Política

Não se trata apenas das redes de fake news, mas também das poderosas redes midiáticas que se escondem atrás de uma pretensa neutralidade. Muitas vezes não se trata de problemas da comunicação elaborada, mas sim de bloqueios à comunicação vinda do governo.

Os problemas nos índices de popularidade do governo Lula têm sido atribuídos por muitos articulistas à comunicação. Como se ela ocupasse um lugar primordial e até único para a compreensão da complexidade política do Brasil e mesmo do mundo na atualidade. Sem menosprezar possíveis equívocos da comunicação, cabe sugerir que não seja plausível imputar a apenas um componente, ainda que relevante, algo que requer ser entendido em sua complexidade.

A responsabilização da enxurrada de fake news, potencializada pelo cruel uso político da tragédia do Rio Grande do Sul, também não parece ser componente único ou mesmo central para explicar a complexa situação. Por óbvio, que é vital que os autores de fake news neste e em qualquer caso devam ser responsabilizados e criminalizados, pois tais atos e suas consequências afetam profundamente a vida, a civilidade e os comportamentos democráticos. Não há democracia quando setores políticos irresponsáveis utilizam fake news como arma, sem considerar sua responsabilidade pela mentira utilizada, que causam danos graves para a vida social.

Aos problemas de comunicação e às fake news devem ser agrupadas o cerco implacável da grande mídia, que busca sempre aprisionar e chantagear o governo, tentando impor seus interesses e suas interpretações, que descaracterizam o programa da vitória eleitoral de Lula em 2022. A grande mídia detém, no país, um enorme e não democrático poder de silenciar ou dar existência simbólica a agentes e questões sociais, bem como definir, quando tais agentes ganham existência pública e como eles devem ser tratados, positiva ou negativamente. Em uma sociedade contemporânea e complexa, como a brasileira, na qual somente através de aparatos socio-tecnológicos midiáticos tais processos podem, em situações normais, se realizar, o controle sobre os agentes políticos, sua existência pública e as modalidades de existência, é enorme. Em suma, a grande mídia possui uma capacidade gigantesca de moldar o cenário da política. A comunicação dela não deseja informar, mas governar, por meio de pressões e interpretações sobre o governo.

Nada mais evidente que a postura política da grande mídia no Brasil, ainda que negada. As 680 primeiras páginas de jornais, as 59 capas de revistas e as 13 horas de Jornal Nacional contra Lula, lembradas por ele em muitas ocasiões, são uma prova cabal da postura política-ideológica e da farsa da neutralidade jornalística no país. Apesar disso, o tema da comunicação, da sua imprescindível democratização e da elaboração cuidadosa de uma política para lidar com tal situação complexa não ocorreu nas gestões passadas, nem na atual gestão. O tema, por pressão da grande mídia e dos setores conservadores e autoritários da sociedade, tem sido perigosamente silenciado. Aprender lições faz parte da vida política e democrática. Não se trata apenas das redes de fake news, mas também das poderosas redes midiáticas que se escondem atrás de uma pretensa neutralidade. Fazer comunicação nesse cenário hostil não é nada fácil. Muitas vezes não se trata de problemas da comunicação elaborada, mas sim de bloqueios à comunicação vinda do governo. Ao analisar os problemas de comunicação tal cenário adverso não pode ser esquecido, para ser driblado e mudado.

Para além do cenário hostil, uma outra questão se impõe. Os chamados problemas de comunicação não podem ser reduzidos à dimensão da informação, tipo divulgação de realizações do governo, por mais que isso também seja importante. Já se viu que os acontecimentos sociais podem ser interpretados de maneiras muito diversas e até contrapostas. Nas gestões passadas a imensa ascensão social ocorrida, que mobilizou quase a população da Argentina ou da Colômbia, as duas maiores da América do Sul depois do Brasil, pode ser considerada, conforme pesquisas, por meio de diferentes chaves interpretativas. A ascensão social decorreu, de acordo com distintas interpretações em disputa: do apoio transcendental de deuses e de santos, em uma versão fundamentalista-religiosa; do mérito de cada um, em uma visão individualista e meritocrática, própria da ideologia neoliberal; da existência de políticas públicas, que permitiram estimular e cuidar da ascensão social das pessoas, em uma perspectiva mais democrático-republicana; além de outras interpretações possíveis, mas desnecessárias aqui para a argumentação. Comunicação não se reduz à informação. A temática da comunicação, para além da informação, requer interpretações e suas disputas.

O cenário vai aos poucos se tornando mais complexo, mas o problema ainda não resulta bem equacionado. Os acontecimentos, suas informações e suas interpretações fazem parte do mundo, de sua dispersão e de sua profusão cotidiana de ocorrências. O veloz mundo planetário em tempo real provoca uma tamanha enxurrada conjunta de acontecimentos, informações e interpretações, que parece difícil de reter e entender. A comunicação não pode se quedar nesse instante. Os acontecimentos, as informações e as interpretações precisam ganhar alguma articulação, que lhes dê certa estabilidade e mesmo permite sua compreensão. Tal alicerce é dado pelas concepções de mundo e de vida, elas funcionam como receptáculos, que armazenam, agregam e selecionam informações e interpretações, dando-lhes alguma mínima coerência. Eles são carregados de valores sociais prévios às informações e interpretações, eles as selecionam e incorporam; eles resistem às informações e interpretações que destoam agressivamente dos valores existentes, mas eles podem, diversas vezes, se moldar e ser receptivos às informações e interpretações, que divergem de seu universo simbólico.

Aqui a comunicação, que sempre aciona cultura para se realizar, encontra-se em um ambiente profundo da cultura, no âmbito dos valores, que são construídos cotidianamente durante toda vida, com incidência potente de algumas instituições sociais, tais como ambientações compartilhadas na família, na educação, no trabalho, no lazer, na religião e na cultura, sendo que nela os meios de produção e difusão de bens culturais têm peso significativo no país. Como já foi dito no século 19, as ideias dominantes na sociedade tendem a ser as ideias das classes dominantes. A comunicação se inscreve nesse instante na disputa de valores na sociedade.

Em suma, para dar conta de todos seus complexos problemas, a comunicação deve se inserir e ser pensada nessa também complexa teia de fenômenos e de disputas, que antigamente se chamava com facilidade de ideologia. Hoje, uma denominação sempre suspeita e silenciada, como se ela tivesse que ser apagada do mundo. Isso quando as ideologias de extrema-direita e neofascistas proliferam mundo afora, o que aponta para a gravidade da situação em que vivemos. Isso quando as democracias, em sua imanência, requerem disputas político-culturais-ideológicas como alicerce vital para as suas vidas e a sua sobrevivência, em tempos altamente complexos e de enormes desafios para a humanidade.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT) e professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura) da Universidade Federal da Bahia (UFBA)