Sociedade

Envolta em ambiguidades e em sonhos, a ideia de liberdade se tornou valor para civilidade e para as sociedades moderna e contemporânea

A revolução francesa entronizou com seu lema - liberdade, igualdade e fraternidade - uma vigorosa aparição pública da noção de liberdade, ainda que nem sempre ela se traduzisse em algo efetivo. Alejo Carpentier tece as ambiguidades dos revolucionários franceses em abolir ou não a escravidão. No seu belo romance O século das luzes, as contradições caribenhas da Revolução Francesa ofuscam suas luzes. A perseguição ao Haiti e aos jacobinos negros da revolução haitiana, que aboliu a escravidão e criou uma república na América Central, constitui-se em outro exemplo que obscurece o brilho do lema da França revolucionária.

Apesar das contradições, a liberdade, tão cantada e decantada, inspirou revoluções. Na Bahia, a Revolta dos Búzios (1789), conhecida também como Revolução das Alfaiates ou “Inconfidência” Baiana, se inspirou nos ideais francesas, que mobilizaram alfaiates, negros libertos, soldados, escravos, brancos, artífices, intelectuais e muitas outras pessoas contra o colonialismo português e a escravidão negra. O recente filme A revolta dos búzios, de Antonio Olavo, é bela homenagem aos que lutaram e aos quatro de morreram esquartejados na hoje Praça da Piedade, pela liberdade.

Envolta em ambiguidades e em sonhos, a ideia de liberdade se tornou valor para civilidade e para as sociedades moderna e contemporânea. Ela inspirou lutas e criações humanas, demasiadamente humanas. Em prol da liberdade, muitas pessoas lutaram, dedicaram vidas inteiras e se sacrificaram. Ela inspirou infinitas artes e instigantes pensamentos. A busca da liberdade conformou a história e a humanidade.

Recentemente a liberdade vem sendo sequestrada pela direita e pela extrema-direita. Silvio Berlusconi na Itália, em 2009, talvez tenha sido um dos primeiros sequestradores, ao criar e presidir seu partido: O Povo da Liberdade. Ele inventou e costurou afinidades entre liberdade e neoliberalismo. Para além de Berlusconi, cabe uma pergunta: de que liberdade se trata na sua conjugação com o neoliberalismo, se em sua história ele teve estreitos enlaces com regimes ditatoriais, a exemplo da ditadura do sanguinário Augusto Pinochet no Chile?

O neoliberalismo tem como alvo desregular a sociedade para que o mercado possa exercer toda sua fúria e levar o “progresso” à sociedade, ou mais precisamente para alguns setores capitalistas circunscritos. No seu afã desregulatório, os direitos coletivos de qualquer tipo, conquistados por seculares lutas, aparecem como inimigos a derrotar e a destruir. Nada casual que o neoliberalismo e os direitos sociais, políticos, ambientais, culturais, dentre outros, não pareçam combinar. Para ele, vale tão somente a entronização de alguns direitos individuais enviesados, pois imaginados fora de qualquer conexão social.

O neoliberalismo pretende libertar o liberalismo de todas as amarras que a democracia construiu historicamente para fazê-lo reconhecer que a sociedade, além de uma soma de individualidades, é coletividade. Em sua história passada, o liberalismo lutou por direitos individuais, relevantes para se contrapor ao Estado absolutista então em vigor, mas ele se mostrou refratário e mesmo contrário a direitos coletivos, a exemplo dos direitos políticos de livre associação e de livre organização partidária. Com intensas lutas, os movimentos democráticos e populares conseguiram impor limites ao liberalismo e implementar direitos coletivos na política, nas condições de trabalho, na educação, na saúde, no meio ambiente, na cultura etc.

Os indivíduos, sempre sociais dado que se desenvolvem e vivem em sociedade, buscam historicamente constituir organismos, instituições, leis, normas e direitos coletivos para viabilizar a vida social e, inclusive, a individual. Com tal finalidade, a sociedade necessita de regras, que permitam a expressão tanto dos interesses coletivos, quanto das singulares individualidades, mas também precisa que sejam coibidos os comportamentos individuais e coletivos de teor antissocial, que se revelem contrapostos à civilidade, à vida coletiva e a convivência em sociedade.

