo pautas e assumindo a resistência, mas a nossa história não pode nunca ser esquecida. Não podemos nunca deixar de falar, porque se não fala, não é lembrada. Em história aprendi que não se passa um pano com água oxigenada. A história é para ser transmitida e refletida a partir do que foi vivido.

Eleonora Menicucci de Oliveira é professora titular sênior da Unifesp e visitante sênior da UFABC, foi Ministra de Políticas para as Mulheres do Governo Dilma Rousseff e é presidenta do Conselho Curador da FPA