Especial do Golpe

Os perigos e as descobertas vivenciadas pela população negra durante a ditadura militar. O espírito black power foi o primeiro passo para a militância, que impulsionou o pensamento e postura críticas.

Caminhada por Zumbi chega à Praça Ramos, primeira manifestação da Consciência Negra em 20 de novembro de 1979

Na juventude ouvia a música Pra não dizer que não falei das flores e mesmo sem muito entender, procurava me inteirar dos dizeres e dos fatos... o tempo passou! Hoje compreendendo perfeitamente e, como toda/o brasileira com consciência crítica e integrante das trincheiras de luta pela vida digna das/os trabalhadoras/es, mantenho a indignação em relação ao passado e o pesar quanto a atualidade, com o reavivamento da extrema-direita.

O despertar para a vida política brasileira e internacional, ocorreu a partir do ingresso no Curso de Serviço Social na PUC/SP, nos anos 1980, aos 20 anos. Antes disso não imaginava que vivíamos no Brasil uma ditadura que se instalou em 31 de março de 1964, após o Golpe Militar. Na infância e juventude, em minha casa reinava um silêncio resultado de uma ignorância coletiva sobre os temas da vida política. Ou melhor, a ignorância do povo brasileiro, fazia parte do esquema de manutenção da ditadura militar.

A infância deixou saudades pelas brincadeiras de rua até tarde da noite, mas garante também lembranças: das músicas caipiras (sertanejas de raiz) ou da Jovem Guarda, que impulsionavam bailinhos nas garagens, no entorno da moradia nas periferias; da atividade cívica diária no pátio da escola, quando as crianças tinham que manter posição de respeito à bandeira brasileira, enquanto tinham que cantar (sem erros) o Hino Nacional; do “pau de arara” que levava os pais, os parentes e a vizinhança para os trabalhos nas distantes roças em Adamantina (SP) e adjacências; e, dos fins de semana familiares com almoço preparado pelas mulheres.

Na adolescência e juventude passei a apreciar a “música preta”, o que felizmente foi conduzindo a vida para o lado cultural e da sociabilidade saudável entre a juventude pobre e negra, por meio do mergulho nos bailes blacks, fortemente presentes nas periferias de São Paulo, principalmente em Osasco, onde morava. Hoje tenho consciência que fui salva da ignorância, da violência e apatia social, por meio do espírito black power que passou a embalar os corres periféricos na frenética busca por cultura e lazer. Mas também quando encontro algum ser vivente naquele passado, ouço relatos de que muitos dos rapazes foram presos ou mortos pela polícia, e, de que muitas moças se tornaram mães de amontoado de filhos, se prostituíram ou seguiram vidas incertas.

No meu caso, o espírito black power foi o primeiro passo para a militância, que impulsionou o pensamento e postura críticas, o que depois somou com o aprendizado acadêmico e político. Tudo isso foi contribuindo para as vivências coletivas, regadas a pulsante alegria que quando não é tolhida, constitui a vida da juventude.

Entre 1964 e 1985, enquanto o “pau comia” nos quarteis, nas prisões e nas ruas eu vivia protegida no seio da família e da comunidade preta. Que bom, tive PAZ! Mas nem por isso dá para dizer que a “felicidade foi plena”, a consciência de classe que fui adquirindo, com os aprendizados marxistas, me despertaram para a vida com “responsa social” e isso fez a diferença, passei a saber que quem vacilava diante dos patrões, dos milicos e da branquitude, “virava bolsa”.

Ter consciência de classe e vivenciar o ativismo da esquerda diante de um poderio elitizado, colocou e coloca em prova as/os ativistas. Nos 21 anos do aviltante regime da ditadura militar, o poder oficial foi centralizado nas mãos das Forças Armadas, negando à população a participação política em todas as esferas. Durante a ditadura, ocorreu o “milagre econômico”, ao mesmo tempo em que houve congelamento dos salários, empobrecimento da maioria da população, formas continuadas de violência no espaço urbano e rural, repressão política, entre outros fortes fatores de negação de direitos e cidadania. Os “milicos” e adeptas/os não davam e não dão sossego para as/os trabalhadoras/es, para as/os estudantes, para as/os professoras/es... enfim a ordem da extrema-direita era e é destruir quem luta por justiça, direitos e cidadania. O tolhimento à oposição foi ao extremo, levando a prisões, torturas, assassinatos, desaparecimentos, resultado numa forte onda de exílios. Diante do caos, o posicionamento contrário à ditadura e pela vida emergiu fortemente, porém mediante à extrema repressão.

