Sociedade

As políticas de memória, verdade e reparação devem se deslocar para o espaço que lhes cabe no quotidiano de uma sociedade democrática: o de políticas de Estado.

Desde a antiguidade se pratica uma técnica de debater assuntos polêmicos que consiste em atribuir ao adversário posições que ele não defendeu e fustigá-lo por elas. Esse expediente fala mais sobre quem o utiliza do que sobre o destinatário da crítica. Com o texto "O veto presidencial e a negação da memória", 6/5/2024, publicado na página de opinião do jornal Folha de S.Paulo, a arqueóloga Claudia R. Plens se entregou a esse exercício:

"Como arqueóloga responsável pela etapa de arqueologia forense em colaboração interinstitucional (Unifesp, Unicamp e UFMG) do projeto arqueológico no Doi-Codi, em São Paulo – como desdobramento do Grupo de Trabalho Doi-Codi-SP –, percebo que o veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à criação de um memorial é um grande retrocesso".

"Ao abafar a necessidade de justiça e negar o direito de reconhecimento, essa ação não apenas mina os princípios fundamentais dos direitos humanos, mas, sobretudo, desrespeita a essência da democracia."

O Presidente da República em nenhum momento vetou a criação de um Memorial do Doi-Codi, em São Paulo. Não poderia fazê-lo mesmo que desejasse. Seria uma tentativa vã – e canhestra – de cercear uma iniciativa da sociedade civil e de algumas instituições da esfera estadual, cujo controle escapa a suas atribuições. Faço esse registro em homenagem aos fatos.

Para além das circunstâncias que condicionam as ações imediatas de qualquer governo – e de suas escolhas políticas – frente aos desafios impostos pela interpretação que fazem da correlação de forças nas instituições e na sociedade, as políticas de memória, verdade e reparação devem se deslocar para o espaço que lhes cabe no cotidiano de uma sociedade democrática: o de políticas de Estado.

Por razões opostas, os segmentos sociais envolvidos com o esclarecimento histórico das graves violações dos direitos humanos cometidas durante o período 1964/1988, não desejam remoer esse passado que se perpetua.

De um lado, os representantes do aparato repressivo do Estado e seus herdeiros, buscam congelar essa agenda para consolidar na cultura social a autoanistia que se concederam pela Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979. Assim seguirão garantindo a impunidade dos criminosos remanescentes já em idade provecta, cultuando o golpe de 1º de abril e, como heróis, seus chefes militares.

De outro, os combatentes que sobreviveram e os familiares dos que tombaram nas mãos do mesmo aparato repressivo, lutam para obter o reconhecimento do Estado e a responsabilização de seus agentes pelos crimes imprescritíveis cometidos.

Assim poderão concluir seu luto, “virar a página” e seguir mobilizando-se em defesa da democracia, do direito à verdade, à memória e reparação como necessárias ao objetivo de pôr um ponto final nesse passivo.

A sociedade brasileira – aí incluídos seus setores civis mais conservadores – amadureceu ainda que tardiamente a compreensão da necessidade de “virar a página” sobre os crimes cometidos pela ditadura civil-militar 1964-1988 e seguir adiante.

Para tanto será necessário concluir os trabalhos da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos que teve seu funcionamento interrompido quando expirava o governo anterior, em dezembro de 2022. O próprio Ministério da Defesa já indicou, há algum tempo, o nome que o representará na Comissão proposta pelo MDHC. E, o Ministério da Justiça, instado a se pronunciar sobre o tema, respaldou a retomada da CEMDP.

O Estado brasileiro conta, hoje, com instituições dotadas de legitimidade e respaldo para materializar uma decisão que, em última análise, tem caráter administrativo. Trata-se de corrigir um erro, a extinção da CEMDP por falta de objeto, quando o próprio Estado brasileiro reconhece que remanescem casos não esclarecidos de cidadãos e cidadãs mortos e desaparecidos sob sua custódia, naquele período.

Convenhamos, não é necessário um grande esforço para identificar a cadeia de cumplicidades entre os agentes sociais, o ideário e as forças político-militares que puseram em marcha o golpe de 1º de abril de 1964 e a horda neofascista lançada contra a sede dos três poderes da República, no 8 de janeiro. Foram incubados na mesma matriz das escolas militares modeladas pelo contexto de submissão colonial da guerra fria. Não há como obscurecer a verdade histórica desses vínculos.

Essa constatação impõe à sociedade – e ao Estado – o desafio não apenas de punir exemplarmente os responsáveis em todos os níveis pela tentativa de golpe de Estado derrotada em 8 de janeiro de 2023, mas ir além: o desafio de elaborar um conjunto consistente de políticas públicas de memória que ofereça às novas gerações o espelho de um passado que o Brasil não deseja repetir.

E a partir dessa elaboração, empreender a cuidadosa construção de uma cultura política que converta os valores democráticos nos elementos fundantes da cidadania e das relações sociais a serviço do projeto de desenvolvimento soberano, inclusivo, socialmente plural e ambientalmente sustentável para o Brasil.

A memória se constitui como fato relevante na história e nas culturas dos povos quando convertemos as recordações individuais ou de grupos em ação coletiva. Em política, portanto. Em ação cultural e institucional permanente voltada para tecer em todas as linguagens simbólicas, valores democráticos que dialoguem com as gerações presentes e futuras.

Para alcançar esse objetivo a sociedade civil brasileira – e o Estado, por dever e compromisso com a democracia – devem se utilizar de todos os instrumentos disponíveis: as redes escolares, pública e privada, as mídias tradicionais, as plataformas e redes de informação digital para difundi-los e avançar no sentido de constituir em espaços educativos de memória histórica a sinistra arquipélago de edificações que, ao longo dos séculos abrigaram as práticas criminosas do aparelho repressivo do Estado contra os segmentos populares.

Do Cais do Valongo, à Casa da Morte, em Petrópolis, à Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes ou o DOI-Codi do II Exército, na Rua Tutoia, cada Estado brasileiro identificará tais espaços para convertê-los em lugares de memória e evitar que esse passado de assombros retorne para atormentar as gerações que nos sucederão.

Pedro Tierra é poeta, militante da resistência à ditadura. Ex-preso político, foi conduzido ao Doi-Codi do II Exército e submetido a interrogatórios em três ocasiões nos anos 1972 e 1973. Assessor do MDHC.