Cultura

Para mim não só tuaregues e beduínos eram uma coisa só, palavras que se amalgamavam numa imagem de um povo nômade e heroicamente bravio, como eles e o deserto eram, no fundo, espelhamentos de um mesmo ser.

Minha primeira paixão pelos personagens do deserto nasceu com o filme “Beau Geste”, que assisti no Cine Marabá, numa tarde de domingo, em Porto Alegre, com uns dez anos de idade. O filme conta a história de três irmãos, Beau, Digby e John Geste. São órfãos, adotados por uma simpática Lady, em sua propriedade chamada Brandon Abbas. Lá vivem também Gus, um sobrinho chatíssimo da senhora, e Isobel, uma menina (depois moça) que ela protege, assim como os irmãos Geste. Arruinada pelo marido perdulário, a senhora vê-se na contingência de vender a joia da família, uma safira conhecida pelo nome de Blue Water, que vale trinta mil libras. Para esconder a venda do marido, ela a substitui por uma imitação.

A certa altura o marido exige a pedra, para arranjar mais dinheiro. Beau então rouba a imitação, para poupar a senhora do vexame, e foge para a Legião Estrangeira, na África de ocupação francesa. Os dois outros irmãos, não querendo que Beau (o mais velho, representado por Gary Cooper) se incrimine sozinho, fogem também para a Legião. Seguem-se aventuras extraordinárias, onde juntam-se outros protagonistas, como um sargento de péssimo caráter, que no filme chama-se Markoff e quer se apossar da safira.

O centro das aventuras se dá no meio do deserto, num forte chamado Zinderneuf. Ele é atacado pelos tuaregues, que para mim eram o mesmo que beduínos. Só depois compreendi a diferença: que aqueles são berberes, estes não.

Que aqueles têm por solo natural o Saara, estes o Oriente Médio, embora estejam espalhados também pelo norte africano. Mas para mim, naquela matinê, como chamávamos as longas seções de cinema nas tardes de domingo, vinha tudo de cambulhada contra meus heróis ilhados em Zinderneuf.

Os soldados da Legião são muito poucos, mas conseguem defender o forte graças a um estratagema ao mesmo tempo engenhoso e diabólico de Markoff. Os soldados mortos no tiroteio, ele os recoloca nas seteiras, enquanto os vivos vão atirando de vários pontos, dando a impressão de que a tropa é inesgotável. Depois de muitas peripécias, em que morrem quase todos os protagonistas, o único sobrevivente, John (o caçula, vivido por Ray Milland), volta à casa para esclarecer o caso da falsa joia, limpar o nome de Beau, e realizar seu amor pela linda Isobel, que ficou esperando por ele todo esse tempo, tocando piano sem parar.

Além da intriga, o filme impressionava também pelo espetáculo marcial, com desfiles, prestação de continência à bandeira francesa, o toque da Marselhesa em momentos estratégicos. Lançado em 1939, no albor da Segunda Guerra, o filme faz uma defesa desabrida da França, do Ocidente, e da ocupação francesa da África. Além de Markoff, que é russo, há um outro personagem truculento, o alemão Schwarz. Na voz de um oficial francês, os nativos da África são gente que precisa de proteção política, que é o que a França dispensa através da Legião. Mas nada dessa dose de colonialismo ameaçava meu fascínio de menino, encantado com aquelas cenas aguerridas.

Anos depois li o livro que inspirou o filme, de Percival C. Wren. Na ocasião a leitura também me impressionou (andava pelos catorze anos); mas hoje dela quase não me lembro. Ao contrário, as cenas do filme, sempre as trouxe vívidas na memória, embora fosse revê-lo pela primeira vez quando já ia avançado na casa dos quarenta.

Os personagens principais tomaram lugar definitivo na minha galeria de favoritos, a começar por Beau, provavelmente tanto por sua aura romântica quanto pelo fato de meu pai ter uma vaga semelhança de porte, feição e olhar com Gary Cooper, meu herói melancólico predileto. Mas minha atenção fixou-se também nestes dois outros personagens presentes no filme: o deserto, paisagem prenhe de mistério, e os meus tuaregues beduínos, não menos carregados de encantamento. Eram notáveis as cenas deles avançando pelas dunas, a pé ou a cavalo, com suas mantas envolventes, suas longas e antiquadas carabinas, mas de pontaria certeira.

