Especial

Continuam as movimentações da Anistia Internacional, e logo lhe é concedido o visto definitivo. Pode respirar. E para respirar ainda melhor, conhecer a língua. Passa a frequentar um curso de francês.

 

Theodomiro começa a articular a ida para a França.

Era o destino dele.

Onde encontraria Conceição, a mulher.

E o filho, segundo filho, Fernando Augusto.

Além, claro, tantas pessoas conhecidas.

Paris, uma festa para os exilados de todo o mundo, então.

Procura o Ministério do Interior do México.

Informa da pretensão dele às autoridades mexicanas.

Tudo muito bem, tudo muito certo, dizem.

Porém, havia de renunciar ao asilo mexicano.

Um pouco preocupado com a notícia.

Mas, fosse.

Desde quando chegado à Nunciatura Apostólica, o destino na sua cabeça era Paris.

Compreendeu, aceitou a decisão mexicana, própria dos protocolos diplomáticos do país.

Voa dia 23 de dezembro do ano de 1979 para a capital francesa.

Reflete, outra vez: como fora decisivo aquele ano.

Como fora acertada a decisão da fuga.

A vida dera um giro de 180 graus.

Ficasse na Galeria F, e não tinha ideia do que poderia acontecer.

A loucura, ou parecendo loucura, daquela imersão por estradas, lavouras, caatingas, sertões, matas, rios.

Quase redescoberta do Brasil.

Aquela fuga, entregue nas mãos e armas de um partido mal estruturado, o PCBR, não obstante tão solidário.

A contar com companheiros, companheiras tão corajosas, dispostos a arriscar a vida para garantir a segurança dele, de modo a chegar ao destino, naquele caso, reta final, à Nunciatura Apostólica.

Pensa na ousadia, também, na impressionante coragem dos parlamentares, dispostos a dividir com ele a decisão de entrar na Nunciatura, e bancar a presença em território do Vaticano.

Chico Pinto e Airton Soares, no dia.

Freitas Nobre, junto na preparação.

Deles, jamais esquecerá.

Quanta coragem, disposição, compromisso revolucionário.

Pensa em 1979, mas recua ao ano de 1970, e depois ao cumprimento da pena, na Galeria F.

Quase nostálgico, recorda-se dos tantos companheiros daquela galeria, do quanto aprendeu ali.

Do quanto amadureceu ali.

Entrou quase menino, saiu adulto.

A universidade dele.

E agora, pronto para enfrentar o exílio.

Difícil fosse, nada, no entanto, parecido com aqueles nove anos de prisão, juventude roubada.

Um susto, asilo negado, depois aceitado, desembarca em Paris

Escalas em Toronto e Madrid.

Chega à capital francesa.

Baita susto ao desembarcar.

O asilo não seria concedido.

Polícia parisiense o manda de volta para o México.

Vai registrando: vida dura, a de exilado.

Jogado de um lado pra outro.

Susto.

Mas não se desespera.

Em Madri: outro susto.

Uma nada amistosa Guarda Civil o detém: nada de asilo.

Não esperava uma via crucis dessa.

Anistia Internacional começa a se movimentar quando sabe da recusa francesa.

Faz barulho, pressiona.

Com a pressão, é autorizado a voltar a Paris.

Visto provisório.

Continuam as movimentações da Anistia Internacional, e logo lhe é concedido o visto definitivo.

Pode respirar.

E para respirar ainda melhor, conhecer a língua.

Passa a frequentar um curso de francês.

Num agradável convento, em Fontenay-sous-Bois, pequeno município a quinze quilômetros de Paris, onde havia uma ala reservada a refugiados.

Precisava pensar nas condições materiais de existência, em como ganhar a vida.

Aparecesse qualquer oportunidade, agarraria.

Tinha de ter um ganha-pão.

Apareceu.

Pintor de paredes.

Qual o problema?

Mergulhar.

O patrão pintava as casas junto com ele.

A empresa: ele e o patrão.

Pensou: patrões não são todos iguais.

Mudando um pouco o pensamento.

O patrão pintor de paredes tornou-se um grande parceiro.

Falastrão, conversava que só o diabo.

Bem-humorado, enquanto trabalhava tornava os dias melhores para os dois.

Além disso, Dominique Migné, por falastrão, conversador, tornou-se o melhor professor de francês de Theodomiro.

Não, não considerava a profissão de pintor de paredes uma coisa menor.

No entanto, pudesse melhorar o ganho seria bom.

Inscreve-se na Agência Nacional para o Emprego da França.

Chamado para um curso de fresagem em Stains, a trinta quilômetros de Paris, promovido pela Associação para a Formação de Adultos.

Com bolsa de estudos.

Alcança a melhor nota do curso.

Ganha estágio de quinze dias na Renault.

De lambuja, curso de especialização em máquinas com comando mecânico.

Ia se convertendo num operário especializado.

Operário fabricante de armas

E de repente, a classe operária vai ao paraíso: contratado pela Mecânica Geral de Precisão Charles Robert.

Avançando dentro da empresa, olha com divertida ironia para tudo aquilo.

Tramas do destino: aprende a fazer peças para bombas atômicas.

E ainda: peças para turbinas de usinas nucleares.

Para radares de tanques de guerra.

Instrumentos para submarinos nucleares, peças e instrumentos de altíssima precisão.

Pensa na história, na vida.

Justo ele, jovem, muito jovem, envolvido na luta armada.

Certo: as armas de então eram muito precárias.

Mas, luta armada.

E agora, envolvido na fabricação de instrumentos para armas tão potentes.

"A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar.

No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda viva

E carrega o destino pra lá..."

Naquela metalúrgica, trabalha de 1981 a 1985.

Para brincar com uma expressão da época, integrou-se à produção.

Não como tarefa vinda de qualquer partido político, como ocorreu durante o período da ditadura.

Então, organizações revolucionárias destacavam militantes de classe média para se integrarem à produção, corrigirem os seus chamados desvios pequeno-burgueses, e, assim, se tornarem verdadeiros revolucionários.

Ação Popular, organização a que pertenci, praticou isso de modo regular.

Não.

Theodomiro integrou-se à classe operária a partir do imperativo da sobrevivência.

Precisava ganhar o chamado pão de cada dia.

Até porque tinha mulher e filho pra criar.

Pensando em retornar ao Brasil, memória reavivada

Só pôde pensar em retornar ao Brasil quando a ditadura acabou: 1985.

Quando pensou nisso, muito de todas as lembranças daquela pra ele já longa trajetória, voltavam como torrente, como ondas do mar, a bater e voltar na consciência.

Como chegara a abraçar a Revolução?

Desde os tempos de adolescente cristão, primeiros sinais de alguma consciência, de algum amor pelo próximo, compaixão, tristeza diante da miséria em Natal.

E depois, o Colégio Maristas, em Salvador, já mais consciente.

E o salto: o PCBR.

E eis-me aqui: pensando já em voltar ao Brasil – refletia.

Era 1985.

Ditadura acabara, não importa houvesse acontecido uma transição por cima.

Havia liberdade.

Dava pra arriscar, voltar à pátria tão querida.

Longa convivência, amizade eterna

E eu, antes de Theodomiro pisar essa terra, reflito sobre nossa convivência.

A do Forte do Barbalho.

Theodomiro, o primeiro a me ver assistir chegando carregado nu sobre uma maca por dois fortes soldados do Exército.

O corpo, marcado por feridas, por muitas cores, o roxo predominando.

Teve certeza estivesse morto.

Era um cadáver, chegando carregado.

Me revelou isso mais tarde.

Não estava morto.

Apenas um corpo terrivelmente massacrado por horas de torturas naquele 23 de novembro de 1970.

Inerte.

Como morto.

Nesse mesmo Forte do Barbalho, 2014 penso, nós dois havíamos lido ao quartel para gravar, e o entrevistador pergunta:

_ Como é sua amizade com Emiliano?

Theodomiro, devo dizer, foi levado a amadurecer muito cedo porque preso com 18 anos, condenado à morte com 19 anos.

Poderia ter sido destruído, desintegrado.

Resistiu.

E amadureceu.

Cresceu em meio às chamas da luta política, dentro das catacumbas da ditadura.

Diria ser um dos mais serenos dentre os prisioneiros políticos.

Não era de explosões.

Bom de convivência.

Cadeia, todos sabem, não é lugar fácil.

Os defeitos podem aflorar de modo explosivo.

Ou serem contidos pelos freios civilizatórios, como Freud ensinou.

Theodomiro, consciência política avançada pela experiência e pelo estudo continuado na prisão, era um sujeito civilizado, educado, gentil.

Sempre.

Nunca o vi numa explosão.

A civilização chegara a ele.

Um revolucionário civilizado.

E transmitia uma postura de revolucionário durão.

Nada de sentimentalismos.

Talvez por conta do tanto de sofrimento experimentado, sei lá.

Sensível, se traía.

Cultivava rosas à frente da cela.

Eu o via de cócoras tantas vezes, cuidando delas, como se conversasse com elas.

Pode ser o fizesse, murmurando modo a ninguém perceber tanta sensibilidade naquele sujeito aparentemente tão duro, pouco dado a emoções ou ternura com rosas.

A mim, sempre me impressionou a firmeza dele nos anos passados juntos na prisão.

E estivemos lado a lado desde os primeiros dias de prisão, os dele e os meus.

Nos encontramos no Forte do Barbalho, como já dito.

E depois ficamos presos na Galeria F, de onde saí no final de 1974.

Ele ficou até 1979.

Algumas vezes, em liberdade, eu o visitei na Galeria F da Penitenciária Lemos Brito, minha antiga morada.

Duas de minhas irmãs, Maria Aparecida e Vera Lúcia, o visitaram muitas vezes.

A primeira se casará com Denilson Vasconcelos, também ex-preso político, contemporâneo da Galeria F, já no reino dos encantados.

Theodomiro, então, era dos duros, sem jamais perder a ternura porque era ao mesmo tempo um sujeito cheio de ternura pelos companheiros.

Pude sentir isso quando fui acometido por uma otite, cujas dores eram desesperadoras.

Ele, cuidava.

Me dava analgésicos de meia em meia hora.

Essa otite nos levou a uma greve de fome de 13 dias, e tal greve acabou por curar minha otite.

A greve, vitoriosa.

O diretor Osmundo Tosca, da Penitenciária Lemos Brito, derrotado pela greve de fome.

Um queixo tremendo, lágrimas caindo, um abraço cheio de ternura

Então, o repórter-cinegrafista pergunta:

_ Como é sua amizade com Emiliano?

Theodomiro parou por um instante, sem palavras.

O queixo começou a tremer.

Descontroladamente.

E chorava.

Nenhuma palavra.

Tão grande, tão forte a amizade.

Apenas aquele tremor e aquelas lágrimas.

O tremor, as lágrimas falavam por ele.

Tenho um filho a levar o nome dele, Teodomiro.

Querem homenagem maior?

Foi amizade até o final da vida.

Adianto-me.

Tudo junto e misturado.

Theodomiro já bem doente.

Havia sofrido um AVC hemorrágico em 2018.

Eu, minha mulher, Carla, e Iago, filho dela, fizemos uma visita a ele no primeiro semestre de 2022, coisa de pouco mais de um ano antes da morte dele, ocorrida em 14 de maio de 2023.

Ele, mente bem afetada pelo AVC.

Muito bem cuidado por Virgínia, cercado de atenções por todos os lados.

Ela era a ponte dele com a vida.

A porta do apartamento foi aberta por ela.

Fui entrando, ele sentado à mesa de refeições, à minha direita.

Gritei bem alto:

_ Theodoroso – assim eu o chamava.

Ele respondeu, de pronto:

_ Emerenciano – como ele me chamava.

Um longo, terno, carinho abraço se seguiu.

Um dos momentos mais emocionantes dessa amizade.

Virgínia me falou: eu era uma das raras pessoas guardadas na memória dele.

Eu, pela profundidade da amizade de todos aqueles anos, conseguia avivar lembranças na memória dele, bastante comprometida.

Sentei e conversei com ele.

Acompanhando as ondas, os suaves delírios dele.

As lembranças de outros nomes, tudo junto e misturado.

Todos os companheiros de Galeria F vinham à tona.

A mim, não importava viessem em forma de construções fora do tempo.

Histórias cheias de colorido.

Muitas delas como se os atores estivessem ali, junto de nós dois.

Eu dando tudo como verdadeiro.

E tudo era verdade nos devaneios construídos por ele, e nem sei se tenho o direito de denominá-los devaneios. Sonhos cheios de alegria e felicidade, talvez seja melhor chamá-los sonhos.

Eram sonhos.

E Emerenciano ouvindo.

Dando crédito a tudo por amor a um revolucionário a jamais ser esquecido por todos nós, os que amavam os Beatles e os Rolling Stones.

E amavam profundamente a revolução.

E ele, Theodoroso, Theodomiro, agora se aprontava para deixar a maravilhosa Paris.

A cidade capaz de lhe restituir a alegria de viver

Ou ao menos a alegria de viver em liberdade.

Porque a bem da verdade jamais perdera a alegria de viver, mesmo sob as duras condições da ditadura, mesmo sob aquela quase uma década vivida sob as masmorras da ditadura.

Vencera a ditadura.

Morreu cedo, no entanto.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros