Especial do Golpe

Este texto foi originalmente publicado no Folhetim de 22 de janeiro de 1984. Depois foi publicado no livro 'Maria Antonia: uma rua na contramão', organizado por Maria Cecília Loschiavo dos Santos

Na pequena sala 7, no primeiro andar, a aula é pontuada pelo tilintar do marcador quando, lá fora, o cobrador registra as passagens pagas ou avisa o motorneiro para prosseguir caminho. Ligando a Consolação e a Angélica, o bonde atravessa a Maria Antônia. Quem subiu lá pelos lados da Biblioteca Municipal, desce em frente à faculdade.

Colunas greco-romanas sustentam a fachada avarandada. No hall de entrada, painéis com as fotografias dos primeiros professores e formandos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Um pequeno lance de escada. O saguão: um balcão, o livro e o relógio de ponto, um telefone e uma instituição: Dona Floripes, desde sempre e para sempre na recepção. Cadeiras circundam o saguão, encostadas às paredes, sob os amplos vitrôs. Professores, estudantes e funcionários transitam, conversam, esperam pelo momento de entrar em classe, quando soar a campainha, acionada pelo “seo” Zé Miguel. Comentam-se notícias de jornal, o último filme, um comício, as disputas estudantis no Grêmio. Ensaia-se perante os colegas o seminário, trocam-se livros, bibliografias, notas de aula, enquanto professores passam pela saleta da correspondência, entregando e recebendo cartas, livros, revistas. À direita e à esquerda, salas de aula: sobre um pequeno tablado, a cátedra (modesta mesa, cadeira de espaldar alto), mesas onde se instalam os alunos, dois a dois. O tratamento de professores e estudantes é cerimonioso – senhor, senhora (nunca, porém, o “Vossa Excelência” do largo de São Francisco).

À esquerda de quem entra, a escada branca, corrimão de ferro. Subindo, no primeiro andar, à direita, a secretaria, onde reina o “seo” Miranda. Corredores para onde se abrem as salas de aula. Na maior delas, conferencistas estrangeiros ou outros convidados são ouvidos. Nela é ministrado o curso de Didática Geral para todos os licenciados da faculdade. O velho professor de Pedagogia explica o princípio do terceiro excluído: “Ou é cadeira ou é banco, não há terceiro termo”. Lá do fundo, o gaiato, aluno de Filosofia, replica: “E o banquinho?” No segundo andar, salas de professores, bibliotecas dos departamentos, a sala dos fundos onde, quando for chegado o tempo, serão ministrados cursos de pós-graduação de Filosofia e Ciências Sociais. No terceiro andar, diretoria, reitoria, secretaria geral, salão nobre onde se reúne a Congregação, defendem-se teses, ministram-se aulas inaugurais. No último andar, sala de estar, cafezinho dos professores e funcionários, jardim.

De volta ao saguão, descendo a escada, almoxarifado, centros estudantis. Um pátio. À direita, biblioteca central. Em frente. Grêmio e restaurante. Pelo interior do Grêmio, um lance de escada conduz ao prédio vizinho, instalação das Exatas e das Letras.

Prosseguindo pelo pátio, mais à esquerda. Economia e Administração, instalação moderna, porta da frente abrindo para a Dr. Vila Nova.

Em torno, livrarias, repúblicas de estudantes, o Bar do Zé, o Querência (depois, Científico), o Bar Sem Nome, a imponência protestante do Mackenzie nos seus tijolinhos...” e o vento levou”. A guerra ainda estava circunscrita aos torneios esportivos, o Mackenzie cedendo o auditório para ciclos de conferências da Filosofia, um deles aberto por Caio Prado Jr. …Numa ponta, a Vila Buarque com seus palacetes, na outra, a Consolação: cursinho do Grêmio (na Martinico Prado), Redondo, Arena, Estadão. Que acontecimento, o primeiro número do Jornal da Tarde, lido ainda quente das prensas, tão intelectual. Avenida São Luís, Barba-Azul, Pari Bar, ponto de encontro das celebridades, dos professores estrangeiros. cinemas. Praça da República. Ipiranga-esquina-da-avenida-São-João. Salada Paulista, Bar do Jeca. Lá longe, o filé do Moraes, depois da sessão da meia-noite, dedicada aos filmes “de arte”.

Mas, afinal, quem é essa tal de Maria Antônia de quem vocês não param de falar?

Não é quem, é quê.

Não é uma pessoa?

Era uma rua, lá em São Paulo. Foi um tempo, sabe? Já faz tempo.

(Diálogo do exílio, inverno dum ano dos anos 70.)

