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Foto Paulo Pinto/Agencia Brasil
Ser mãe é muito mais do que gestar e dar à luz. E não poderia, não deveria, jamais, resultar de uma violência. Recorro à literatura para refletir a realidade do nosso país em relação a esse tema. No misto de ficção e história, em 'Um Defeito de Cor', de Ana Maria Gonçalves, lemos a saga de Heinde, a mãe cujo coração é marcado pela saudade do filho morto, fruto de um estupro perpetrado pelo dono da fazenda em que era escrava.
Luísa, seu nome cristão, obrigada a aceitar, mas que se recusava a usar, peregrina em busca do outro filho que o pai vendeu para pagar dívida de jogo. Essa, a saga de tantas e tantas mães. A associação entre violência, maternidade, machismo e dor. Essa é a realidade que desejamos ver banida do cenário nacional.
Queremos que a maternidade seja realizada por mulheres que a desejem, com quem desejem, quando puderem e quiserem. Jamais por meninas! No entanto, assistimos esta semana no Parlamento brasileiro cenas dignas de uma sociedade distópica como a descrita no 'Conto da Aia', de Margaret Atwood. Em nome de valores supostamente morais, éticos e religiosos foram negociadas a dignidade e a autonomia das mulheres e meninas brasileiras. Tornamo-nos, mais uma vez, moeda de troca, para cumprimento de negociações políticas.
No dia 12 do mês de junho deste ano de 2024, tentou-se - no âmbito da Casa que deve acolher e refletir na definição da legalidade os anseios da população - tornar mães, compulsoriamente, meninas – sim, meninas! – cuja gravidez resulta da violência de um estupro. Desrespeitou-se e banalizou-se a vida dessas meninas, condenando-as ao risco de morte. Desrespeitaram-se e banalizaram-se os princípios republicanos, a ética e a moralidade pública. Em consonância com o que vem acontecendo em outros países, a extrema direita neoliberal e religiosa mostrou a que veio: desregular e destruir a democracia. Inverteram-se os valores civilizatórios, em palavras do ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida.
A urgência do Projeto de Lei 1904, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcanti (PL/ RJ), pastor evangélico, foi autoritariamente imposta ao Parlamento pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP/AL), em votação simbólica que durou exatos 23 segundos. O caráter de urgência leva-o diretamente ao plenário da Câmara sem os trâmites da necessária discussão democrática e republicana em Comissões e com a sociedade civil. Tal PL, que equipara o aborto ao crime de homicídio, pune com prisão de até 20 anos sua realização após a 22ª semana de gestação, decretando a morte provável e previsível de inúmeras meninas, mulheres e pessoas que gestam, conforme evidência comprovada e testemunhos de profissionais da saúde. Não sem razão, tem sido chamado PL do estupro e PL da morte.
A sociedade brasileira, porém, não se calou diante de tamanha violação da nossa Constituição. Nela estão previstas três situações nas quais não há pena para a interrupção voluntária de uma gravidez: quando esta coloca em risco a vida da gestante; quando é constatada a anencefalia do feto e quando resulta de um estupro. Este último, o caso em questão. Uma multidão reagiu imediata e fortemente ao PL 1904 nas redes sociais e foi às ruas. Além de pedir a saída do presidente da Câmara, desmoralizado por seu comportamento, lembrou insistentemente que o Estado é constitucionalmente laico. A tentativa de parlamentares cristãos de tornar o país uma teocracia cristã, negadora da pluralidade religiosa, foi veementemente lembrada e rechaçada.
Mais uma vez ficaram claros os interesses políticos e o conservadorismo religioso que movem as bancadas religiosas organizadas no Congresso Nacional, ferindo valores republicanos e laicos. Nas próximas semanas, a Câmara será certamente monitorada, de maneira atenta, pela sociedade civil brasileira. Nenhuma tentativa de retrocesso em relação aos direitos, sexuais e reprodutivos conquistados deixará de ter resposta da sociedade, a ser expressa também nas urnas, nas eleições próximas.
Maria José Rosado é doutora em Ciências Sociais pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, França. Em 2021, nomeada pelo estudo AD Scientific Index (Alper-Doger Scientific Index), uma das 10 mil docentes mais influentes das Américas. Professora aposentada da PUC São Paulo; pesquisadora do CNPQ, do PAGU/UNICAMP. Fundadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Professora visitante na Universidade de Harvard, em 2003. Consultora ad hoc da FAPESP. Trabalhou com as Comunidades Eclesiais de Base nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Integra o GASC (Grupo Assessor da Sociedade Civil) da ONU Mulheres. Indicada ao Nobel da Paz, com outras 50 brasileiras. Integrou 100 United Nations Global Experts (2011). Integra Conselho e/ou Diretoria de várias organizações como ISER e ABONG. Suas publicações receberam prêmios como o Jabuti. Em 2015, organizou a obra Gênero, Feminismo e Religião – Sobre um campo em constituição.