Nacional

O Brasil se mostra uma colônia digital. Sem exagero, pode-se dizer que, em termos de Século 21, a completa independência do Brasil ainda está por ser proclamada através da criação de nosso próprio sistema de gestão da Internet.

Toda guerra destrói e simultaneamente ensina, mostra a História. O confronto armado na Ucrânia e o bloqueio econômico à Rússia atualizaram, de forma contundente, essa velha verdade. As armas digitais e a divisão do mundo em blocos econômicos diferenciados impõem um repensar também no Brasil, como nas propostas aqui delineadas.

1) A Urgência da Soberania Digital

Observado as múltiplas variedades de bloqueio que vêm sendo praticadas, algumas inéditas e de graves consequências como o confisco de fundos soberanos dolarizados, não seria difícil imaginar que outros tipos de ataque, mais “limpos” e fáceis de fazer, além de bem focados no inimigo e altamente danosos a ele, certamente estariam sendo utilizadas, se estivessem ao alcance dos “bloqueadores” fazê-los. Exemplos: o impedimento da imensa maioria das operações bancárias internas no país adversário, a interferência nos controles de voo, militares e civis, em quase todos os seus aeroportos, a suspensão do envio de mensagens eletrônicas por parte de seu governo ou de quem mais quisessem e até, por mera demonstração de força, o desligamento dos controles da sinalização de trânsito de sua capital. Coisas como essas podem ser provocadas, mesmo que parcialmente, por um simples toque num comando digital a milhares de quilômetros do alvo, pois passam necessariamente, por algum sistema de códigos de endereçamento de internet.

Por isso, o controlador de tal sistema, sem nenhum esforço, pode anular qualquer código IP em qualquer ponto da Terra e deixar seu usuário imobilizado, fora do “mundo virtual” e sem controle sobre uma infinidade de ações no “mundo físico”. Porém, tal ameaça não preocupa os russos, nem preocuparia os chineses ou indianos, simplesmente porque, preventivamente, cada um deles criou seu próprio sistema de endereçamento de internet.

O Brasil, enquanto isso, não se preocupa com o tema, não sente a proximidade das grandes ameaças e continua sendo um dependente digital, uma nova espécie de colônia nesse novo mundo, sujeito passivo no endereçamento feito pelo sistema IANNA/ICANN do Departamento de Comércio do governo americano. Há uma longa cadeia de “pequenos” fatos, sentidos por nós no cotidiano, que estão ainda atrelados, de igual modo, à “liberdade condicional” concedida pelo “imperialismo eletrônico”. O cumprimento de decisões judiciais, a aplicação de possíveis acordos tributários do setor, a fiscalização dos direitos autorais em relação aos “streamings”, os necessários controles sociais e transparência dos algoritmos das plataformas de busca, a privacidade de um simples celular isolado ou de um complexo industrial/tecnológico inteiro, são exemplos que falam por si.

Pelo prisma das entradas e saídas dos “bits”, o Brasil se mostra uma colônia digital quase sem controle de “fronteira”, sem “passaporte” ou “aduana”, entregue a gratuita e voluntária suserania. Sem exagero, pode-se dizer que, em termos de Século 21, a completa independência do Brasil ainda está por ser proclamada através da criação, imediata e de baixo custo, de nosso próprio sistema de gestão da Internet.

