Especial do Golpe

Entre 1975 e 1985, o torneiro mecânico e líder dos metalúrgicos, organizou greves, conduziu a classe trabalhadora na luta contra a Ditadura Militar, foi preso pelo DOPS e fundou o maior partido de esquerda da América Latina

Assembleia dos Metalúrgicos do ABC em 1980

A notícia correu rápido. Lula ainda dormia quando as viaturas chegaram ao seu endereço em São Bernardo do Campo. No chão de fábrica não se falava de outra coisa. “Eles vão prender o Lula”.

O presidente sabia da sua inocência. Assim como sabiam todos aqueles companheiros e companheiras que começavam a se reunir em sua defesa. O horror batia à porta, mas Lula não tinha nada a temer. Calçou os sapatos, escovou os dentes e caminhou tranquilo até onde os policiais o aguardavam. Do Grande ABC, a informação logo se confirmou por todo o Brasil: Luiz Inácio Lula da Silva estava preso. Injustamente preso.

A descrição pode confundir quem acompanhou de perto a recente perseguição sofrida por Lula, que culminou no ilegal e arbitrário cárcere político em 2018. Os inimigos são, de certa forma, os mesmos, mas a data é outra. Trata-se de 19 de abril de 1980, o dia em que o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC foi levado por agentes da Ditadura Militar e mantido preso por 31 dias.

Embora muitas sejam as semelhanças entre uma prisão e outra, o contexto histórico faz da primeira um divisor de águas na trajetória do agora (e novamente) presidente da República.

Para muitos, foi a partir dali que Lula, o homem de carne e osso, viria a se transformar definitivamente no Lula, a ideia – como ele próprio diria às vésperas de ser preso sem ter cometido crime algum pela segunda vez, 38 anos depois.

Tal ideia, é bom que se diga, não surgiu da noite para o dia. E, para entendê-la, é preciso voltar a 1975. Lula, à época com apenas 30 anos, já era conhecido nas portas de fábrica de todo o Grande ABC. A oratória hábil e a imensa capacidade de mobilizar as pessoas fizeram dele o porta-voz oficial da categoria. A presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC veio para confirmar a sua disposição para liderar.

As imagens de Lula em pé, sob os olhos atentos de milhares de trabalhadores e trabalhadoras durante as greves a partir daquele ano, falam por si: o retirante nordestino e torneiro mecânico, que já havia vencido a fome, tornou-se o maior líder popular do país. E, claro, uma das maiores pedras no sapato da Ditadura Militar.

A ideia estava no ar

O regime, conduzido por Ernesto Geisel, já tinha sido enfrentado pelo povo anteriormente, mas nunca com tamanha adesão. As paralisações organizadas pelos metalúrgicos de algumas das principais empresas do país colocaram na berlinda a propaganda ufanista dos militares.

As multinacionais estão acabando com os direitos sagrados do trabalhador”, alertava Lula durante assembleias realizadas, não só no ABC, mas em outras grandes cidades da região metropolitana de São Paulo.

O Brasil precisava de mudança e Lula tinha as palavras certas para convencer a massa a se unir contra o sistema. Numa das greves, em Osasco, o líder sindical foi enfático: “Já não se engana mais o trabalhador como se enganava antes”.

Ciente das prováveis consequências, Lula terminava os seus discursos alertando os colegas para não saírem em passeata e que voltassem direto para casa após cada ato. Assim, conseguia organizar greves de maneira pacífica.

Mas, o número cada vez maior de operários contrários aos abusos trabalhistas cometidos pelas gigantes metalúrgicas começou a preocupar os militares. Quando a greve ocorrida em maio de 1978, na fábrica da Scania, em São Bernardo do Campo, desencadeou a paralisação de mais de 150 mil trabalhadores, a pressão interna sobre Geisel ficou quase insustentável.

O então mandatário da República estava furioso e já preparava o contragolpe para reprimir os “subversivos” sem ter de gastar balas e bombas e mantendo a narrativa de que conduzia o país à transição política. Em 1979, auge das greves, o militar já havia mandado um recado ao enviar seus capangas para “conversar” com sindicalistas na tentativa de evitar novos problemas.

Em vão. Geisel deixou a presidência naquele mesmo ano sem conseguir cumprir o que a alta cúpula militar tinha como meta: tirar Lula de circulação e silenciar o grito da classe trabalhadora.

Lula Livre, a origem

Geisel saiu de cena e a missão de prender Lula foi transferida para João Figueiredo. O Brasil entrava numa nova década ainda longe de ser um Estado Democrático de Direito. Mas uma nova página da história política nacional seria escrita já em fevereiro de 1980: a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT).

E não poderia haver outro nome senão o de Lula à frente daquela que hoje é a maior legenda de esquerda da América Latina. A criação do PT amedrontou o status quo e botou Figueiredo contra a parede.

Com o aval de estudantes, trabalhadores, artistas e lideranças religiosas, o surgimento do PT endossava o clamor das ruas por mudanças, e a popularidade de Lula aumentava a cada dia. As greves cada vez maiores e os discursos aclamados da liderança suprema da categoria tornaram a situação insustentável para o governo.

Naquele 19 de abril de 1980, Lula e ao menos outros quinze sindicalistas foram enquadrados pela Lei de Segurança Nacional (LSN) e as greves estavam proibidas. Mas o que era para conter a multidão acabou por ampliar ainda mais as críticas à Ditadura Militar.

A ideia já tinha sido plantada nos corações e mentes da nação. “Lula, Lula, Lula”, gritavam os metalúrgicos enquanto viam o seu maior representante ser levado pela Veraneio do DOPS.

Os gritos em defesa do operário, ainda que sem a dimensão midiática do cárcere mais recente, foram ecoados por todo o país, gerando uma grande mobilização. Trinta e um dias depois, quando foi solto, já não era mais possível prender a “ideia Lula”.

De 1980 a 1985, da prisão ao início da reabertura política, o regime ainda teria de engolir novas subversões: a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), além das manifestações para eleições diretas, consideradas por Lula como o maior movimento cívico desde a fundação do Brasil.

Lula, o operário, e Lula, o presidente sindical e fundador do PT, estavam lá. Lula, a ideia, também. Todos eles livres. Todos eles pela liberdade do povo brasileiro.

Henrique Nunes é jornalista e escritor, integra a redação da revista Focus, da Fundação Perseu Abramo