Cultura

Este texto não é sobre arquitetura, design ou decoração e, sim, sobre uma fábrica abandonada que foi projetada para se transformar em um grande centro cultural

Quero começar falando sobre cobogó. Para aqueles que não sabem, o cobogó é um elemento arquitetônico funcional e estético, criado e desenvolvido originalmente no Brasil, mais especificamente em Recife, no final dos anos 1920. É uma espécie de bloco vazado, geralmente feito de cimento, cerâmica, vidro ou outros materiais, que é usado para construir paredes e divisórias que permitem a passagem de luz e ar, enquanto oferecem certa privacidade. O nome "cobogó" é um acrônimo formado a partir dos sobrenomes dos três engenheiros que o criaram: Amadeu Coimbra, Ernest Boeckmann e Antônio de is. Eles patentearam a “invenção”, que hoje está espalhada pelo mundo e foi usada pela primeira vez em 1934, no projeto da Caixa D'Água de Olinda. Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, dois dos mais influentes arquitetos brasileiros do século 20, fizeram uso significativo do cobogó em seus projetos, integrando-os como um componente essencial na estética e funcionalidade de suas obras modernistas. Geralmente, essa técnica é utilizada em regiões de clima quente como uma solução eficiente para manter os ambientes ventilados e iluminados sem a necessidade de ar-condicionado, contribuindo assim para uma arquitetura mais sustentável e econômica. Além de sua funcionalidade, o cobogó também é valorizado por suas qualidades estéticas, sendo utilizado em diversos contextos de design interior e exterior para criar padrões visuais interessantes e dinâmicos em fachadas e interiores de edifícios. O cobogó é uma herança da cultura árabe, baseado nos muxarabis, construídos em madeira, que eram utilizados para fechar parcialmente os ambientes internos. É uma criação brasileira, sucesso no mundo todo.

Mas este texto não é sobre arquitetura, design ou decoração e, sim, sobre uma fábrica abandonada que foi projetada para se transformar em um grande centro cultural. Tinha, ou melhor, o espaço ainda tem, um gigantesco cobogó, que para mim é sua principal identidade física. A fábrica se chamava Lafersa, e a cidade é Contagem, em Minas Gerais.

Pretendemos aqui contar um pouco de história. Sobre a cidade, o projeto de industrialização, o movimento trabalhador e a empresa.

Contagem, localizada na região metropolitana de Belo Horizonte, tem suas raízes no início do século 18. Em 1716, durante o período colonial do Brasil sob o domínio português, a Coroa estabeleceu diversos postos de registros pelo território para controlar e taxar o fluxo de mercadorias, o que era uma prática comum para a fiscalização e a arrecadação de impostos. Um desses postos foi instalado na região conhecida como das Abóboras, que com o tempo se tornou o centro de uma pequena comunidade que passou a ser chamada de Arraial de São Gonçalo da Contagem das Abóboras. O nome "Contagem" deriva diretamente da função deste posto, que era responsável pela contagem e tributação de cabeças de gado, de escravos e de diversas mercadorias que transitavam pela área, refletindo a importância econômica e administrativa deste ponto de controle na região.

Ao longo dos séculos, Contagem sofreu uma notável transformação, impulsionada pela industrialização a partir da década de 1940. Seu rápido crescimento foi catalisado pela localização estratégica e por um projeto de instalação de grandes indústrias, que não apenas redefiniram a paisagem, mas também moldaram a identidade da cidade. Embora a industrialização tenha impulsionado o crescimento econômico e transformado Contagem em um dos principais polos industriais de Minas Gerais, esse processo também trouxe consigo desafios significativos e repercussões negativas.

A industrialização intensa também resultou em aumento da poluição ambiental, degradação dos ecossistemas locais e condições de trabalho muitas vezes precárias, marcadas por baixos salários, jornadas extenuantes e segurança insuficiente. Estas condições adversas não só afetavam a saúde e o bem-estar dos trabalhadores, mas também alimentavam o descontentamento e fomentavam lutas trabalhistas importantes, evidenciando que, apesar dos avanços econômicos, a industrialização em Contagem exigiu um alto custo social e ambiental, levantando questões críticas sobre a sustentabilidade e equidade do desenvolvimento impulsionado pela indústria.

E aí temos a história do movimento dos trabalhadores e trabalhadoras no Brasil, que, necessariamente, atravessa a cidade de Contagem. Esta história é marcada por um ponto crucial durante a ditadura militar, destacando-se pela greve dos metalúrgicos em 1968, que se tornou uma das primeiras e mais significativas mobilizações sindicais contra as políticas repressivas e de arrocho salarial do regime. A cidade viu nesta greve não apenas uma disputa por melhores salários, mas também um forte componente político de resistência contra a opressão estatal. A ocupação da siderúrgica Belgo Mineira por sindicalistas, que culminou em uma paralisação que afetou cerca de 20 mil trabalhadores em poucos dias, simbolizou uma resposta direta às tentativas do governo de suprimir os direitos trabalhistas e democráticos.

O impacto da greve transcendeu os limites da cidade e reverberou por todo o país, influenciando outras mobilizações e fortalecendo a luta por democracia e justiça social no Brasil. A resistência dos trabalhadores de Contagem, apesar da intensa repressão que incluiu a intervenção das forças armadas para dissolver as manifestações, não foi em vão. A persistência resultou em um reajuste salarial de 10%, concedido sob pressão no dia 1º de maio de 1968, uma conquista que, embora apresentada pelo regime como uma concessão generalizada, foi claramente um resultado direto da luta dos metalúrgicos de Contagem. Este evento não só fortaleceu o movimento sindical no Brasil como também realçou o papel de Contagem como um cenário fundamental nas discussões sobre direitos trabalhistas e liberdade política no país.

É importante este contexto histórico da cidade e de seu desenvolvimento para podermos voltar à Lafersa, situada no coração do bairro cidade industrial, o primeiro polo industrial planejado do Brasil. Ela foi uma das indústrias mais significativas de Contagem, desempenhando um papel importante durante a fase de forte industrialização na região nas décadas de 1970 e 1980. Inaugurada na década de 1970, a siderúrgica especializou-se na produção de laminados de ferro e aço, fornecendo materiais essenciais para setores como o da construção civil e o automotivo. Sua operação foi fundamental não apenas para o desenvolvimento econômico da cidade, mas também para sua transformação em um dos principais polos industriais do estado. A Lafersa era parte integrante da "Cidade Industrial", um ambicioso projeto de planejamento urbano que buscava agrupar diversas indústrias para potencializar o crescimento econômico regional.

No entanto, o crescimento e sucesso da Lafersa não vieram descontextualizados de seus paradoxos e contradições. Na década de 1990, a empresa enfrentou embates significativos relacionados a questões trabalhistas e ambientais, como a poluição sonora, que levaram ao seu fechamento devido a pressões legais e reclamações da comunidade. Este fechamento não apenas marcou o fim de uma era de produção industrial pesada em Contagem, mas também deixou um rastro de desafios econômicos e sociais.

As instalações abandonadas se tornaram símbolo das transformações econômicas da região, refletindo os altos e baixos da industrialização. Com o tempo, esse espaço, reconhecido como parte do patrimônio industrial da cidade, começou a ser visto com potencial para ser transformado em um valor simbólico e reinventado na sua utilização.

Agora comecemos a segunda parte da história (que neste texto aqui tem três): o que fazer com uma empresa abandonada?

No final do segundo mandato da prefeita Marília Campos (2009 – 2012), a empresa Direcional Engenharia acertou com a Prefeitura de Contagem uma das contrapartidas pela permissão para construir torres residenciais num terreno que havia adquirido. Esta contrapartida incluía a doação de pequena porção deste terreno e a restauração de parte do parque industrial da antiga Lafersa, sob a orientação do arquiteto Fernando Pimenta, transformando o espaço em um local para eventos e que também abrigaria o Centro de Memória do Trabalhador e da Indústria, com o objetivo de preservar e refletir sobre a complexa história industrial de Contagem e seus impactos duradouros na comunidade e no meio ambiente.