Começavam os anos 60. Na Biblioteca Municipal, o grupo dos Desajustados da Vida, beatniks existencialistas, sentenciava: “Deus está morto. Vimos seu enterro. Oficiado por Sartre que O lançou ao Sena”. No final da década, numa exposição do Exército, no saguão dos Diários Associados, um cartaz: Sartre e Marcuse conduzem ao vício.

Sartre veio. Simone também. Cuba. Polêmicas inflamadas sobre a pretensão de conciliar marxismo e existencialismo, oficialmente definido pela esquerda como ideologia pequeno-burguesa decadente. Todo mundo lá, ouvindo e discutindo: o pessoal das Exatas, das Ciências Sociais, da Filosofia, médicos, advogados, jornalistas, direita, esquerda, franco-atiradores. Como lá estiveram todos quando, durante um mês, Foucault apresentou Les Mots et les Choses, ainda inédito. Chegara a hora e a vez do estruturalismo, das descontinuidades e das rupturas epistemológicas, do “discurso” e das “leituras”, das cesuras. “Não tem história no que esse cidadão faz. Já nem parece o autor da História da Loucura. Foram-se Braudel e Soboul?” Escândalo epistêmico que prosseguiria para tormento de muitos quando os livros de Althusser despejaram a maquinaria do althusserismo, ousando ser estruturalista e marxista. Querelas de antanho, quando os debates giravam em torno da cientificidade, finalmente indubitável, do materialismo histórico e dialético, pondo cobro aos humanismos vários, separando de vez ideologia e ciência. Seminários para ler rigorosamente O Capital – historiadores, sociólogos, filósofos, literatos, economistas, físicos, matemáticos. Gente da faculdade, que não iria sucumbir à “moda Althusser”. Hegel os protegia. Ou, no comentário galhofeiro de alguém: “Setz, Gesetz e Re-Gesetz”.

De tocaia, no saguão, os rapazes do recém-criado departamento de Psicologia estão à cata de quem aceite submeter-se aos testes, demonstrando haver uma ciência psicológica. “O teste é objetivo, sabe? Puramente científico. Não vamos invadir sua intimidade. Olhe, nem precisa dar seu nome.” O pessoal das Exatas sorria. A turma da Filosofia tecia sabidas considerações sobre os limites epistemológicos da psicologia, deixando por conta do grupo de Ciências Sociais a crítica da falta de rigor nos questionários e nas “medidas”. Todo mundo encontrava um jeito safadinho de escapulir dos testes, dos quais, afinal, o que se tinha era medo mesmo. Sabe-se lá o que revelariam? O gosto pela psicanálise viria só um pouco depois. Por enquanto, ainda era um “grosseiro biologismo positivista”, apesar de os antropólogos lidarem com as estruturas elementares do parentesco. “São uns funcionalistas,” Dixit.

No Rio, tempos do ISEB. Na Maria Antônia, os sociólogos explicavam a diferença conceitual e política entre as expressões “país atrasado” e “país subdesenvolvido” (ainda não chegara o momento do “país em vias de desenvolvimento” nem do “país dependente”). Desenvolvimento desigual e combinado, ainda não, mas quase chegando lá. Debatia-se o projeto (a palavra correspondia, para fins de localização no universo pensante, ao uso que, mais tarde, seria feito do termo “leitura”, esquecidos, os que a usavam, de sua origem existencialista pequeno-burguesa decadente). Coisas do tempo da revolução democrático-burguesa, do nacionalismo. Há ou não um pensamento brasileiro? É preciso criá-lo, se não existir. Qual é o caráter nacional brasileiro? Quem é o povo no Brasil? Artigos na Revista Brasiliense e no Suplemento Literário do Estadão. No curso de Ética e Política os alunos de Filosofia, História e Ciências Sociais enfrentavam a dissertação: “Quais os problemas éticos de um indivíduo de um país subdesenvolvido?” E a meninada do CPC entoava o “Big Ben”, repetindo o refrão: “subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido”. Discutia-se Brecht e Lukács, enquanto, no Grêmio, acirravam-se as disputas entre as chapas da direita, do PC, da Polop, da JUC. “Ela é corajosa mesmo. Sabia que os pais dela são do PC e ela é da Polop?” “Não diga! Menina de fibra.” A revolução se faz por etapas? É aceitável a aliança de classes? O pessoal das Exatas, às voltas com a questão abissal: há ou não uma dialética da natureza?

E vieram Gimba, Eles não Usam Black-tie, A Semente. O Grêmio apinhado: Gianfrancesco Guarnieri debate a última peça. “É isso mesmo”, declara convicta a estudante de longos cabelos flamejantes, “aquela mulher só conhece o amor pequeno-burguês, pegajoso, contrarrevolucionário”. Pronta e zangada, a réplica de um professor: “Que bobagem é essa de amor pequeno-burguês? Qual o amor que não é pegajoso? Que tolice é essa de amor contra-revolucionário?” O que era o amor? Extasiados, víamos sessões seguidas de Hiroshima, mon Amour. Nouvelle vague. Cinema italiano –, La Dolce Vita é um filme cristão”. “Não é, não.” “Ora, o que você pensa que é o peixe no final do filme?” Kurosawa. Cinema-novo. Na Bienal, em companhia de Vlado Herzog, reverentes, acompanhávamos a projeção de Outubro e de O Encouraçado Potemkin. Depois viriam Oito e Meio e O Ano Passado em Marienbad. O Arena inventava o sistema do Coringa. O Oficina encenava Os Pequenos Burgueses. Um dia, que nem sonhávamos possível, pois contrariava a marcha da história, uma outra marcha nos faria ver Terra em Transe, nós que havíamos visto Rio 40 Graus... O Tuca ganharia o prêmio do Festival de Nancy com Morte e Vida Severina e, alguns anos depois, no tecido de uma outra história impossível, o Tusp arrancaria aplausos, no mesmo lugar, com Os Fuzis da Senhora Carrar, dirigido por Flávio Império, atores seus indo protagonizar Os Herdeiros de um mundo que não viria. Estavam por vir as polêmicas em torno de Godard, os festivais da MPB, as canções de protesto desalojando o intimismo da bossa-nova. Mas, ainda não. Seria depois. Um pouco muito depois.

O cerimonial das defesas de tese. Salão nobre abarrotado. As becas negras engalanadas nas cores das diferentes escolas e disciplinas. As pesquisas concluídas, atestando que o propósito da fundação – criar pesquisadores de “alto nível” – se cumpria, malgrado a férrea oposição das Grandes Escolas à Maria Antônia.

Entre a recíproca emulação de grupos autorreferidos, confiantes em sua excelência, e os ressentimentos nascidos de disputas e discriminações; em meio ao despotismo da cátedra e à louca competição por ela desencadeada, destroçando impiedosamente vidas, carreiras e esperanças tanto quanto estimulando o florescer de outras; laica, livre-pensadora, racista, machista, mesquinha e fecunda, ciosa de sua autonomia e liberdade, conflituosa, distribuidora de privilégios contestáveis e, no entanto, malgrado injustiças, também capaz de reconhecimento pelas obras que fazia nascer, a Maria Antônia se preparava, na gestão de Ulhoa Cintra, para sua primeira reforma universitária. Sob sua orientação, almejava-se criar verdadeiramente uma universidade em sentido pleno e não mero nome para um conglomerado de escolas rivais. O sinal de partida fora dado pelo “baixo clero”. De um lado, a criação da Associação dos Assistentes (de onde nasceria, anos depois, a Adusp), e de outro, a célebre greve “do terço”: reivindicação da representação estudantil de um terço nos órgãos colegiados, até então restritos a professores. “É o comunismo! É o comunismo chegando!”, bradavam horrorizados os conservadores naquele ano de 1963. Viriam à forra em 1964.

Gente! O Jânio renunciou!

Impossível! De onde você tirou isso?

Acabou de dar na rádio, agorinha mesmo.

Mas, por quê?

Ele disse que foi pressionado por forças ocultas.

Foi o Lacerda, pessoal. Foi coisa do Lacerda, vocês vão ver.

E agora? Com o Jango na China, ainda por cima. É golpe, na certa.

Já estão dizendo que não vão empossá-lo.

Mandaram que ele voltasse imediatamente.

Que nada, parece que mandaram dizer pra ele ficar por lá até as coisas ficarem claras por aqui.

A rádio está dizendo que o Jango vem vindo.

Interrompidas as aulas, abandonados os livros, esquecidos no balcão o cafezinho e na mesa o chope, subindo a Consolação, descendo a Vila Buarque, partindo do centro da cidade, pequena multidão se apinha na Maria Antônia, falando, gesticulando, discutindo. Pequenos grupos cochicham enquanto outros iniciam quase-comícios no saguão da faculdade. Suposições correm o risco de virar certezas e certezas desmoronam em indagações sem resposta.

Parlamentarismo. Plebiscito. Presidencialismo. Reformas de Base. Plano Trienal. Movimento de Educação Popular. “Abaixo o imperialismo!” Ligas Camponesas. “Senta a pua!” Greve dos cem mil. “Brasil, Urgente”. AP. Revolta dos sargentos e marinheiros. Sobe ministério, cai ministério. “Os magnos interesses da Nação.” Operação Popeye. Operação Brother Sam.

A marcha com Deus vem vindo! Tem gente que não acaba mais!

Os estandartes da TFP tremulam ao ritmo da ladainha.

O Adhemar e dona Leonor estão na frente, puxando o terço da família-que-reza-unida.

Escutem! O Adhemar está invocando a “adorável criatura”.

A Igreja em peso! Estão cantando: “Salva a Mãe de Deus e Nossa senhora/ sem pecado concebida... Protegei os vossos filhos; ó Mãe terna e compadecida/ Protegei a nossa gente, ó Senhora Aparecida...”.

Invadiram a casa do professor Schenberg. Foi preso de pijama. Destruíram quadros, a biblioteca. Rasgaram a Enciclopédia Britânica dizendo que era comunista.

O professor de Filosofia acredita em Deus? As meninas da Filosofia praticam o amor livre?”

Estão interrogando o professor Cruz Costa. Mandaram que cantasse o Hino Nacional para provar que não é comunista. Ele disse que só cantaria se o coronel cantasse primeiro.

Desistiram.

O professor sabe se meu nome estava na lista dos que iam para o paredão?”

Um delegado de Rio Claro apostou que prenderia um professor. Prendeu o professor Raw, só para ganhar a aposta. Prenderam o professor Kérr também.

Estão instalando IPMs. Dizem que vão expulsar estudantes. E Fernando Henrique, Florestan, Fidelino de Figueiredo. Muita gente. Querem acabar com a Maria Antônia.

Está correndo um abaixo-assinado na Câmara dos Deputados para liquidar o curso de Ciências Sociais porque é subversivo. Que Gama e Silva está mancomunado com o Dops. A coisa está saindo daqui de dentro mesmo. É a tal Comissão Geral de Investigação. “Há um grandioso trabalho à frente da Comissão Geral de Investigação.”

Leram o artigo do Paulo Duarte? Incrível! Duma coragem.

Duma dignidade. Diz que há dedo-duro em toda parte, que são professores fazendo o serviço sujo. Uma vergonha.

Disseram que vão “limpar” as bibliotecas, tirar os livros imorais. Como no Paraná, quando rasgaram Eça de Queirós.

Anoitece, nos primeiros dias de abril. Golpeada, a Maria Antônia procura conservar o ritmo. Aulas. Debates inflamados na Congregação e no Conselho Universitário. Gente no saguão, nas calçadas. Correria: “Vão invadir a faculdade!” Alguns guardam as janelas, outros vigiam a rua e o pátio. Professores, alunos, funcionários fecham as portas e nelas se apoiam para protegê-las. Ruído de carros e botas. Inútil guarnição desprotegida: portas e janelas são arrombadas aos pontapés. Estilhaçados vidros e madeirames. Salas de aulas invadidas, professores, alunos e funcionários revistados, alguns expulsos, outros presos, enviados ao Dops para interrogatório. Livros destruídos, papéis rasgados e espalhados pelo chão, máquinas de escrever destroçadas a pancadas. O vandalismo que arrombara o edifício começa, agora, o arrombamento de vidas, ideias, carreiras e consciências. Tem início o expurgo, fundado em denúncias anônimas, calúnias, delação, rancores dos medíocres aspirando pelos cargos aos quais não poderiam chegar senão pela força e pela ignomínia. O medo cimenta as relações. Sob vigilância, ideias são censuradas, programas alterados, cursos cancelados. Na reunião da SBPC, prisões. Vai-se abrindo a trilha dos anos vindouros: o exílio. Está institucionalizada a sanha do terrorismo cultural. Mas era véspera, ainda.

Todavia, quão cheia de presságios para quem, com os olhos turvados de hoje, lê o que o olhar incrédulo de ontem não houvera de enxergar: “o setor estudantil é um daqueles que a Revolução (sic) não logrou ainda introduzir o seu processo de saneamento”. Mais uma vez o Estadão soava as trombetas do “bravo matutino”; no início do século, contra a “toxina negra” que conspurcava a pura raça bandeirante; em outubro de 1964, contra estudantes “exóticos” e seus irresponsáveis professores.

Ato Institucional n° 2. Eleições indiretas para a presidência da República, extinção dos partidos políticos, direito de cassação de mandatos parlamentares. Fora dado “o golpe dentro do golpe”.

Fecharam o Congresso!

Tem golpista querendo criar uma Frente Ampla. Coisa do Lacerda, já se sabe. Dizem que o Adhemar está se ralando de medo porque vão mexer na corrupção...

Lá na cidade, a Maria Antônia não morrera. Antes de sua agonia final, houve 1968.

O governo chegou à conclusão de que a agitação estudantil que se observa neste momento tem inspiração comunista e alcance subversivo e vai agir em consequência.”

Marechal Castelo Branco, abril de 1966.

Vem, vamos embora,

que esperar não é saber.

Quem sabe faz a hora

Não espera acontecer.

Vandré.

Música de protesto, literatura empenhada. Terra em Transe. Doutrina da Segurança Nacional.

O Arena emite sua Opinião e Canta Zumbi. Artistas comem cru o coração do cantor de televisão que acaba de morrer – o Oficina entra na Roda Viva e acende O Rei da Vela. Não há como calar Quarup. Sob luz ofuscante, range o carro de boi de Vidas Secas. Vem vindo o Nordeste de Os Fuzis – “Rui Guerra filma a miséria como uma aberração. Tira força dessa distância”. Invasão do Pop. País absurdo da Tropicália – “que coisa é essa de botar guitarra elétrica? Importação sem imaginação”. “Que nada. Não entendeu que é o choque do tradicional e do moderno? Estão escrachando o mau gosto nacional”. Irreverentes dadaístas:

O monumento é de papel crepom e prata... Carmem Miranda da, da”. Pelas ruas, “o povo unido jamais será vencido”, pois “povo organizado derruba a ditadura”. Latino-americanidade, paradoxo de um nacionalismo continental – Soy loco por ti America, cambalache. Lá vem vindo o Pasquim.

No Rio, Revista Civilização Brasileira. Na Maria Antônia, “Teoria e Prática”, nossa “New Left Review”. — Tentativa de “Aparte”.

No fundo, essa produção cultural não está adiante de seu público.

Emulação de palco e plateia intelectualizados. Classe média. Weimar?

Terminam os IPMs com estudantes e professores absolvidos, mas muitos já estão a caminho do longo exílio. São inaugurados os cursos de pós-graduação. Na pequena escadaria da varanda da Maria Antônia, os “excedentes” acampados. Exigem as vagas a que têm direito, aprovados que foram nos vestibulares. Às pressas, a ditadura procura satisfazer à classe média que lhe dera apoio: a reforma universitária está na ordem do dia, ameaçando o ensino público e gratuito (cobrança de anuidades, taxas, criação de “fundações”), tentando transformar as universidades em empresas e modificando os vestibulares. Incauto em sua onipotência, o Conselho Federal de Educação deixa cair a bomba: relatório de Mr. Atcon e Acordo MEC-Usaid. “Abaixo a ditadura! Viva a liberdade! Fora, fora MEC-Usaid”, replicam os estudantes.

A polícia reprimiu a manifestação da Universidade de Brasília, contra o embaixador americano. A “linha dura” está ganhando a parada.

Ganhara. Maio de 1968: relatório Meira Matos propondo que o governo ajude a organizar os estudantes da “maioria democrática” em diretórios que neutralizassem a ação nefasta da “minoria esquerdista e instruída”. Respondia às manifestações estudantis de abril. Na Maria Antônia explode o Relatório Ferri. Não é esta a reforma almejada.

Abrir vagas, ampliar o corpo docente, aumentar verbas e recursos, criar cursos básicos para integração de toda universidade, pôr um fim na tirania da cátedra, instaurar os departamentos com seus colegiados. “Fora com a universidade elitista e de classe!” Universidade crítica. Livre, aberta. Essa a reforma que apaixonadamente se discute dia e noite, na Maria Antônia ocupada.

Sexta-feira Sangrenta”. Vinte e oito mortos. Enlutada, caminha a Passeata dos Cem Mil. Choram estudantes e professores, no Rio. E no Brasil.

Da lágrima ao grito: “A forma das últimas manifestações é condizente com a concepção da revolução brasileira, através de um longo processo de luta armada, que vá acumulando forças até a tomada do poder político”, declara a UEE de São Paulo. Na Maria Antônia, a polêmica: “luta política” ou “luta específica”? Mobilização reivindicatória ou violência revolucionária?

Guerrilha urbana. Guerrilha no campo. Foco ou partido? A guerrilha é o agente revolucionário ou apenas o braço armado da revolução? A revolução deve partir do campo ou da cidade? “Viva Guevara!… Um, dois, muitos Vietnãs.” Debray. Mao. “A revolução cultural não virá depois da revolução, mas se fará ao mesmo tempo que ela.” Expropriação. Aparelho. Um novo léxico para uma nova estratégia. Ou seria uma tática?

Tá uma confusão danada! O diretor, o Erwin, sabe?, viu casais dormindo na diretoria, enrolados na bandeira do Brasil! Tá fulo de raiva.

Liberação sexual. Sim, as meninas e os meninos da Maria Antônia praticam o “amor livre”, coronel. Não, a maioria não “praticava amor livre” nos anos 50, capitão. “Virgindade dá câncer”, pipocam os muros pichados. Sim, “é proibido proibir”. Pensar e viver, subitamente reconciliados numa ética libertária, fazem da Maria Antônia espaço livre de uma experiência revolucionária: suas paredes, vitrais da sociedade, ganham transparência para receber a luz vinda de longe e emitir lampejos do que imaginara ser o possível cumprindo a marcha do tempo. Começa a campanha pela representação paritária dos estudantes. “É o fim do mundo! Querem acabar com o princípio da hierarquia e da autoridade. O que esses fedelhos estão pensando?” Democracia direta. O departamento de Filosofia é o primeiro a tornar-se paritário, dirigido por um professor e uma aluna. “Abaixo a repressão/ Mais pão e mais feijão.”

A imprensa reage, bradando contra o caos, a anarquia, a imoralidade dos costumes. Ordem! Ordem!, esbraveja, em nome da Pátria conspurcada. É preciso acabar com a subversão. “Sartre e Marcuse conduzem ao vício”. A imaginação no poder? Stultifera Navis! Família e Propriedade ameaçadas. É preciso por um cobro nessa loucura comunista. Libertinos. Devassos.

Sejamos realistas: peçamos o impossível”.

Outubro de 1968. Domingo, dia 3. Fervilha a Universidade Crítica: seminários, mesas-redondas, conferências, grupos de trabalho analisam os caminhos abertos pela guerrilha, inventam-se “codinomes”, em segredo passa-se “o ponto”. Isolada por guarnições militares que ocupam suas duas pontas, a Maria Antônia está inundada de sol e pelos acordes da Internacional. Será a luta final. Mas não aquela que libertaria os filhos da terra...

Ruído de carros pesados, cães a latir, estrépito de botas pelo calçamento, sirenes, gritos, palavras de ordem, comandos.

Estão vindo! O Exército e a polícia estão chegando!

Atenção! Cada qual procure um lugar para defender a faculdade. Rápido, rápido.

Olhem, olhem! Estão subindo na torre e nos telhados do Mackenzie! O CCC os chamou para lá! Vão metralhar, gente, vão metralhar!

Estão jogando bombas. Depressa, coquetel molotov aqui, depressa.

Mas temos poucos. Ninguém pensou que iriam ser necessários.

Pedras, pessoal, jogar pedras.

A Esther Ferraz abriu o Mackenzie pra Oban! Veio ajudar o CCC! Olhem, olhem! Tão chegando aos montes!

Estão metralhando! Tem um morto! Tem um morto!

Mataram um estudante!

Mataram um!

Mataram...

Fogo! A Maria Antônia está pegando fogo! Água, pessoal, água, pelo amor de Deus!

Fogo, fogo! A faculdade pegou fogo! Todo mundo tem que sair. Não pode haver mais mortos.

Sob gritos furiosos e fogo cerrado – incêndio de um lado, metralhadoras e bombas, de outro – é esvaziada a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Seus ocupantes, submetidos ao “corredor polonês”, são lançados em camburões, rumo ao Doi-Codi, ao Dops e à Oban. Quem dera a ordem? O governador Abreu Sodré garante ter recebido a ordem de invasão do ministro Gama e Silva, mas recusando-se a cumpri-la. O reitor, Mário Ferri, por seu turno, assegura ter-se recusado a obedecer à ordem do governador. Talvez tenha sido uma ação voluntária e espontânea das “forças da ordem", sem carecer de ordens, sob a ordem do Partido da Ordem?

12 de outubro de 1968: presos os participantes do 30° Congresso da UNE. Dissolvida e posta na ilegalidade. Ainda viria o 477.

Dezembro. Sexta-feira, 13: Ato Institucional n° 5.

20 de dezembro de 1968 e 29 de abril de 1969: decretos presidenciais aposentando professores. Há erros: docentes de outras universidades aposentados como membros da USP; outros são aposentados sem que sequer fossem professores. Caça às bruxas no meio estudantil. Prisões, torturas, mortes, desaparecimentos, exílio. Clandestinidade. Perseguição dos “suspeitos”. Campeia a delação.

Por que Bento e Giannotti?

Por que aceitaram a paritária?

Não se sabe. O decreto não dá motivos. Não há acusação. Portanto, não há defesa.

Leram o Diário Oficial? Dois colegas depuseram contra a Emília Viotti. Disseram que espalhava ideias prejudiciais para a juventude.

Por causa das propostas para a reforma universitária?

Que nada! Pretexto. Rancores. Uma patifaria.

Imenso FEBEAPA. Mas o horror estanca o riso. O grotesco faz sangrar. O bonde já não atravessa a Maria Antônia, indo da Consolação à Angélica.

1969 – 1984

De longe em longe, um edifício. Desiguais, aqui um grande, ali um pequeno. Há palácios em estilo mussoliniano (omitido o balcão da Piazza Venezia). Acolá, uma arrojada criação arquitetônica, lançada na leveza do espaço. Há sóbrios e pesados quadrados, há retângulos, medrosamente agarrados ao solo. Esqueletos dos prédios da residência estudantil, roídos pelo tempo, pela incúria e pelo medo da subversão. Há barracos pré-fabricados, sem acústica e sem isolamento térmico – no verão, corpos e mentes entorpecidos pelo calor; no inverno, gente encolhidinha a tiritar; quando chove, o telhado é um bumbo dissonante, as águas inundam salas de aula a bibliotecas. Umidade e mofo, nuns, secura quebradiça, noutros.

Largos vãos cortam os ares, mas as salas de aula são exíguas. Raros os que possuem centros de vivência para estudantes, professores e funcionários. Quando os possuem, estão sabiamente segregados, evitando o “perigoso” contato das três categorias.

Geometricamente racional, topologicamente significativo, o espaço, dividido em feudos dos senhores gerentes, se reparte como se sob a ação de um demiurgo ensandecido, Gênio Maligno a dispor as construções e as ruas encurvadas numa obra devida “mais ao acaso do que à vontade de homens usando da razão”. Entre uma escola e outra, terrenos vagos onde o olhar poderia encontrar repouso, se fizessem paisagem em vez de desolação. Avenidas desembocam em praças circulares, curva atrás de curva. “Me disseram que é de propósito. Para diminuir a velocidade dos automóveis que poderão ser alcançados por carros pesados do Exército ou da polícia, em caso de subversão e fuga”. Cada país tem o Haussman que merece.

O isolamento é a regra. Cada unidade, centrada em si mesma, nada sabe do que vai pelas outras. A informação não circula, as ideias não se comunicam. Sem a bela recolhida quietude do claustro, sem o vívido burburinho da cidade, uma favela habitada por pequenos funcionários, num extremo, a Escola de Polícia, na entrada, agora cercada de grades e portões, ergue-se o campus universitário: poucos transeuntes, muitos carros e muitas motos, de quando em vez, um ônibus. Nele não há lazer nem relação com o mundo circundante. Apressadas, as pessoas o atravessam rumo ao trabalho, uma divindade taylorista tendo tomado todas as precauções para que aí reine o ritmo de uma empresa. Mas diabretes interferem nessa racionalidade operosa: a agitação não ultrapassa a barreira dos sísifos da burocracia. “Antigamente, universitários se encontravam nas catedrais. A gente se encontra no saguão do Banespa”. A ética calvinista, tardia como o capitalismo nacional, invade o campus (ou seria o pastus?) para impor-lhe a faina dos predestinados. Tempo é dinheiro; não seja tolo fazendo pesquisas demoradas. “Produza, produza!”

Desfeita a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. A modernização, identificada com a eficácia produtivista e com a divisão administrativa dos conhecimentos, além de proteger-se contra o surgimento do coletivo, fragmentou a antiga faculdade em institutos, escolas e numa Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Esta última, continuamente ameaçada de nova fragmentação para atender aos desejos de mando de alguns.

Expulsos como criminosos da Maria Antônia, professores, estudantes e funcionários da nova faculdade são lançados em barracos (exceção para História e Geografia, que haviam conseguido um prédio próprio). Porém, se as instalações são precárias para os recém-chegados, compartilham com os demais a experiência do mundo vigiado. Em todo o campus, telefones “grampeados”; em algumas salas (de aula, de congregações, de conselhos departamentais, de secretarias), microfones ocultos, à escuta de nosso pavor. Policiais transformados em professores, funcionários e estudantes, ou professores, estudantes e funcionários transformados em policiais, transitam em toda parte. Todo dia, a terrível expectativa: “Virá? Não virá? Onde está?” Todo dia, o alarme: “Vão invadir o campus!” Todo dia, a indesejada notícia: “Prenderam”.

Decisões emanam de autoridades desconhecidas. “Senhor Antonio Candido: O que consta é que em algum lugar da universidade, mas não pertencendo à universidade, estão instalados agentes de segurança... Oficialmente, esses agentes não existem, portanto, é lógico que seja negada a sua existência oficialmente. O que se diz, e há indícios disso, é que há na universidade uma comissão chamada “comissão especial”. É formada de professores da universidade... O que se diz é o seguinte: quando essa comissão recebe os processos, ela os encaminha aos agentes de segurança... sem nenhum despacho escrito, de modo que não fica vestígio nenhum.” Cassações brancas. Expulsão de alunos. Processos engavetados. “Olhe, você está me vendo, mas lembre-se: não existo”.

Fala-se pouco e o pouco que se fala é cifrado. Medo da própria sombra. Solidários na dispersão. Isolados, temerosos, controlados, vigiados. “Senhor Alberto Goldman: É um trabalho policial?” “Senhor Antônio Guimarães Ferri: É um trabalho policial”. “Senhor Alberto Goldman: Então existe uma espécie de uma triagem policial sobre os professores ou...” “Senhor Antônio Guimarães Ferri: eu não diria policial, mas profissional”.

Bem, professora, não posso lhe dizer o que está segurando o processo de contratação desse professor. Confidencialmente, só lhe digo que sabem que ele andou no Congresso de Ibiúna. Ingênuo. Lambari, não peixe graúdo, que esse soube fugir, não é? A senhora sabe... Mas apareça para um cafezinho, a senhora é tão... hã... simpática.

O processo de contratação de um jovem professor encontra-se bloqueado há meses, sem explicação. Ninguém sabe coisa alguma, mas todos guardam reservado ar conspiratório. Paranoicos, nós?

Escute professor, vejo que o senhor está com jeito de gente honesta. Nem barbudo ou cabeludo o senhor é! Só que nada posso fazer. Foi um mal-entendido que o trouxe aqui, sabe? É. O senhor não me viu nem me falou. Esta sala não existe. Nem eu, professor.

Sobre o silêncio e o medo, entre 1969 e 1984, ergue-se a universidade modernizada, onde se fará dos conselhos departamentais e interdepartamentais, das congregações, das comissões, do Conselho Universitário, da administração, uma intrincada rede de poder burocrático fortemente centralizado, em nome da “eficiência, modernização, flexibilidade administrativa e formação de recursos humanos de alto nível para o desenvolvimento do país”, graças a um “repertório de soluções realistas e de medidas operacionais que permitem racionalizar a organização das atividades universitárias, conferindo-lhes maior eficiência e produtividade”.

Cidadela da ordem, inculta e estúpida, parece habitada por uma seleção de futebol vitalícia, o goleiro de hoje sendo o centroavante de amanhã, à espera do momento em que jogará nas pontas, depois de haver sido o capitão do time. Dada a idade provecta, quem sabe lhe farão presente duma lasquinha do que restou da Jules Rimet. Só não nos peçam para servirmos de torcida.

No entanto, se acreditarmos que o saber é interrogação, interpretação conceitual e invenção do novo a partir do material bruto oferecido pela experiência imediata, acreditaremos que o saber, mergulhado na história cultural, social e política, dotado de autorreflexão que lhe faz constituir também uma temporalidade interna, é trabalho a pensar o ainda não-pensado, a dizer o ainda não-proferido, a fazer o ainda não-realizado. Se assim for, resta uma esperança de criação, de invenção de caminhos, de perda de certezas e de recusa do existente pela liberdade do possível. Neste lapso de tempo em que nos é dado respirar, que também nos seja dado pensar, dizer e fazer uma outra universidade onde a alegria das descobertas, o trabalhar dos conflitos, a acolhida do que, em nosso tempo, pede para ser efetuado deem sentido e recebam sentido à busca da emancipação, nossa e alheia.

Para isso lutaram bravamente os estudantes e muitos professores, no correr sombrio dos anos 1970. Que a resistência não tenha sido vã.

Este texto foi originalmente publicado no Folhetim de 22 de janeiro de 1984. Depois foi publicado no livro Maria Antonia: uma rua na contramão, organizado por Maria Cecília Loschiavo dos Santos. São Paulo: Nobel, 1988.

Marilena de Souza Chaui é filósofa pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular em História da Filosofia Moderna pela Universidade de São Paulo (1986). Fundadora do Partido dos Trabalhadores (PT), foi Secretária de Cultura do Município de São Paulo durante o governo da prefeita Luiza Erundina (eleita pelo PT, em 1988). Autora de dezenas de livros, lançou pela Fundação Perseu Abramo: Brasil - Mito fundador e sociedade autoritária (2000), Cidadania cultural (2006; 2021), Simulacro e poder (2006).