Internacional

A miséria tem crescido assustadoramente, a concentração de renda só aumenta, a violência se alastra, armas como símbolo de liberdade, cria as condições para surgir muitos Thomas Crooks, o jovem atirador que por muito pouco não matou um candidato a presidente

Poderíamos começar discutindo o atentado contra Donald Trump pelo universo midiático.
Claro, tal aventura seria arriscada porque a quente, sem o tempero do tempo passado.
A mídia ocidental não faz perguntas, ou pergunta muito pouco.
Reage ao acontecimento, e ponto.
Ele é dado – aconteceu.
Não pergunta de causas.
Sobre as origens do chamado acontecimento, quase zero.
Quase sempre.
Contextualizá-lo, nunca.
Situá-lo no quadro da geopolítica mundial, nem pensar.
Então, houve o atentado.
Trump foi baleado de raspão.
Um candidato a presidente de uma das maiores nações do mundo é baleado.
São expostos, e isso me parece óbvio, falhas gritantes da segurança.
Perguntas restam no ar, sem respostas até agora.
E tais perguntas só aparecem de modo marginal na maior parte da mídia empresarial.
Mais de uma pessoa alertou para a presença do atirador, pronto para matar.
E ele só foi morto depois de atirar, e o tiro pegar de raspão a cabeça do candidato – a orelha mesmo permaneceu intacta, como as imagens demonstraram.
Como é possível um cidadão ocupar um lugar daqueles, a poucos metros do local onde Trump discursava, preparar-se, e disparar?
Como não se cuidou de preservar o local, manter agentes ali?
Ou vigiá-lo, no mínimo?
Por que os snipers, com ele na mira, esperaram o tiro?
Trump alvejado, a segurança, como cabe, joga-o no chão, fazem o escudo humano de modo a outros tiros não o acertarem.
Há de se perguntar, no entanto: como a segurança admite, permite ao candidato levantar-se e oferecer-se novamente como alvo privilegiado?
E ao assim oferecer-se, registre-se, garantir a foto fundamental da campanha, ele de punhos cerrados, a bandeira americana tremulando ao fundo?
Existissem outros atiradores, e ninguém podia garantir a inexistência de outros, e ele poderia estar morto porque um alvo fácil.
A nenhuma autoridade se permite tal ousadia, segundo os protocolos rígidos de segurança, ainda mais se um candidato a presidente.
A BBC chegou a fazer algumas perguntas face ao atentado, dirigidas ao Serviço Secreto dos Estados Unidos, entre as quais por que o telhado onde estava o atirador não foi protegido com antecedência, se os alertas sobre o atirador foram repassados, por que o Serviço Secreto dependeu tanto da polícia local, se foram investidos recursos suficientes para a operação e se Trump foi retirado do palco com a rapidez necessária?
São indagações mais ou menos óbvias.
Nós não vimos essas perguntas pela maior parte da mídia ocidental.
Era o acontecimento.
O tiro na orelha.
O sangue.
A foto.

A rigor, o acontecimento serviu, inclusive pelo modo como foi coberto, como uma luva para a campanha de Donald Trump, especialmente levando-se em conta o empate entre ele e Joe Biden, demonstrado em pesquisa Ipsos/Reuters, de terça-feira, (16): Trump aparece com 43%, Biden, 41%.
Certamente, ainda não era possível medir o impacto do atentado nas eleições, e ele não deve ser pequeno, embora a Agência Reuters sugira não ter havido “grande mudança no sentimento do eleitor” em decorrência do atentado, a me parecer precipitação, pois a pesquisa foi feita no calor da hora, entre 14 e 16 de julho.
O chamado esquentamento dos espíritos como decorrência do atentado, a mobilização do exército trumpista, o acirramento do clima de ódio, propício na sociedade americana, vão dizer dos resultados do atentado com o passar dos dias.
Steve Bannon avisou, e não é de se desconsiderar, estar pronto para mobilizar o “exército” pró-Trump “de dentro ou fora da prisão”. E é evidente: a cobertura midiática, sem ir às causas de tal acontecimento, ajuda em muito a candidatura de Trump.