Em 2016, após muitos anos, as instalações foram entregues ao poder municipal, marcando o início de um processo destinado a definir os conceitos, diretrizes e utilização adequada do espaço, com o potencial de transformar o local em um ponto de interesse e utilidade pública, promovendo o desenvolvimento e enriquecimento cultural do entorno. O cobogó foi todo restaurado de forma artesanal, mantendo assim sua função estética e funcional. No entanto, o espaço, em vez de ser aproveitado para o benefício público, enfrentou um longo período de abandono e negligência que, sem manutenção ou investimento, deteriorou-se significativamente, refletindo não apenas um descaso com o patrimônio público, mas também uma oportunidade perdida para revitalizar e infundir nova vida na área.

Em todo o mundo, espaços industriais abandonados têm sido transformados em centros culturais como, para citar um exemplo, o SESC Pompeia em São Paulo, um antigo galpão de tambores reconvertido pela arquiteta Lina Bo Bardi na década de 1970. Mantendo elementos originais, o espaço agora serve como um dinâmico centro cultural que preserva sua herança industrial enquanto oferece uma ampla gama de atividades culturais. Este projeto é reconhecido como um marco da arquitetura de reuso no Brasil.

Alguns outros exemplos incluem a Fábrica Bhering no Rio de Janeiro, que se tornou um espaço cultural e artístico, e o Porto Digital em Recife, originalmente um porto, agora um hub de tecnologia que também abriga áreas culturais. Em Porto Alegre, a antiga Usina do Gasômetro foi convertida em um importante centro cultural. Em Juiz de Fora, a Fábrica São Luiz se transformou no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, dedicado a exposições de arte e eventos culturais e em Itu, a Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA) revitalizou uma fábrica de tecidos, criando um espaço dedicado à arte contemporânea.

Internacionalmente, o Tate Modern em Londres é um exemplo marcante de transformação de espaços industriais em centros culturais. Localizado na antiga Bankside Power Station, uma usina elétrica, tornou-se um dos museus de arte moderna mais visitados do mundo e desempenhou um papel crucial na revitalização da área do South Bank do rio Tâmisa. O projeto manteve muitos elementos originais do edifício, enquanto introduziu inovações de design contemporâneo, combinando a herança industrial com a arte moderna. Outro exemplo notável é o El Matadero em Madri, um antigo matadouro convertido em um dinâmico centro de artes, que hoje abriga uma variedade de disciplinas artísticas. Esses casos ilustram como instalações industriais obsoletas podem ser transformadas em locais de cultura e educação, impulsionando a regeneração urbana e o enriquecimento cultural.

A terceira parte desta história tem início quando a prefeita Marília Campos assume pela terceira vez a prefeitura de Contagem em 2021 e, diante de um espaço abandonado e saqueado há muitos anos, solicita à nova gestão da cultura municipal um projeto para a ocupação daquele espaço. Motivados por um intenso e extenso debate interno, optou-se por lançar um edital de chamamento de uma Organização Social, baseado no Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, para selecionar um parceiro que colaborasse na concepção e na administração da programação do futuro centro cultural. Este modelo mostrou-se o mais adequado para superar as fragilidades do poder público na gestão de um espaço de tamanha grandiosidade, permitindo escolher um parceiro estratégico ao invés de optar pela simples terceirização da gestão do espaço. Neste processo, o Instituto Periférico foi selecionado de maneira transparente e democrática para implementar o projeto, baseado no conceito previamente debatido e desenvolvido pela Prefeitura para o espaço futuro.

Surge então a FÁBRICA – Centro Público de Memória, Inovação e Arte. As ideias sobre este novo conceito para o espaço vão muito além da ideia original do Centro de Memória do Trabalhador, embora ainda o inclua, concebendo o local como um potente centro cultural multilinguagem, mantendo em uma das suas preocupações centrais a preservação da memória dos trabalhadores e trabalhadoras da cidade, bem como da história do desenvolvimento industrial.

O Projeto da Fábrica foi concebido com a visão de se tornar um polo cultural e educativo multifuncional, desenhado para responder às necessidades e aspirações da comunidade. Com a ideia de requalificar um espaço anteriormente industrial, o projeto em seu funcionamento foi meticulosamente planejado para abrigar uma ampla gama de atividades e eventos que atravessam várias formas de expressão cultural e artística. Deste modo, o espaço está destinado a sediar uma intensa programação artística que inclui música, teatro, literatura, artes plásticas e arte urbana, transformando-o em um verdadeiro caldeirão de criatividade e inovação artística. A flexibilidade do espaço permitirá também que ele funcione como um centro de eventos, capaz de hospedar desde feiras e congressos até seminários e outras reuniões, tanto de caráter corporativo quanto público, proporcionando assim infraestrutura robusta para o encontro de ideias e trocas profissionais.

Além de suas iniciativas artísticas, a Fábrica tem como objetivo revitalizar a narrativa histórica e cultural de Contagem, refletindo sobre seu legado industrial e a jornada da classe trabalhadora. Este esforço para preservar e explorar a história local não só enriquece a memória coletiva, mas também ajuda a comunidade a compreender e valorizar as transformações urbanas e sociais ao longo dos anos. Com uma infraestrutura que celebra a rica herança industrial e ao mesmo tempo olha para o futuro, a Fábrica pretende ser um polo de inovação, integrando arte, ciência e tecnologia em seu espaço de 24 mil m2.

Este ambicioso projeto também busca impulsionar o crescimento local por meio de um hub de economia criativa, aproveitando o potencial do espaço para atrair parcerias público-privadas e investimentos diretos. A estratégia está desenhada para transformar a Fábrica em um marco regional, redefinindo Contagem como um centro dinâmico de cultura e criatividade que atrai tanto talentos quanto turistas, contribuindo significativamente para a economia local.

Para garantir que a Fábrica alcance seus objetivos ambiciosos e se mantenha relevante e integrada à comunidade de Contagem, o projeto adotará uma governança polifônica. Esta abordagem enfatiza a importância da participação ativa de diversos grupos sociais, incluindo movimentos comunitários, artistas locais e visitantes. Promovendo uma gestão democrática e inclusiva, a Fábrica não será apenas um espaço de eventos e exposições, mas um verdadeiro ponto de encontro para a expressão cultural e social, refletindo e atendendo às necessidades da população local.

O espaço abrange uma extensa área verde de mais de 20 mil metros quadrados, destinada a abrigar um centro de educação ambiental. Este centro será dedicado a pesquisas e atividades educativas, com o objetivo de fomentar a sustentabilidade e elevar a consciência sobre a importância da proteção ambiental.

Em suma, as diretrizes do projeto Fábrica preveem não apenas a transformação física de um espaço, mas também a revitalização cultural e social de Contagem. Para além disso, espera-se que, em breve, a Fábrica se destaque como um equipamento público de referência na Região Metropolitana, demonstrando o poder transformador da cultura e da arte no desenvolvimento urbano contemporâneo.

Que todos possam apreciar o belo cobogó que conduziu a narrativa deste texto até aqui. Se esses cobogós foram projetados para permitir a passagem do ar, que por eles continuem soprando os ventos do passado, do presente e do futuro, simbolizando as mudanças que atravessam o crescimento da cidade, seu movimento trabalhista e sua reinvenção contemporânea.

Marcelo Bones, formado em Ciências Sociais, tem uma trajetória destacada como diretor de teatro e gestor cultural. Entre 1990 e 2016, atuou como professor no Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado (CEFAR). Ocupou o cargo de Diretor de Artes Cênicas na Funarte/MINC entre 2009 e 2011. De 2015 a 2016, desempenhou papel como consultor na área de teatro para a Política Nacional das Artes do Ministério da Cultura. Criador e coordenador do Observatório dos Festivais e Diretor Executivo da Platô – Plataforma de Internacionalização do Teatro. Foi Diretor de Articulação da Secretaria de Cultura de Belo Horizonte de agosto de 2017 a dezembro de 2019 e Subsecretário de Cultura de Contagem de janeiro de 2020 a janeiro de 2024.