Ao compreender esse lado podre da história do Brasil, há um incomodo que não pode ser “jogado para baixo do tapete”. Trata-se do baixo grau de informação na produção literária/teórica/política da esquerda e do campo progressista sobre a atuação política do Movimento Negro e organização de Mulheres Negras, no enfrentamento à ditadura militar. Pesquiso raça, gênero e políticas públicas desde 1989, e, é para lá de curioso refletir sobre – qual seria o motivo para o baixo grau de informação sobre o enfrentamento das/os ativistas negras/os à ditadura militar? Para responder à tão atazanante questão, encontramos fortes marcas do racismo.

Racismo não é uma efemeridade, e tem sido historicamente enfrentado

Partindo da existência de um sistema social e político dotado de mecanismos que produzem desigualdades sociais e raciais, o racismo se perpetua contando com abordagens histórica e/ou teórica, de maneira intensa. Assim, o racismo no Brasil, também conhecido como apartheid à brasileira, embora não seja estabelecido por leis separatistas, não pode ser visto como uma efemeridade. É, sim, um sistema dotado de mecanismos que produzem e reproduzem desigualdades sociais e raciais, destinando a população negra aos cantões da sociedade,

Infelizmente, constata-se que o racismo se faz presente na historicidade da esquerda e do campo progressista nacional, ao relatar sua própria trajetória de luta e analisar os processos de reação à ditadura militar. Nesse caso é exercido o pecado da “História Única” e do “Apagamento” da presença de negras e negros nos campos de luta, incrustando na vida cotidiana da sociedade brasileira o “pensamento colonizado”. Assim, vale recorrer às reflexões elaboradas pela nigeriana Chimamanda Ngozi Adchie no livro O perigo de uma história única, de Antônio Bispo dos Santos no livro Colonização e quilombos: modos e significados, e, na entrevista concedida por Kabengele Munanga na entrevista concedida à FPA denominada Nosso racismo é um crime perfeito.

Adchie, Santos e Munanga alertam sobre as constantes estratégias de apagamento de parte da história do povo negro no Brasil, referindo-se aos colonizadores e ao pensamento colonizado, que produziram e produzem um fosso histórico, que não têm limites, na busca constante da dominação pelo apagamento da história, situação que só pode ser revertida a partir da “luta por transformação e consolidação de direitos”. O esquecimento e/ou o apagamento histórico fazem parte das estratégias colonizadoras, do não reconhecimento valorativo da luta do povo negro contra a exploração e a opressão, e, também do Continente Africano como guardião da humanidade.

Constata-se um complexo universo, em relação as estratégias de perpetuação do racismo existente, seja como obra ou como crime, sustentado pela visão antidemocrática da branquitude. Nesse contexto, é importante que seja reconhecida a construção de caminhos para a superação dessa marca indelével, que é o racismo na sociedade brasileira.

Remando na contramão em relação aos posicionamentos colonizadores, que levam ao apagamento histórico e a desumanização, Abdias do Nascimento é citado por mim no livro sobre políticas de igualdade racial, destacando a emblemática frase que utilizava em suas palestras e discursos: “a luta pela liberdade, cidadania, justiça e humanização inicia-se desde o momento em que a/o primeira/o africana/o foram capturadas/os no Continente Africano e, os que não morreram no navio negreiro, chegaram aqui no Brasil na condição se seres humanos escravizados”.

Seguindo as trilhas sobre o enfrentamento ao racismo, ao machismo e a todas as formas de opressão (inclusive à ditadura militar), desenhadas e deixadas como legado por Abdias Nascimento e Lélia Gonzalez, é possível provocar o desvendamento a respeito da presença do movimento negro e da organização de mulheres negras na oposição ao conservadorismo e na luta por um Brasil democrático, embora seja sempre necessário frisar que a democracia é um processo em construção. Nesse sentido, será apresentado um breve resumo da trajetória política desses dois imprescindíveis baluartes da luta por justiça, direitos e visibilidade para a população negra, como sujeita de sua própria história! Ambos já se foram, Abdias Nascimento faleceu em 2011 (nascido em São Paulo em 1914, em março de 2024 completou 110 anos), e, Lélia Gonzalez faleceu em 1994 (nascida em Minas Gerais em 1935, teria completado 89 anos em fevereiro de 2024).