2) A Inclusão Tributária Possível

Outro ponto, não menos relevante, se refere à premente necessidade de crescimento da receita do governo para fazer face, simultaneamente, às metas fiscais e às demandas por investimentos e outros gastos, sobretudo com a recuperação gaúcha. Um aumento no valor de alíquotas já existentes, ou outro modo de aumento da carga tributária de forma não focada, causaria fortes efeitos colaterais na economia, além do negativo impacto político. A melhor solução é a busca de novos nichos surgidos na economia, ainda pouco ou nada tributados. Exatamente esse é o caso de grande parte “big techs” no Brasil e em todo o mundo. Ganham muito, crescem muito e praticamente nada pagam. Economistas de diferentes partes do mundo há muito vinham sonhando que poderiam construir um acordo tributário mundial capaz de obrigar o chamado GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) a recolher um pretenso imposto compartilhado global, que para ter um mínimo de eficácia teria de unir Estados Unidos, Rússia, China e União Europeia, além de todos os paraísos fiscais existentes. Essa irmandade fiscal estaria fixando, cobrando e repartindo os resultados de um novo imposto supranacional a incidir exatamente sobre esse setor. De fato, parecia ser uma justa retribuição pela apropriação planetária que fazem de mercados e informações. Mas esse projeto, na prática, morreu vítima de guerras, bloqueios e disputas de hegemonia. Seu objetivo central, no entanto, o de finalmente fazer pagar quem muito ganha, está bem vivo e presente nesta proposta aqui apresentada. Foi um longo desenvolvimento por equipe especialmente formada pelo CAE/FPA e dezenas de colaboradores. No resultado, talvez, a prova de que o Brasil pode fazer primeiro e sozinho, “como nunca antes na história dos países”, e promover a “inclusão tributária” daqueles que prosperaram à sombra dos lucros e à margem do esforço comum de financiar o desenvolvimento e o bem-estar de todos. No caso do Brasil, a criação de contribuição social como a aqui apresentada, não conflitante com a reforma tributária em curso e nem passível (esse é um seu ponto muito forte) de ter repassado seu custo da empresa para o consumidor brasileiro, torna-se ainda mais valiosa por vir num momento tão exato para atender à tragédia climática do Rio Grande do Sul, para aliviar nosso esforço fiscal, para viabilizar nossa soberania digital e trazer junto com a implantação da Internet nacional para todos.

3) A Caminho da Prática: Um Projeto de Lei Para Já

Art.1º - Fica criada a Contribuição Social Sobre a Propriedade de Sistemas de Interface Entre Usuários de Internet (CPSI) para aplicação no fortalecimento da soberania digital nacional, no desenvolvimento regional e na recuperação de danos por catástrofes coletivas regionais.

Art.2º - Para fins de incidência da CPSI, são considerados sistemas de Interface entre usuários da internet (SI), as ferramentas, plataformas, motores, buscadores, operadores de e-mails e de mensagens ou outros instrumentos, físicos ou virtuais, que viabilizem o enlace entre dois ou mais terminais de transmissão e/ou recepção de sinais via internet, sejam na forma de dados, sons, imagens ou comandos de qualquer tipo de percepção entre eles.

Art. 3° - A tributação pela CPSI terá como fato gerador a propriedade, ou o domínio em suas variadas formas, de um SI que opere no sentido de promover interfaces entre terminais de internet no Brasil.

§1º - O fato gerador da CPSI, uma variável de estoque, será medido, para fins de enquadramento de cada SI em sua respectiva alíquota tributária, pela quantidade de terminais de internet no país que utilize algum ponto de enlace vinculado a tal SI como instrumento para realizar interface com outros terminais de internet em qualquer parte do mundo.

§2º - Considera-se, para fins do dimensionamento previsto no parágrafo anterior:

I - cada aplicativo, sua cópia ou instrumento equivalente, instalado em terminal de internet, ou que dele faça parte, que vincule o vincule ao respectivo SI;

II - poderão ser computados ou não, a critérios de normas da Receita Federal, como integrantes de um mesmo SI, os pontos de enlace de seus subsistemas, de sistemas a ele vinculados ou dele derivados, ou que sejam conjuntamente operados ou funcionem de alguma forma cooperados;

III - os critérios previstos no inciso II deste parágrafo, serão aplicados mesmo que os pontos de enlace considerados tenham usos modificados ou não, adotem marcas ou denominações diferenciadas ou não;

IV- a lei ordinária poderá definir de forma diferenciada e adicional como elemento da valoração quantitativa para aplicação da CPSI as informações colhidas com a utilização da SI, tais como cadastro individual, formulário, inscrição, catalogação, ou ainda qualquer outro tipo de informação ou registro sobre o terminal de internet ou seu usuário.

§3º - A CPSI será incidente mesmo quando:

I - o SI estiver situado no exterior;

II – o ponto de enlace instalado num determinado terminal de internet não tiver sido acionado;

III – o uso do SI for disponibilizado sem cobrança direta do usuário dos terminais de internet;

IV – os terminais de internet interligados pelo SI fizerem parte de equipamento ou ambiente de funcionamento do próprio usuário do sistema;

V – a interface entre os terminais de internet feita com utilização da SI for elemento necessário a fato gerador de outro tributo além da CPSI;

VI – a ação do contribuinte proprietário do SI for apenas:

a) instrumento de gestão;

b) administração ou supervisão do processo;

c) concedente de identificação ou marca do SI;

d) responsável apenas por uma parte do sistema;

VII– a transmissão e recepção de sinais via internet for:

a) entre pessoas, instituições, robôs, aplicativos, máquinas, equipamentos ou coisas físicas ou virtuais;

b) diretamente, em vivo, ou através de informações, arquivos, recuperação de dados, contas, anotações e lançamentos financeiros e creditícias, jogos, apostas, filmes, vídeos, música ou qualquer outro tipo de transmissão.

§ 4º - Respondem solidariamente como contribuinte do tributo:

I – proprietário ou gestor das ferramentas de enlace das transmissões e recepções possíveis de serem feitas com a utilização do instrumental que constituem o fato gerador da CPSI, sejam elas, pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras;

II– todos os demais envolvidos no sistema que viabilize a transmissão e recepção de sinais via internet como um todo na condição de provedor, operador, fornecedor, distribuidor ou qualquer outra função essencial aos serviços abordados neste artigo.

Art. 4º - A CPSI será gerida pela União Federal observado o seguinte:

I – Lei ordinária federal regulamentará a cobrança da CPSI bem como poderá completar suas definições e estabelecer procedimentos operacionais necessários à sua aplicação;

II – as aferições de fatos geradores e o cálculo dos impostos por contribuinte serão feitas nacionalmente;

III – em casos de inadimplência no recolhimento do tributo, fica o Poder Executivo autorizado a suspender as operações no país das SI correspondentes aos fatos geradores de tal inadimplência;

IV – em casos de persistência ou reiteração sistemática da inadimplência acima referida, poderá o Poder Executivo:

a) estender a suspensão a outras SI operadas pelo contribuinte inadimplente ou por contribuinte a ele associado;

b) para não causar transtornos aos usuários das SI cujos funcionamentos tenham sido suspensos, buscar formas alternativas por outro meio disponível e oferecê-las para contatos entre tais usuários.

Art. 5º – As alíquotas da CPSI definidas em lei ordinária obedecerão a modelo ad rem aplicada a cada contribuinte, segundo faixa quantitativa de terminais de internet interligados aos pontos de enlace de cada SI:

I – o número de pontos de enlace e de terminais de internet interligados a determinado SI deverá ser fornecido pelo próprio contribuinte ou qualquer outro participante de sua cadeia de funcionamento;

II – a União e os estados deverão realizar pesquisas científicas por amostragem para verificação dos quantitativos a serem considerados na tributação;

III – o valor da alíquota e a periodicidade da cobrança, dentre outros aspectos, serão definidos em lei ordinária regulamentadora;

IV – o valor da alíquota será ad rem por faixas quantitativas de terminais de internet no país por pontos de enlace relativo a respectivo SI, faixas estas definidas em lei;

V – a lei que definirá as faixas quantitativas referidas no inciso IV deste artigo poderá estabelecer diferentes tabelas segundo tipologia das SI, de seus controladores e/ou de suas diferentes funções na economia nacional;

VI – a lei federal poderá conter fórmulas de equalização de dosimetria da incidência das alíquotas da CPSI em função de diversas situações econômicas para isso podendo isentar ou reduzir sua aplicação bem como oferecer regimes especiais de tributação em casos de contribuintes:

a) que façam comercialização ou prestem serviços em paralelo, simultâneos, correlacionados ou dependentes da respectiva SI e que demonstrem persistente adimplência quanto à tributação própria de tais operações e fatos geradores distintos do aqui regulamentado;

b) cujo valor da tributação seja considerado deletério aos interesses nacionais;

c) que tenham domínio sobre SI de interesse público;

VII – a lei federal deverá conter tabela progressiva adicional, podendo elevar em até 50% a alíquota correspondente a determinada SI, para casos em que ocorrer, nos termos da lei, apropriação de informações de pessoas físicas ou jurídicas, cadastros, dados, inscrições ou estatísticas de usos e preferências , mesmo que previamente consentidas, bem como, em geral, todo e qualquer elemento que tenha potencial para orientar, mesmo que no exterior, práticas comerciais, publicitárias, de divulgação ou de informação de qualquer natureza, por serem tais práticas apropriação privada de partes indissociáveis do mercado interno nacional, sendo este um patrimônio exclusivo do país nos termos do art. 219 da Constituição Federal;

VIII – a lei ordinária poderá isentar da tributação pela CPSI, os SI referentes a contribuintes especiais, tais como igrejas, partidos políticos, entidades sindicais de trabalhadores, órgãos públicos da administração direta ou indireta, dentre outros.

Art. 6º – Os recursos arrecadados pela CPSI serão aplicados:

I – na criação e implantação dos instrumentos de fortalecimento da soberania digital nacional previstas nesta lei;

II – em investimentos em tecnologia para o desenvolvimento regional, sobretudo nas regiões e estados mais carentes, previstos em planos aprovados pelo Congresso Nacional;

III – em recuperação de danos por catástrofes coletivas regionais, aprovada tal destinação pelo Congresso Nacional, casos estes que terão prioridade absoluta sobre qualquer outra aplicação.

Art. 7º – Enquanto não for editada a lei ordinária estabelecendo as alíquotas da CPSI, será aplicada a seguinte tabela de incidência anual do imposto por número de pontos de enlace de cada SI encontrados em terminais de internet no país:

1) até 3.000.000 (três milhões) de terminais, isento;

2) de 3.000.001 (três milhões e um) até 6.000.000 (seis milhões) de terminais, R$ 24.000.000,00 (vinte e quatro milhões de reais) no ano;

3) de 6.000.001 (seis milhões e um) até 12.000.000 (doze milhões) de terminais, R$ 48.000.000,00 (quarenta e oito milhões de reais) no ano;

4) de 12.000.001 (doze milhões e um) até 24.000.000 (vinte e quatro milhões) de terminais, R$ 72.000.000,00 (setenta e dois milhões de reais) no ano;

5) de 24.000.001 (vinte e quatro milhões e um) até 60.000.000 (sessenta milhões) de terminais, R$ 240.000.000,00 (duzentos e quarenta milhões de reais) no ano;

6) acima de 60.000.001 (sessenta milhões e um) até 100.000.000 (cem milhões) de terminais, R$ 600.000.000,00 (seiscentos milhões de reais) no ano;

7) acima de 100.000.001 (cem milhões e um) de terminais, R$ 1.200.000.000,00 (um bilhão e duzentos milhões de reais) no ano;

8) para os contribuintes que recolherem o tributo referente a mais de um SI será observado o teto anual para o contribuinte de R$ 3.000.000.000,00 (três bilhões de reais) no ano.

Art. 8º – Para estimular o desenvolvimento nacional, fortalecer a soberania do país e, em particular, garantir a aplicabilidade plena da CPSI, deverá o Poder Executivo promover o fortalecimento da Soberania Digital Nacional, através da criação de:

I – instrumentos brasileiros com autoridade própria para atribuição de número de protocolo de internet, entre os quais os números das portas, sistemas IP, sistemas autônomos, servidores-raiz de número de domínio DNS e demais recursos relativos aos protocolos de Internet, asseguradas condições técnicas para integração supervisionada com instrumentos similares de outros países;

II – rede de satélites de última geração, próprios ou em colaboração com outros países e entidades, inclusive em baixa altitude, aptos tanto para retransmissão de sinais de internet em alta velocidade para terminais de internet individualmente, quanto para, simultaneamente, transmitir também os pontos de geolocalização, de forma precisa e em tempo real.

Art. 9º – Revogadas as disposições em contrário, esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Nota: Este projeto foi elaborado sob a coordenação do economista Virgílio Guimarães, diretor da Fundação Perseu Abramo, e do professor Luiz Alberto Melcher de Carvalho e Silva, contando com a colaboração de Hideraldo Costa Alves, de diversos membros dos Núcleos de Acompanhamento de Políticas Públicas (Napps) e de participantes da equipe especial do Centro de Altos Estudos e Projetos Estratégicos da Fundação Perseu Abramo.