A liberdade sequestrada pela extrema-direita busca destruir normas sociais, construídas democraticamente pelas lutas, cotidianas e históricas, da humanidade para regular e viabilizar a vida em sociedade. A democracia se constitui sempre com base em regras compartilhadas, resultantes das correlações de forças existentes na sociedade.  Por certo, tais normas merecem ser aprimoradas, pois podem conter registros de injustiças, mas não devem ser destruídas, sem mais.

O neoliberalismo sonha com liberdade de mercado em um mundo em que a concorrência de mercado se tornou cada vez mais secundária, escassa e mesmo inexistente, devido à gigantesca concentração empresarial própria do capitalismo atual, dito monopolista, imperialista e transnacional. Eliminar regras, em verdade, não significa fazer renascer a concorrência, mas sim escancarar liberdade para que as enormes empresas, especialmente as do dominante capital financeiro, possam impor seus interesses privados na sociedade, sem restrições.

Por certo, reduzir o neoliberalismo à sua dimensão econômica é um equívoco. Ele se tornou um fenômeno multifacetado: político, social, ambiental, midiático, cultural etc. Governos e organismos supranacionais impõem políticas neoliberais nos mais variados ramos da sociedade. A desigualdade social crescente entre pessoas e entre povos explode cada vez mais feroz. Ela aparece como característica imanente ao neoliberalismo. Suas concepções de mundo e de vida hoje têm enorme presença na sociedade, inclusive por conta do controle descomunal da grande mídia. A hegemonia, internacional e nacional, da cultura neoliberal, impregnada de individualismo, produtivismo, competitividade, elitismo, meritocracia, dentre outros fatores, se mostra abrangente. O neoliberalismo extrapola os limites da economia e contamina toda a sociedade.

Mesmo que não se possa identificar, de imediato, neoliberalismo e extrema-direita, pois muitos experimentos neoliberais aconteceram e ocorrem em situações ditas democráticas, não é sem sentido propor sua vinculação à corrosão da democracia na atualidade e, por consequência, ao crescimento do autoritarismo, do neofascismo e da extrema-direita no mundo e no Brasil. A destruição de direitos, a aversão a normas sociais, a vigência da lei do mais forte, a inibição da participação e a fragilização do atendimento de demandas sociais, dentre outros, configuram um cenário propicio para a crise da democracia.

No pós-Segunda Guerra Mundial a tensa concorrência entre capitalismo e “socialismo real” possibilitou a existência da social-democracia, derivada de lutas sociais e de concessões dos capitalistas às classes populares no Ocidente. Com a crise do “socialismo real”, o neoliberalismo buscou reverter concessões e libertar o liberalismo dos limites regulatórios da democracia, então desenvolvida. Alicerces da democracia se corroeram, pois ela deixou de assegurar o chamado Estado de bem-estar social.

O neoliberalismo intensifica as dificuldades, desde sempre existentes, do liberalismo em conviver com a democracia. A liberdade, agora ressignificada pela direita e pela extrema-direita, não remete mais a seu potencial emancipador, libertador e revolucionário, mas assume um significado claramente retrogrado: liberdade conquistada pela destruição de normas democráticas, tomadas como algemas tanto às forças do mercado, quanto às individualidades, concebidas como supostas vítimas da opressão da sociedade existente. Em verdade, aqui não se trata de indivíduos, em sua generalidade, mas de uma minoria de individualidades superpoderosas, que podem se alvorar como autônomos e mesmo superiores à sociedade.

Nada estranho que tal liberdade ressignificada seja adotada e reivindicada enfaticamente pela extrema-direita em sua investida, por dentro e por fora da democracia, para destruí-la e para implantar suas metas de regimes autoritários. Javier Melei frequenta partidos e coalizações intitulados Partido Libertário e Coalização A Liberdade Avança, além de decretar que 2024 será o “ano da defesa da vida, da liberdade e da propriedade” na Argentina. Jair Messias Bolsonaro ressurge na atual propaganda eleitoral reivindicando a liberdade, como fator primordial na cena política, ao lado do tradicional Deus, pátria e família. Na disputa político-cultural-ideológica, a direita e a extrema-direita buscam sequestrar a liberdade e transformá-la em instrumento contra a democracia.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT) e professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura) da Universidade Federal da Bahia (UFBA)