O fato, como gosta a mídia de dizer: o atentado beneficiou Trump inegavelmente.
Caiu do céu.
Sorte, muita sorte de Trump, e na política a sorte conta, e muito.
Trump, para nos valermos de Maquiavel, parece contar, e muito com a fortuna, com a sorte, com o acaso.

Império das armas, e em decadência
Embora a pauta, definida por mim no início pudesse parecer a análise da cobertura midiática, não pretendo cumpri-la.
Quero, e o farei também de modo aligeirado, tentar ir às causas, pedindo de antemão desculpas por parecer pretensioso porque tudo feito também a quente, com os riscos decorrentes.
A sociedade americana fez das armas um estranho símbolo de liberdade, e a extrema-direita mundial tem caminhado nessa esteira. Vimos e vemos isso no Brasil.
Fundou-se no indivíduo, no individualismo, no egoísmo mais estúpido, aquela sociedade.
E por isso, por tal ideologia, decorrente da mentalidade capitalista, ali elevada ao paroxismo porque há sociedades capitalistas de culturas bem diversas, a arma é expressão de liberdade.
Como se o indivíduo se bastasse.
Como se não precisasse do Estado, como se ele pudesse se defender solitariamente das agressões do mundo, de violências de qualquer ordem.
E com isso, com esse culto às armas, se desenvolveu uma sociedade capaz de quase naturalizar a violência.
Assassinatos em massa se repetem.  Vítimas inocentes, de preferência em escolas.

O exercício da liberdade com armas nas mãos leva o indivíduo frustrado a se considerar livre para tais crimes.
Trata-se de deixar o monstro existente em cada um se manifestar e assim fazer banhos de sangue, e não é metáfora.
Alguém se ilude com o ser humano?
Alguém pode deixar de levar em conta o espírito destrutivo dele?
Tal tendência destrutiva e autodestrutiva só pode ser contida pela civilização, pela emergência de culturas estimuladoras da fraternidade, do espírito coletivo, e também pelo Estado, a ser fortalecido.
Freud há de ser lido com mais atenção por todos. Trata do ser humano com propriedade, analisa-o muito profundamente, sabe do monstro existente nele, a ser domado pela civilização.
Os Estados Unidos sempre caminharam em sentido oposto. Quer deixar o monstro à solta, sem freios civilizatórios.
Sempre a estimular o individualismo, o cada um cuide de si, e por isso a sagração da arma como mecanismo de defesa e, insista-se, sinônimo de liberdade, por paradoxal possa parecer.
Uma sociedade dada a matar presidentes, acostumada com a violência política.
Abraham Lincoln, James Garfield, William Mckinley e John Kennedy foram assassinados.
E houve ainda dois presidentes feridos, em tentativas de assassinato: Ronald Reagan e Theodore Roosevelt.
Uma cultura: a cultura das armas.
Redunda nisso.
Volta-se contra o cidadão comum, contra crianças, contra inocentes, e já disse, isso acontece frequentemente, e contra as maiores autoridades do país, contra presidentes da República.
Pode-se dizer: Trump experimentou do próprio veneno. Ele e os seguidores dele são entusiastas das armas.
Deixo nítido: não sou, não poderia ser, admirador da democracia americana, tão decantada.
Não é modelo para ninguém.
O país é rigorosamente governado pelo chamado Estado Profundo, a envolver o Pentágono e as mega-instituições financeiras.
Esse Estado Profundo é um governo das sombras. Dele só é possível esperar guerra.
Dele, se espera comportamento de uma espécie de política do mundo, e assim age.
Como guarda de esquina do imperialismo, na essência do modo de produção capitalista, exerce vigilância extrema a permitir, ou a pretender, a continuidade dele, e como consequência, uma obscena concentração de riqueza simultaneamente ao crescimento exponencial da miséria mundo afora.
Defender o capitalismo nessa hedionda fase neoliberal.
A chamada democracia americana é inteiramente condicionada por esse Estado.
Não desconheço singularidades, não ignoro a política, não subestimo a análise de cada conjuntura, no entanto.
Como a de hoje.

Uma vitória de Trump será um desastre, e não é necessário muita análise.
E um desastre não só para o povo americano, especialmente para os trabalhadores, para os imigrantes, para os negros.
Será para os povos do mundo, de modo especial para a América Latina.
Não me iludo com Biden, especialmente com a política externa dele, a insuflar a guerra por procuração desenvolvida pela Europa contra a Rússia, e o genocídio contra os palestinos.
Não se subestime as análises a dar conta de um risco sério de uma conflagração mundial a partir da guerra contra a Rússia.
Há sinais preocupantes nesse rumo, e Biden, acossado pelo Estado Profundo, está envolvido até o pescoço nisso.
Ainda assim, prefiro a eleição dele, Biden, por exclusão.

A chamada democracia norte-americana diz combater a violência investindo toda a força dela contra os negros e os pobres.
Enxuga gelo.
Revela mais e mais a violência do Estado.
O país tem a maior população carcerária do mundo como decorrência da estúpida guerra às drogas, guerra a atingir negros e pobres.
Atualmente, o número de aprisionados nos Estados Unidos chega a um milhão e 230 mil pessoas. Entre 2021 e 2022, cresceu o número de presos em 43 dos cinquenta estados americanos.
Uma guerra perdida.

E é, insista-se, uma democracia a estimular permanentemente a produção e venda de armas.
Um país assim, onde a miséria tem crescido assustadoramente, onde a concentração de renda só aumenta, a violência se alastra, onde se faz das armas símbolo de liberdade, um país assim cria as condições para o surgimento de muitos Thomas Crooks, o jovem atirador que por muito pouco não matou um candidato a presidente da República.
E o grave é não haver sinais de mudança cultural, de uma cultura fundada na verdadeira liberdade, na verdadeira democracia.
Cultura capaz de erigir um Estado voltado a políticas públicas de proteção às cidadãs, ao cidadãos, permitir a existência de saúde e educação públicas.
Estado avesso à violência, ao racismo. Tudo pensamento desejoso, sei disso.

O cenário, hoje mais que ontem, é o avesso disso.
E ainda, por cima, como já assinalado, um país envolvido em guerras inúteis: uma delas, já perdida, a contra a Rússia, e por perdida, ameaçando a humanidade; a outra, um genocídio de braços dados com Israel contra a nação palestina, a repetir o holocausto.
O atentado contra Trump apenas põe a nu tal sociedade.
Põe a nu um império em decadência.
E por viver a decadência, mais e mais violento.
Pra fora e pra dentro.
Thomas Croooks é apenas um sintoma disso.

Referências
CARVALHO, Luísa. População carcerária cresce nos EUA e no Brasil. Poder 360, 10/3/2024.
CASTRO, Ruy. Era uma vez na América. Folha de S. Paulo, 18/7/2024.
CHADE, Jamil. Crescimento de Trump liga alerta no governo Lula, que prepara blindagem. UOL, 18/7/2024.
FIORI, José Luís. Que horas são no relógio de guerra da OTAN? Instituto Humanitas Unisinos, 18/7/2024.
LOFGREN, Mike. EUA: por trás da Casa Branca, o Estado profundo. Outras Palavras, 15/1/2019.
PERLIGER, Arie. Editora do site Conversation, Naomi Schalit, entrevista cientista político Arie Perliger, da Universidade de Massachusetts Lowell. Publicada por BBC News Brasil, 15/7/2024.
PESQUISAS pós-atentado: 80% dos eleitores acreditam que EUA estão saindo do controle; Trump e BIDEN têm empate técnico. O Globo, 17/7/2024.
PRIMEIRA pesquisa Ipsos após atentado contra Trump indica empate com Biden dentro da margem de erro. G1, 17/7/2024.
Quatro presidentes americanos mortos e três feridos em atentados – a longa história de violência política nos EUA. BBC News Brasil, 15/7/2024.
SMITH, Sarah. Steve Bannon diz que vai mobilizar ‘exército’ pró-Trump de dentro ou fora da prisão. BBC News Brasil.
WONG, Tessa; FITZGERALD, James. Cinco perguntas que Serviço Secreto terá de responder sobre atentado contra Trump. BBC News Brasil, 15/7/2024.
ZURCHER, Anthony. Como atentado contra Trump pode ser usado na campanha eleitoral dos EUA. BBC News Brasil, 15/7/2024.