Abdias Nascimento, tornou-se referência de luta intransigente contra o racismo e deixou um legado imensurável em várias áreas – foi economista, professor, político poeta, ator, escritor, dramaturgo, artista plástico e ativista dos direitos civis e humanos da população negra. Em 1982, foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, na década de 1990 chegou ao Senado como suplente de Darcy Ribeiro e assumiu a cadeira de senador em duas ocasiões. Foi o primeiro gestor sobre políticas da igualdade racial com a criação pelo governo Leonel Brizola (RJ) da Secretaria de Defesa e Promoção das Populações Negras. De 2000 a 2011 foram várias as participações, reconhecimentos e premiações: em 2003, representou o movimento negro no ato de criação da Secretaria Especial e Política de Promoção da Igualdade Racial (Seppir); em 2004 recebeu o Prêmio Toussaint Louverture concedido pela Unesco, em Paris; recebeu menção honrosa no Seminário Internacional Políticas de Promoção Racial realizado pela Seppir; foi homenageado em São Paulo no Fórum Cultural Mundial, com a campanha Abdias Nascimento, Prêmio Nobel da Paz; em 2006, foi condecorado com a Ordem Rio Branco, em Salvador (BA) durante a cúpula de chefes de Estado da 2ª Conferência de Intelectuais Africanos e da Diáspora. O artigo Abdias Nascimento: descobertas instigantes da Revista Capoeira da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, de autoria de Elisa Larkin Nascimento e Matilde Ribeiro, homenageou seus 101 anos.

Referindo-se à ditadura militar, em 26/12/2012, o site Vermelho publicou o artigo Ditadura quis prender Abdias Nascimento por sua influência, onde informa que “o ex-deputado e pesquisador Abdias Nascimento, um dos maiores ativistas de direitos humanos do país quase foi processado pela Lei de Segurança Nacional durante o regime militar”. Larkin Nascimento informa que, na ditadura, Abdias foi alvo “de vários inquéritos policial-militares, que o impediram de retornar ao país, ele estava em Nova York na promulgação do AI-5, teve o passaporte apreendido e passou a ser considerado apátrida, tendo vetada a entrada em países como a França” e, a partir das participações e inserções em atividades em diversos países dos continentes americano, africano e europeu, Abdias desenvolveu carreira internacional e conviveu com “grandes intelectuais da época. Contribuiu para a criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros e trabalha com o ensino da história e cultura de matriz africana e das relações etnicorraciais. Em 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que inclui o nome de Abdias do Nascimento no livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, por meio da Lei 14.800/2024.

Lélia Gonzalez, ícone do antirracismo e do antimachismo: reforçou o feminismo negro à brasileira. Graduou-se em História e Geografia, fez mestrado em Comunicação e doutorado em Antropologia Política e atuou como professora em instituições de nível médio e superior. Para ela, o conceito de cultura deveria ser pensado em pluralidade e servir como elemento de conscientização e organização política. Em 1978, foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU); integrou a Assessoria Política do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras; contribuiu na fundação e no desenvolvimento do Grupo Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras.

De maneira contundente denunciou o racismo e o sexismo, como formas de violência que subalternizam as mulheres negras, seu legado contribuiu para impulsionar reflexões e ações sobre a questão racial, e especialmente sobre o papel da mulher negra no Brasil e no mundo. No livro Lélia Gonzalez: Por um feminismo afro-latino-americano... Ensaios, intervenções e diálogos é apresentada valorosa reflexão sobre questões internas do movimento feminista, informando que este “não deixa de reproduzir o imperialismo cultural, portanto pode ser esquecido que alguns setores “não têm o menor escrúpulo em manipular o que chamam de mulheres de base ou populares, como simples massa de manobra para a aprovação de suas propostas (determinadas pela direção masculina de certos partidos políticos)”, alega ainda que felizmente alguns setores desse movimento tem sido parceiro, e que as mulheres negras têm sido protagonistas visando a construção de relações mais democráticas entre as mulheres.

Um dos primeiros artigos escritos por Lélia foi Mulher negra: um retrato e, paralelamente, lançou o livro Lugar de Negro escrito em parceria com o sociólogo Carlos Hasenbalg (publicado em 1982), abordando um panorama histórico sobre o modelo econômico de 1964. O livro Lugar de Negro versão século 21, na Apresentação traz a seguinte pérola: “Lélia Gonzalez, em diversos de seus textos, relembra uma frase de Millôr Fernandes sobre a peculiaridade do racismo brasileiro, ao dizer que ‘no Brasil não existe racismo porque o negro conhece o seu lugar’, mas ‘saber o seu lugar’ é uma expressão de naturalização das posições sociais”, trata-se de uma “hierarquia presumida que aloca indivíduos segundo os marcadores sociais de raça, gênero e território”. Entre tantas contribuições, em 1988, Lélia protagonizou a idealização e realização do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, evento que provocou mudanças de rota da participação política das mulheres negras, impulsionando-as ao empoderamento. Em entrevista a Patrulhas Ideológicas (1979), Lélia alegou que a esquerda tem minimizado tranquilamente as reivindicações do movimento negro e das mulheres negras, “embora nós (somos teimosos, estamos aí na luta, é lógico). Nós participamos do movimento de anistia, estávamos aí nas passeatas com nossas faixas Movimento Negro Unificado”, mas a expressão do MN não aparece, somos “censuradas pelo seguinte: na hora de ler a moção do apoio do movimento negro, só leram o que interessava ao discurso geral”, o pessoal diz que não existe racismo no Brasil, e o povo “complementa da seguinte maneira: Porque o negro se põe no seu lugar, com isso além de uma discriminação, uma divisão racial do trabalho que a gente percebe tranquilamente, há uma divisão racial do espaço também”. Reforça que a atuação da polícia, ou melhor da repressão policial, persegue negras e negros, no caso “quando eu falava de semelhança com a África do Sul, a polícia brasileira ataca as favelas, invade as casas das pessoas, rouba os objetos das famílias e, vejam, a questão do desemprego, da própria crise econômica brasileira, como ela é articulada com o racismo”.

Na entrevista ao Jornal do MNU, Lélia destaca “o que a gente percebe é que o MNU cutucou a comunidade negra no sentido de ela dizer também qual é a dela, podendo até nem concordar com o MNU”. Aborda também a importância da existência de governadores negros e que o movimento negro tem que atuar junto com estes personagens, para que não fiquem dizendo: “Olha, sou o primeiro governador negro eleito”, só isso não basta “é importante que eles percebam a tarefa, a exigência ética que eles têm com relação a sua comunidade. E se é uma exigência ética tem que ser política também, porque as duas coisas se articulam”.

A trajetória de Abdias do Nascimento e de Lélia Gonzalez e os fatos históricos que trazem a luz, em relação a ação estratégica do movimento negro e da organização das Mulheres Negras, demonstram que a luta das/os negros é historicamente incessante e que as instituições que conformam este setor do movimento social, foram e são ativas na luta contra a ditadura militar e suas expressões atuais, junto com os setores à esquerda e progressistas da sociedade brasileira.

Ficando por aqui, impulsionando novos debates

É importante reconhecer a profundidade da condução excludente da história do Brasil, pois desmascara processos de conservadorismo, autoritarismo, apagamento histórico e discriminações.

Por outro lado, é importante frisar que nem tudo é “terra arrasada”, em relação ao antirracismo é fundamental fortalecer a proposição de as/os negras/os é protagonista no enfrentamento às estruturas conservadoras e retrógradas. A ampliação das possibilidades de fazer valer a justiça e a recondução da história, só se faz coletivamente.

Segundo a pesquisadora e ativista Nilma Lino Gomes, o Movimento Negro e a organização das Mulheres Negras são educadores, levando a sociedade brasileira (incluindo a esquerda e os setores progressistas) a se reeducar para o exercício da construção de democracia efetiva.

Para tanto e antes de qualquer coisa, superar o caráter autoritário do atual Estado Democrático de Direito, por meio da participação plena de todos os envolvidos nos processos de transformação da natureza e das condições de vida da produção, é o que existe de mais revolucionário. Toda e qualquer ação e/ou linguagem deve ser baseada na multiplicidade dos seres humano e da história, respeitando-se as diversas formas de ser e estar no mundo.

Matilde Ribeiro é pós doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC). Mestre em Psicologia Social e Doutora em Serviço Social pela PUC/SP. Foi Ministra da Igualdade Racial (Governo Lula, 2003 a 2008); Secretária Adjunta da Secretaria de Igualdade Racial da Prefeitura de São Paulo, em 2013/4; e, Assessora dos Direitos da Mulher na Prefeitura de Santo André, no período de 1997 a 2001. Atualmente é Professora Adjunta no Curso de Pedagogia/Instituto de Humanidades e coordenadora do Grupo AMANDLA da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).