Mundo do Trabalho

Grandes transformações na agropecuária, que levaram o país a posições de destaque internacional, têm estado associadas a situações persistentes de precariedade do trabalho rural

Nos últimos cem anos o campo brasileiro passou por grandes transformações que repercutiram sobre o trabalho nele realizada. Isso se deveu a mudanças demográficas, na composição regional da produção, na estrutura produtiva (tecnologia, gestão, organização) e nas políticas públicas (Balsadi et al., 2023).

Nesse período, a ocupação do espaço rural saltou de pouco mais de seiscentos mil para cerca de cinco milhões de estabelecimentos agropecuários, com um pico de 5,8 milhões em 1985 (Gráfico 1). O número de trabalhadores ocupados acompanhou este ritmo até 1985, quando então temos uma inflexão na curva, e o número de trabalhadores passa a decrescer acentuadamente, passando de 23 milhões a pouco mais de quinze milhões em 2017. A quantidade de mão de obra por estabelecimento também mudou fortemente: de 5,3 pessoas por estabelecimento em 1940, reduziu para 3,0 pessoas em 2017.

A redução do número de trabalhadores ocorreu devido ao intenso processo de tecnificação da agropecuária brasileira, que passou a utilizar mais máquinas, recursos genéticos e insumos industriais. Para dar uma dimensão do salto ocorrido, em 1980 a produção de grãos no país era de cinquenta milhões de toneladas (Neves, 2023), e pouco mais de quarenta anos depois estamos acima dos 295 milhões de toneladas na safra 2023/2024 (Conab, 2024). Em 1980, a área cultivada com grãos era de quarenta milhões de hectares, e em 2024 de 79 milhões de hectares. Ou seja, neste período a área cultivada quase dobrou e a produção sextuplicou, mas o número de estabelecimentos permaneceu praticamente o mesmo e o pessoal ocupado diminuiu expressivamente.

Apesar da grande mídia passar uma imagem de o “agro” ser todo igual, a verdade é que o campo é muito heterogêneo, onde convivem agricultores familiares, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, assentados da reforma agrária, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu e indígenas entre tantos outros. Um dos recortes possibilitados pelo Censo Agropecuário é a identificação da agricultura familiar, representada por cerca de 3,9 milhões de estabelecimentos, ocupando pouco mais de dez milhões de pessoas. Ou seja, a agricultura familiar é a grande fonte de trabalho no campo, ocupando cerca de 2/3 do total de ocupados.

Outro traço marcante no campo é a presença de trabalhadores temporários, que representam quase a metade dos ocupados sem laços de parentesco com o produtor, utilizados especialmente nos momentos de intensa atividade laboral, como colheita das safras, plantios, tratos culturais e das criações.

Dos quinze milhões de ocupados em 2017, cerca de 4,4 milhões eram mulheres, especialmente nos grupos familiares de trabalho. As mulheres são minoria entre os trabalhadores sem laços de parentesco, especialmente entre os temporários onde representam 8% dos ocupados deste grupo (Tabela 2).

Sob o ponto de vista das atividades agropecuárias, há concentração da demanda por força de trabalho em um pequeno conjunto de explorações. A pecuária é a grande fonte de ocupação no campo, especialmente com a criação de bovinos que ocupam quase 1/3 da mão de obra no campo (Tabela 3). As diversas lavouras temporárias ocupam outro terço dos trabalhadores. Entre a mão de obra familiar, a avicultura e o cultivo de frutas se destacam.

O emprego de trabalhadores permanentes é especialmente importante no cultivo de cana-de-açúcar e soja, que respondem por aproximadamente 51 milhões de hectares colhidos nos dois últimos anos (Tabela 4). A força de trabalho temporária é muito utilizada no café, cana-de-açúcar e outras lavouras permanentes. Os parceiros, que já foram mais numerosos no passado, são atualmente pouco mais de 185 mil trabalhadores, com menos de 5% de participação na força de trabalho em todas as atividades.

Os dados apresentados anteriormente são dos Censos Agropecuários, que têm como unidade de investigação os estabelecimentos agropecuários, ou seja, refletem a ocupação ao longo do ano sob o ponto de vista dos seus administradores. As informações que serão apresentadas a seguir são da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios Contínua (PNADC) anuais, também do IBGE, que apresentam a ocupação sob o ponto de vista do trabalhador. Isto explica a diferença entre os grandes números de ocupados. Por exemplo, um trabalhador que tem como atividade principal no setor da construção civil, mas trabalhou durante um mês na colheita de café: no Censo Agropecuário ele será classificado como “temporário (sem laços com o produtor)”, mas na PNADC ele será enumerado entre os trabalhadores na construção civil por ser a atividade que ocupou a maior parte do seu tempo de trabalho anual, e provavelmente, a sua maior fonte de renda.

Segundo os dados da PNADC, o número de trabalhadores que tem o setor agropecuário como atividade principal continua caindo: mais de dois milhões deixaram esta atividade entre 2012 e 2023, caindo para 8,1 milhões de ocupados (Gráfico 2). Retirando o ano de 2020 que foi o de crise da pandemia da Covid-19, a tendência é de queda mesmo sendo anos de recordes sucessivos de safras de grãos. Ou seja, a tendência de produzir cada vez mais com menos trabalhadores ocupados, continua.

Os dados das PNADC permitem discriminar a formalização nos contratos de trabalho: 46% que tinham ocupação principal na agropecuária eram trabalhadores assalariados, mas somente 20% tinham carteira de trabalho assinada (Tabela 5). Outro grupo numeroso são os Conta Própria, que em sua maioria são agricultores familiares1. Por fim, destaca-se o grupo de Empregadores que se dedicam principalmente à atividade agropecuária: eram menos de trezentos no país. Considerando o grau de informalidade da maioria dos Conta Própria, sem recolhimento para a Previdência Social, por exemplo, pode-se concluir que a grande maioria dos trabalhadores agropecuários convivem com elevada informalidade e até invisibilidade social.

1 A Lei 11.326, de 2006, estabelece os requisitos oficiais para a classificação como Agricultor Familiar, em especial da área, em não ultrapassar a quatro módulos fiscais. Como em algumas regiões alguns Conta Própria possuem áreas maiores, estes podem ficar de fora desse enquadramento, apesar de atender aos demais requisitos, como por exemplo, a administração do seu negócio apenas com família (Delgrossi et al, 2019).

Esta informalidade se reflete nos rendimentos dos trabalhadores: em 2023 um trabalhador com atividade principal na agropecuária teve um rendimento médio mensal de R$ 1.785, que somente é maior do que o das trabalhadoras domésticas em nossa economia. Isso revela que existem muitas pessoas ocupadas com rendimento abaixo do salário mínimo, o que sugere falhas na fiscalização das leis trabalhistas na agropecuária (Hoffmann e Jesus, 2023). A categoria com menor rendimento era a dos trabalhadores sem registro em carteira, seguidos pelos Conta Própria com rendimento um pouco melhor (Tabela 6).

As pesquisas também mostram que o mundo do trabalho rural é maior do que as atividades agropecuárias. Em 2021, 46% da População Ocupada (POC) residentes em áreas rurais não eram agrícola, e aproximadamente 1/3 da POC agrícola tinha residência urbana (Hoffmann e Jesus, 2023).

Em 2023, residiam no rural mais de cinco milhões de trabalhadores que exercem ocupações não-agrícolas como atividade principal1, outros 672 mil desempregados e ainda 1,36 milhão de pessoas em desalento, que já deixaram de procurar emprego e passaram a ser contados como fora da força de trabalho (Tabela 7). Curiosamente, quase 2,9 milhões de pessoas residem em núcleos urbanos e se deslocam frequentemente para áreas rurais, a fim de exercerem suas atividades agropecuárias.

1 Veja Balsadi e Del Grossi (2016).

A precariedade do trabalho no campo também pode ser evidenciada pelos indivíduos encontrados em condições análogas à do trabalho escravo, que entre 1995 e 2023 alçaram cerca de 63,5 mil pessoas. Entre elas, aproximadamente 57 mil (90% do total) estavam em atividades agropecuárias, especialmente a criação de bovinos (28% do total), cultivo da cana-de-açúcar (14%), exploração de florestas nativas (7%) e na produção de café (6%). A produção de soja, o principal produto agropecuário exportado, foi responsável por cerca de 3% desse total. Os estados do Pará, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás responderam por 53% do total de pessoas resgatadas nessas condições1.

Além da eliminação do trabalho escravo, a mais recente pauta da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar) é voltada para as más condições de trabalho no campo, pois destaca o descumprimento, pelos empregadores, de norma de 2005 sobre moradia e alojamentos adequados, instalações sanitárias, para refeição e descanso e transporte seguro (Contar e Oxfam Brasil, 2024).

Em síntese, as grandes transformações na agropecuária brasileira, que levaram o país a posições de destaque na produção e no comércio internacional, têm estado associadas a situações persistentes de precariedade do trabalho rural, cujas principais características são a pobreza e a informalidade, inclusive com a ocorrência de pessoas em situação análoga à escravidão.

No próximo período, a atual tendência de redução da participação de jovens e mulheres, com o aumento da participação de pessoas com mais de 60 anos confrontará a perspectiva de aumento da digitalização e da automação, com mudanças nos requisitos de escolaridade, formação e capacitação e de contratação (terceirização de serviços) dos trabalhadores, possivelmente com maior importância dos empregados permanentes vis-a-vis os temporários (Balsadi et al., 2023).

De qualquer forma, a maior formalização do trabalho no campo nos últimos anos pode ter uma importante contribuição na elevação dos menores salários “agropecuários”, para o combate à fome e à insegurança alimentar e para a redução da desigualdade e a pobreza no país.

Mauro Eduardo Delgrossi é professor da Universidade de Brasília (UnB)

Vicente P.M. de Azevedo Marques é doutorando Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Notas e referências:

1 Veja Observatório Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas no Brasil (https://smartlabbr.org/trabalhoescravo), sobre dados do Ministério do Trabalho e Emprego (https://sit.trabalho.gov.br/radar/).

2 A Lei 11.326, de 2006, estabelece os requisitos oficiais para a classificação como Agricultor Familiar, em especial da área, em não ultrapassar a quatro módulos fiscais. Como em algumas regiões alguns Conta Própria possuem áreas maiores, estes podem ficar de fora desse enquadramento, apesar de atender aos demais requisitos, como por exemplo, a administração do seu negócio apenas com família (Delgrossi et al, 2019).

3 Veja Balsadi e Del Grossi (2016).

4 Veja Observatório Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas no Brasil (https://smartlabbr.org/trabalhoescravo), sobre dados do Ministério do Trabalho e Emprego (https://sit.trabalho.gov.br/radar/).

BALSADI, Otávio e DELGROSSI, Mauro. Trabalho e emprego na agricultura brasileira: um olhar para o período 2004-2014. Revista de Política Agrícola, 2016. Disponível em: https://seer.sede.embrapa.br/index.php/RPA/article/view/1204

BALSADI, Otavio V. et al. Agricultura do futuro: mudanças tecnológicas e organizacionais e seus reflexos no mercado de trabalho no meio rural. In: Anais do 61º Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural (SOBER). Piracicaba, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.29327/sober2023.624537

COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO (Conab). 8° Levantamento de Safra de grãos 2023/2024. Brasília, 15 de abril de 2024. Disponível em: https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/graos/boletim-da-safra-de-graos

Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar) e OXFAM Brasil. Propostas de direitos humanos a serem consideradas no Plano Safra 2024/2025. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/wp-content/uploads/2024/04/Propostas-para-o-Plano-Safra-2024-2025.pdf

DELGROSSI, Mauro; FLORIDO, Antonio Carlos; RODRIGUES, Luiz Fernando; OLIVEIRA, Marcelo S. Delimitando a agricultura familiar nos censos agropecuários brasileiros. Revista NECAT, 2019. Disponível em: https://ojs.sites.ufsc.br/index.php/revistanecat/article/download/4315/3243

HOFFMANN, Rodolfo e JESUS, Josimar G. de. A desigualdade da distribuição dos rendimentos agrícolas no Brasil. In: Anais do 61º Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural (SOBER). Piracicaba, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.29327/sober2023.623403

NEVES, Marcos Fava O Brasil como fornecedor mundial sustentável de alimentos, bioenergia e outros agroprodutos. In: PENA JUNIOR, Marcos A. G.; FRANCOZO, Marcos A. S. (eds.). O futuro da agricultura brasileira: 10 visões. 2023. Disponível em: https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/1153216/o-futuro-da-agricultura-brasileira-10-visoes