Uma passagem prendeu-me a atenção de modo inebriante: ferido, o porta-bandeira caía do cavalo e rolava pelo chão, mas na queda cravava o estandarte na areia, deixando-o de pé. Sem interrupção, outro cavaleiro tomava-o em suas mãos, e prosseguia a tresloucada carreira em direção ao forte, de onde vinham os disparos. Aquilo me parecia tão deslumbrante quanto a saudação de Gary Cooper à bandeira francesa, em posição de “apresentar armas”, olhando-a firme como quem está pronto a enfrentar o seu destino.

Para mim não só tuaregues e beduínos eram uma coisa só, palavras que se amalgamavam numa imagem de um povo nômade e heroicamente bravio, como eles e o deserto eram, no fundo, espelhamentos de um mesmo ser. O que seria este ser? Um “algo”, uma faculdade que se perdia já na passagem de criança a adolescente, uma capacidade de criar convincentemente seres extraordinários que povoassem não só a noite, os sonhos e as fantasias, mas também os dias, os quintais e as travessuras pela rua, onde eu podia “ser” tanto um beduíno ou tuaregue, quanto um soldado da Legião Estrangeira, assim como podia ser um “mocinho”, um “bandido” ou mesmo um “índio”. Mas sempre a cavalo, fosse ele um cabo de vassoura ou simplesmente de todo imaginário, tocado e dirigido por rédeas também invisíveis para os infiéis. Minha paixão teve vários outros alimentos. O livro de Karl May, “Através do deserto”, que alinhou dromedários ao lado dos cavalos.

Algumas das aventuras de Tarzan, quando o homem-macaco saía da floresta equatorial e se embrenhava no Saara, às vezes acompanhado por Jad-bal-ja, o leão de ouro, seu mais fiel amigo ao lado de Tantor, o elefante. Mais tarde apossei-me de Lawrence da Arábia, e da cena não menos espetacular de sua chegada, semi-morto de fome e sede, ao Canal de Suez, quando vê um navio passando entre os cumes dos cômoros de areia. Depois vieram os tempos de guerra, as batalhas de tanques e aviões entre aliados e as forças do Eixo, onde eu mal conseguia disfarçar, perante meus sentimentos anti-nazistas, a admiração pelo apelido de von Rommel: Raposa do Deserto. Li também “Terra dos Homens”, de Saint-Exupéry, onde seu avião cai no Saara e ele é socorrido por um tuaregue (ou beduíno?) já no fim da esperança, e nele reconhece seu irmão.

Ainda me veio uma cuidadosa reconstituição que fiz da batalha de Alcácer-Quibir, aquela em que desapareceu El-Rei D. Sebastião, com tamanhas consequências para a nossa espera tão brasileira de um salvador da pátria. Muita outra coisa compareceu: minha vida de professor levou-me à leitura do extraordinário livro de Manoelito de Ornellas, “Gaúchos e beduínos”, quando me descobri culturalmente aparentado com os seres da minha imaginação.

Havia as referências eruditas que aproximavam o nome “maragato”, designador da facção política gaúcha cuja filiação levou dois antigos ascendentes meus à morte, da “Maragateria”, região do vizinho Uruguai e da distante Espanha, esta povoada por berberes cuja origem remontava à estranha cidade de El Maragath, no antigo Egito. Porém o que me fascinou mesmo foi a imagem do final do livro, em que o autor comparava a fixação do gaúcho solitário e indomável na pampa desabrida (assim no feminino) pela lâmina da sua faca, à atitude auto-contemplativa do beduíno diante de sua imagem no pequeno lago do oásis, fazendo-os descendentes de um irresistível mito de Narciso.

Apesar de tudo isso e muito mais, nada superou a intensidade daquelas imagens primevas de “Beau Geste”. Para onde eu ia, elas iam comigo, e me acalentavam: eram um tempo revisitado, sempre que necessitava me lembrar de algo face ao esquecimento contínuo a que somos solicitados. De modo que me voltaram, quando cruzei o deserto pela primeira vez. Quero dizer: cruzei pelo ar, porque face a face eu nunca o vira até então, só mais tarde, e na Tunísia. Mas vi o inesquecível. A mesquita de Casablanca. As serras que D. Sebastião subiu e desceu. O encontro dos dois titãs: o afro e o

atlântico. As rochas em plena areia. As secas marcas d’água no solo, como se fossem ranhuras em folhas. Os oásis, verdes púbis no encontro dos vales. As estradas, que saíam de lugar nenhum para nenhum lugar. E a lonjura, e o voo, horas e horas; se Deus houvesse, era ali que eu acreditaria nele.

Meu destino era Abidjan, no golfo da Guiné. Por lá dei aulas, conheci uma África que eu não imaginava. Cheia de trajes inúmeros e coloridos, cada um de um clã. Aprendi que a Costa do Marfim, onde eu estava, era um espaço de transição, entre as areias do Saara e a floresta na região e mais ao sul. Durante os meses de inverno ao norte, os ventos dominantes traziam as areias do deserto. O Saara está indo para o sul.

No país, há uma presença muçulmana. Vê-se no trato dos corpos. O corpo, para a religião muçulmana, continua sagrado. Na esquina o mendigo é pobre, ou miserável. A roupa pode ser um andrajo. Mas o corpo é limpo. A criança anda só de calção. Mas o rosto nunca é sujo. A cidade carece de saneamento básico. A malária comparece, fruto do deslocamento dos mosquitos provocado pelo desmatamento. Mas não vi sujeirama nas ruas, nem nos arredores. Professor convidado, fui visitar a capital do país, Yamoussoukro, onde há a única basílica no mundo que é maior do que a de São Pedro, no Vaticano. Na mesma cidade visitei o centro de convenções, hoje território da Unesco e da ONU. Visitei um anfiteatro de trezentos lugares decorado todo com madeiras do Brasil: imbuia, araucária, mogno, etcétera. Vi as palmeiras do país, semelhantes aos buritis do sertão: decapitadas, agonizantes, fornecem um vinho afrodisíaco, que se toma com escargôs do tamanho de pequenas salsichas, envoltos em dendê.

Em Yamoussoukro fui ao mercado, visitar a profusão de barracas e de panos, com o chofer da universidade, que era meu guia. Ao descer do carro, eu o vi. Era muito alto, magro, de uma cor avermelhada na pele que só vi depois entre os bororos do Mato Grosso. Mas os bororos estavam bêbados, caindo pelas esquinas. Ele não. Estava ereto em sua pele de cor inusitada, tinha um olhar soberano que dominava a feira e me fixou de imediato. Envolto em véus azuis, de um azul de anil, ele me lembrava de algo entre mares e poemas. O azul se refletia na pele, oferecendo cores cambiantes conforme a posição face ao sol. Os sapatos pontudos, tradicionais na região, eram brancos, imaculados. Da cintura pendia uma longa cimitarra, envolta na bainha de uma cor escura que não consegui definir, tanto a figura me siderava.

Ouvi minha voz perguntar ao chofer:

“É um tuaregue?” - “C’est un touareg? Un bédouin?”

A resposta me fixou, e me devolveu aos tempos de antanho:

“Oui”, me disse o guia, “c’est un nomade du désert. Il vient du Haut Niger”. “Sim, é um nômade do deserto. Ele vem do Alto Níger”.

Acho que o guia também os cruzava, que nem eu. Era meu Beau Geste, meu beduíno, meu tuaregue, que vinha retomar as bandeiras caídas de todos os sonhos e esperanças. Fiquei olhando, bestificado. Foi então que ele fixou os olhos nos meus, e levou a mão ao punho da cimitarra. Fez menção de vir para mim. Lembrei-me do conto de Borges, “El sur”, em que um personagem de Buenos Aires vai para além de seus limites urbanos em busca da vida dos antigos “gaúchos”. Termina envolto num duelo por nada, por um olhar, por ter fixado os olhos em alguém na hora errada ou certa. Se não viveu como um gaúcho, vai morrer como um, e sai para a noite estrelada, disposto a cumprir o seu destino Eu não estava numa noite estrelada. Estava em pleno dia, num mercado perto do Golfo da Guiné, encarando um beduíno, ou tuaregue, envolto em véus azuis, que caminhava para mim com a mão no punho da cimitarra.

“Infringi uma lei do Islã”, pensei. “Ou um costume do deserto”. “Mas mesmo que tenha de morrer defronte este beduíno, ou tuaregue, não me vou. O povo dirá que eu disse: fico.” Ele chegou bem perto, olhos nos olhos. Tirou a cimitarra da bainha, ergueu-a, e mostrou-ma, com as duas mãos. Disse: “Quer comprar?” - “Voulez-vous l’acheter?” Em algum lugar de meu peito ouvi o estalo de um cristal. “É a globalização”, confesso que pensei.

Flávio Aguiar é jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP.