Sociedade

O racismo no Brasil se renova todos os dias, e, quando parece que estamos avançando em alguma questão, somos surpreendidos com uma nova forma de exclusão, seja no controle massivo dos nossos corpos, na apropriação da nossa cultura, no esvaziamento das nossas discussões e lutas ou na visibilidade calculada da nossa imagem

Na cidade do Salvador, no verão de 2019, uma grande marca de cerveja se prepara para gravar um comercial abordando o carnaval de dois estados brasileiros, a fim de divulgar e aumentar o consumo do seu produto. Nos bastidores, modelos negros e brancos bem produzidos esperam, ávidos, pela gravação das cenas. Enfim, elas começam. Inicialmente todos gravam juntos como se estivessem pulando atrás do trio no carnaval de Salvador; na segunda cena, eles pulam freneticamente como se estivessem acompanhando o frevo pernambucano nas ruas de Recife.

O problema acontece quando eles se preparam para gravar a cena como se estivessem bebendo em um restaurante chique. Nesse momento, somente os modelos brancos são convidados a gravar. Questionados pelos modelos negros(as), ali presentes, os responsáveis responderam que eles não foram chamados porque no estado em questão (Pernambuco) não há tantos negros naquela situação, e que não se tratava de racismo.

Esse caso, relatado por um primo que participou da gravação do comercial, nos faz refletir: do que se trata, então, se não for racismo? Esse primo me ligou para pedir orientações sobre como agir nessa situação, e, enquanto o ouvia, percebi que ele se mostrava apreensivo por querer denunciar o racismo sofrido, pois isso, possivelmente, fecharia, para ele, as portas desse mercado tão excludente.

O racismo no Brasil se renova todos os dias, e, quando parece que estamos avançando em alguma questão, somos surpreendidos com uma nova forma de exclusão, seja no controle massivo dos nossos corpos, na apropriação da nossa cultura, no esvaziamento das nossas discussões e lutas ou na visibilidade calculada da nossa imagem. Como é possível observar pela história relatada, depois de anos de luta por representatividade, o mercado percebe que a venda de produtos específicos para a população negra e a sua imagem em propagandas podem ser adequadas. Porém, por mais que estejamos sendo representados, é a cultura imperialista, supremacista branca, capitalista e patriarcal que detém o poder financeiro e midiático. Sendo assim, são eles que ainda escolhem em qual parte do comercial devemos entrar e qual imagem vai nos representar.

A estética negra e a indústria do consumo

Uma das armas utilizadas para a dominação foi a desvalorização da estética negra, em paralelo a outros métodos, como a força, a violência, a domesticação psicológica e dos corpos, a manutenção de estereótipos, com o objetivo de fazer os negros acreditarem que, por serem “inferiores”, deveriam ser dominados pela minoria "culta e desenvolvida" (Ramos, 1995, p.163). Essa minoria manipulava os "inferiores", fazendo-os acreditar que sua cultura/costumes e estética eram primitivos e selvagens e, por isso, deveriam ser substituídos pela superioridade branca e domesticados por ela. Esse conceito proporcionou o esvaziamento e enfraquecimento da cultura e identidade da população negra, que, desprovida de referenciais, buscou incondicionalmente modificar suas características físicas para serem identificadas com o grupo dominante e aceitas por ele. Essa inferioridade é mantida tanto cultural como cientificamente por diversas instituições como a grande mídia gerando o racismo e o preconceito. O sociólogo Guerreiro Ramos defende a existência de uma "perturbação psicológica do brasileiro em sua autoavaliação estética (Ramos, 1995, p. 224), o qual ele denomina de patológica, na medida em que existe uma tentativa de dissimular a sua origem étnico-racial. Tal processo fez com que o negro brasileiro sentisse vergonha de sua cor e de seus fenótipos, gerando a necessidade de lançar mão "de recursos que camuflem as suas origens raciais" para sentir-se aceito na sociedade. (Ramos, 1995, p. 224).

Esse indivíduo que destoa do padrão exigido pela sociedade acaba estigmatizado, carregando uma insegurança em relação às concepções que os "normais" têm dele. Seguindo essa linha de discussão, Bell Hooks (1996) faz uma análise sobre a luta de homens e mulheres contra estereótipos racistas, tendo como objetivo combater a imagem pejorativa criada sobre o negro. A educadora chama a atenção para a representação do corpo da mulher negra, visto como primitivo, natural, selvagem e altamente dotado para o sexo. E, a partir disso, cria-se um conceito cheio de racismo e sexismo sobre a iconografia de representação da mulher negra, vista ora como símbolo sexual, ora como a "mãe preta", tida como serviçal, deficiente, desqualificada, incompetente, inferior e destinada a servir. Assim, verificamos que nenhuma das imagens criadas sobre a mulher negra busca a sua valorização, apenas reforça a visão preconceituosa sobre o uso do corpo feminino. Esse corpo é visto como objeto, selvagem e disponível para o trabalho pesado e braçal.

A autora defende que os mitos de que os não brancos têm mais experiência sexual e estariam mais propícios aos prazeres sexuais incomuns e selvagens são uma criação social e justificam a ideia de que os corpos negros estariam expostos às vontades do outro, servindo-o como um "parque de recreio".

O corpo negro foi marcado pela visão de inferioridade e discriminação dos seus fenótipos desde o período da escravidão, quando, através do corpo, os negros eram escolhidos e comprados. Estigmatizado e visto de forma depreciativa, esse corpo foi pressionado a ponto de se ver obrigado a implementar modificações que atendessem, mas exigências feitas pela sociedade. Modificar significava se afastar desse passado escravista. Isso porque o corpo estigmatizado era visto como fora dos padrões normais, chegando a não ser considerado "humano". Segundo Erving Goffman (1988), a vergonha é um dos atributos que surgem no comportamento de indivíduos que têm seus gestos vistos como incomuns. Isso gera um sentimento de ódio, depreciação, insegurança, além de exigências que isolam cada vez mais esses indivíduos do convívio comum. O autor afirma, ainda, que o estigma gera medo das críticas alheias, o que leva o estigmatizado ao ataque contínuo e lhe impõe a característica de ser violento e insensível. O estigmatizado cria mecanismos de proteção que podem aparecer em gestos como a violência e o isolamento, no medo, na supervalorização e depreciação dos outros, dentre outras maneiras de lutar e/ou se esconder dos estigmas.

Mattos (2007), na sua dissertação de mestrado, fez um estudo com jovens negros (as) soteropolitanos (as) sobre a relação que cada um deles tinha com o seu corpo. Esse corpo é fruto de uma série de modificações e influências (televisivas) que levam muitas vezes à negação/insatisfação, pois os aspectos físicos são um dos fatores utilizados para definir a beleza. A autora defende que os jovens buscam a identificação comum, a imagem aceita na sociedade, o que os leva a um embranquecimento, a partir do momento em que a imagem de suas origens africanas é justamente a que não é aceita e/ou discriminada. A autora explica:

Identificado o perfil de beleza corporal, a cor, a altura e as dimensões do corpo, os estudantes, ao preferirem como atributo de beleza os cabelos lisos, marcam o lugar do branqueamento quando informam, através do cabelo, ser possível uma leitura sobre si mais próxima do outro; neste caso o modelo branco de beleza. [...]

Logo, enveredar pela busca dos cabelos lisos como atributo de beleza, usar roupas e acessórios da moda (massificada), adquirir bens materiais pode significar a inclusão, para esses jovens, que terão associadas a sua imagem o conjunto de atributos socialmente aceitos, aspectos que influenciam na construção de uma estética híbrida, móvel e contemporânea. (Mattos, 2007, p. 99-100, grifo do autor).

Modificações como o alisamento dos cabelos são fruto da pressão social que impõe a normatização do uso a esses corpos manipulados, que "seguem sendo discriminados a partir de uma concepção que retrata o corpo negro como subalterno e inferior" (Mattos, 2007, p.39). Para a autora, os aspectos físicos sempre são alavancados quando se trata de descrever a beleza. Assim, o padrão estético determinado está relacionado às escolhas culturais que estipulam o que é belo na sociedade, excluindo o diferente.

É importante apontar o dano causado no processo de inferiorização do corpo negro, na medida em que a busca por um corpo diferente – próximo ao aceito na sociedade como sendo o "bom" e "certo" – barra a construção de uma identidade pautada na aceitação das suas características físicas como um padrão de beleza estético. Sendo assim, o sujeito é levado à depreciação dos seus fenótipos e à busca do modelo europeu como o padrão ideal de beleza. Nilma Lino Gomes (2006) define isso como um "processo de alienação" pautado na busca constante por mudanças físicas a fim de obter um resultado que se afaste das características naturais do indivíduo, levando a sociedade excludente a aceitá-lo.

Dessa forma, é importante falar sobre como o racismo promoveu um processo de alienação perverso sobre os corpos negros a partir do cabelo crespo, que, no Brasil, é tido como um dos critérios de classificação racial. Sendo assim, a criação de estereótipos pejorativos, a insatisfação e rejeição, principalmente das mulheres, fizeram da manipulação dos cabelos uma das estratégias para camuflar o pertencimento étnico. A tentativa de mudança era reflexo do descontentamento causado por um símbolo de beleza associado ao que era ruim, abrindo espaço para ofensas traumáticas como "cabelo de bombril", "esponja", "piaçava", "pucumã", "cabelo ruim". As mulheres de cabelos crespos cresceram ouvindo expressões como essas, repetidas vezes, na maioria dos ambientes que frequentavam, sejam eles públicos ou privados, e também na mídia, demarcando o lugar do negro como "inferior".

A busca pela aparência padrão levou muitas mulheres a se submeter a torturas com alisamentos e uso de produtos químicos nos cabelos para o embranquecimento. O sucesso desses produtos estava na intensiva propaganda que anunciava que as pessoas com a pele mais branca eram mais bem aceitas na sociedade. Isso levou a um crescente aumento do mercado cosmético especializado em produtos para negros com promessas de modificação dos fenótipos desvalorizados. No Brasil, esse segmento chegou a ter um potencial de faturamento de aproximadamente dois bilhões de dólares por ano.1

Modificar para se aproximar "um pouco do padrão branco" significa se submeter a métodos de modificação que fujam do que é "feio", "ruim", para se enquadrar nas exigências de uma boa aparência. Dessa forma, o sonho de ser branco e ter cabelos lisos percorre o imaginário daqueles que se deparam com um modelo de educação cristã, branca, eurocêntrica e excludente, reforçada por estereótipos que inferiorizam aqueles que fogem desse modelo, desconsiderando as pluralidades existentes no cotidiano. O cabelo foi, e continua sendo, um símbolo que demarca a origem "racial".

Diante desse quadro, a beleza negra começa a tomar espaço e abrir o debate na sociedade brasileira por meio deste fator que gera bastante discussão entre os negros(as): o cabelo. Os movimentos, assim, utilizam-se desse símbolo na busca da reconstrução da identidade negra, por saberem o quanto a desmitificação dessa representação estereotipada é longa e complicada. O cabelo surge como símbolo da consciência e valorização de uma pertença negra. É através dele que se expressa o sentimento de aceitação do corpo negro, sustentada em estilos próprios e ostentado pelos negros (as) através da afirmação da ideia de uma beleza negra e da valorização dos seus fenótipos.

O movimento de fortalecimento de uma identidade negra a partir do cabelo crespo começa a tomar força, principalmente, depois da implementação de políticas públicas que beneficiaram a população negra, como a criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial2 e do sistema de cotas para promover a inserção da população negra nas universidades, a lei 10639/2003.3 Nesse sentido, manifestações como a Marcha do Empoderamento Crespo surgiram com o objetivo de discutir a pauta estética como ato político e ferramenta da luta antirracista, através de um pensamento crítico que questiona as dinâmicas de poder, chamando a atenção para a valorização da estética negra, especialmente através dos cabelos crespos, que passam agora a ser assumidos por diversas mulheres. Muitas promovem a transformação dos seus cabelos nas redes sociais, que popularizaram o acesso de grupos antes invisibilizados na grande mídia aos meios de comunicação. Elas raspam totalmente a cabeça, retirando toda a química dos cabelos alisados, procedimento conhecido como big chop, e compartilham o crescimento ao natural, com o objetivo de incentivar outras mulheres a praticarem o que elas chamam de “libertação”. Esse ritual promove o fortalecimento da identidade negra e a construção da autoestima, essenciais para o empoderamento da mulher.

Após as conquistas dos movimentos e manifestações com o objetivo de promover a igualdade e a luta contra o preconceito e discriminações raciais, verificamos a ampliação de um mercado direcionado aos afrodescendentes, que atraiu muitos investimentos e capital. O mercado precisava lucrar com uma discussão em desenvolvimento: o negro também é consumidor e começa a buscar uma identificação com os produtos comercializados!

Anteriormente, existia a justificativa dos empresários de que negros não consumiam e que, por isso, não havia uma preocupação em representá-los nas mercadorias vendidas. Porém, este argumento não se sustentava. Na verdade, não era viável para os empresários trazerem nos seus produtos a imagem de pessoas negras, especialmente em um momento em que a política de embranquecimento tinha como objetivo esconder a existência desse grupo, causando o seu apagamento. O racismo era mascarado pelas teorias de miscigenação e democracia racial. E a população branca, na sua maioria, se sentia, ou ainda se sente, incomodada com as reivindicações desse grupo por igualdade racial e combate ao racismo. Até hoje, essas discussões são consideradas exageradas e infundadas.

A demanda por representatividade começa a aparecer, forçando o mercado a investir em produtos e propagandas com os quais os negros se identificassem. Segundo o desabafo das atrizes Camila Pitanga e Taís Araújo, registrado em entrevista com Leyde Moraes, o racismo na publicidade era explícito há alguns anos atrás, e os empresários não contratavam atrizes e atores negros (as):

Em todos os aspectos, quero sempre ser a mais otimista possível, mas o preconceito existe. Aqui no Brasil é camuflado. Já em nossa publicidade é estampado. Basta analisar os comerciais. Eu sou a única negra que faço publicidade de todos os produtos. (Moraes, 1996, p.13).

Teve um caso recente de modelos que não puderam desfilar em Americana, interior de São Paulo, porque eram negras. Assume, cara, o Brasil é racista sim! Tanto é que tem lei contra o racismo, dispara. (Moraes, 1996, p.58).

O mundo da moda e da publicidade sempre foram um ambiente preconceituoso e racista. Dificilmente, modelos negros (as) eram contratados para trabalhar e, quando isso acontecia, os escolhidos eram classificados como donos de uma beleza exótica ou porque possuíam características descritas como "finas", como a modelo internacional Naomi Campbell, que nas décadas de 1980 e 1990 era a única mulher negra nos desfiles e propagandas de diversas marcas. No Brasil, era possível identificar o padrão de beleza branco europeu dominante nos comerciais e desfiles, contrastando com os 56,10% da população que se autodeclara negra4. Esse padrão de beleza ideal era considerado belo em contraste com o padrão da população negra, que foi estereotipado como estratégia de nos enfraquecer e silenciar.

No final da década de 1990, depois da pressão gerada pelos movimentos políticos, culturais e sociais5, observamos uma mudança de comportamento na mídia, no mercado e na sociedade em relação à imagem do negro na publicidade. Essa mudança fica mais clara em entrevistas veiculadas no jornal Folha de S. Paulo, como a realizada com a modelo Cíntia Regina, que afirmava: "O negro agora virou moda. Antes, as agências convencionais nos mandavam alisar o cabelo" (Soares, 1995, p.6).

O crescimento do mercado, tendo como foco "o negro", gerou a comercialização de produtos diversos: bonecas, produtos de beleza, desodorantes, xampus, dentre outros. De repente, o mercado estava cheio de produtos, mas não realizava a discussão sobre a reconstrução e o fortalecimento da cultura afro-brasileira e valorização da autoestima. Segundo Hooks (1992), esse comportamento está associado à mercantilização da imagem estereotipada do negro, tendo como objetivo o lucro. Nesse sentido, ocorre a apropriação de uma imagem carregada de sentidos pejorativos, que agrada ao mercado consumidor e é fortalecida por pacotes de uma imagem racista e preconceituosa, que retrata o negro como lascivo, sensual e selvagem. A comercialização da diferença promove, assim, o paradigma de consumo, eliminando a diferença do outro por um canibalismo consumista, que proporciona a valorização das culturas e corpos marginalizados pelo mercado, encobrindo o aumento nas vendas com discursos da alteridade e diferença. A cultura consumista, portanto, indica caminhos para a aproximação do outro com o objetivo de devorar o primitivo.

No entanto, Hooks (2019) defende que precisamos prestar atenção, pois a resistência está sendo transformada em consumo e as mensagens políticas da nossa arte vêm sendo ignoradas. Ao utilizar-se de estratégias para esvaziar as nossas discussões, o mercado vem demonstrando o quanto o racismo é ardiloso. É importante ficarmos atentos à manipulação mercadológica, pois as discussões sobre representatividade ainda não atingiram o ponto necessário para causarmos mudanças significativas como implementar, de fato, políticas de promoção da igualdade racial.

Discutindo sobre a representatividade e venda da imagem dos negros (as) a partir do cabelo, Hooks diz:

Acompanhando o sucesso crescente da drag queen RuPaul – que criou uma imagem de beleza da "mulher" negra, reforçando uma estética de cabelos longos loiros lisos, uma aparência que sugere "se não posso ser uma mulher branca, posso pelos menos parecer uma cópia da coisa real" –, artistas, atletas, estrelas de cinema e cantoras negras todas começaram a ficar loiras. Isso abriu caminho para Beyoncé, uma jovem cantora negra, alcançar estrelato e riqueza sem precedentes. Na capa da revista Time como uma das cem pessoas mais influentes do mundo, ela usa seus cabelos loiros soltos, longos e lisos. (Hooks, 2019, p.27).

Segundo a autora, o padrão permanece, mas agora temos representações estereotipadas que mantêm nossos corpos controlados. Concordamos com Hooks, especialmente quando pensamos a representação do cabelo. Embora a cantora Beyoncé seja uma das figuras negras de maior destaque entre a juventude, ela nunca assumiu o seu cabelo natural, sempre fazendo uso de lancefront6, claro que é preciso considerar a sua origem baseada na cultura negra norte-americana, ponto a ser debatido em outro momento.

Conclusão

Nesse processo, marcado por avanços e conflitos, ainda hoje, mesmo depois do fortalecimento da identidade negra, principalmente a partir da afirmação positiva dos cabelos crespos e do aumento da representatividade na mídia e no mercado, a discussão sobre o combate ao racismo e igualdade racial ainda se faz necessária. A sensação é que houve um aumento de práticas racistas e que aqueles que as realizam têm permissão para agir.

Quando vemos a jornalista Maíra Azevedo, popularmente conhecida como Tia Má, mulher negra empoderada, falar abertamente sobre as dificuldades com o seu cabelo, entendemos que essa discussão continua sendo necessária. Percebemos que a ferida criada pelas mazelas racistas, que nos ensinaram que não somos belos, ainda não foi totalmente curada.

Muitas de nós, até mesmo aquelas que já tem uma consciência racial, de como o racismo faz a gente se odiar, segue tendo dificuldades de assumir naturalmente.

Muitas de nós, mulheres pretas, nos submetemos a procedimentos estéticos para alisar os nossos cabelos, para colocar trança, para colocar megahair, alongamento e com isso, temos alopecia de tração, perdemos alguns de nossos fios, tudo porque a gente continua tendo muita dificuldade de enxergar beleza na textura dos nossos fios crespos.7

Esse depoimento deixa explícito como os discursos que nos silenciaram e nos ensinaram a nos odiar ainda são comuns e como é difícil romper essa barreira criada internamente, que nos colocou à margem da sociedade. Por isso, a representatividade é tão importante. Precisamos estar presentes nos diversos espaços sociais, especialmente nos espaços de poder, pois, assim, poderemos mudar verdadeiramente a maneira como somos representados e conquistar a igualdade racial.

Apesar do aumento das discussões sobre o racismo no Brasil e da implementação de algumas políticas públicas com o objetivo de acabar com esse problema, ainda temos um longo caminho a percorrer, pois o debate ainda não atingiu o ponto necessário para causar mudanças estruturais na sociedade. Ainda temos estruturas de poder consolidadas que nos marginalizam, excluem, silenciam e matam. Enquanto as mudanças que precisamos não acontecem, faremos barulho, empoderaremos nossos grupos e seguiremos questionando o modelo supremacista branco, capitalista e patriarcal que continua tentando nos enquadrar e nos silenciar nos espaços de poder, que eles ainda lideram.

Referências

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MATTOS, Ivanilde Guedes de. A negação do corpo negro: representações sobre o corpo no ensino de educação física. 2007. 148p.Dissertação (Mestrado em Educação) –Universidade do Estado da Bahia, Salvador.

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WALKER, Alice. “Cabelo Oprimido é teto para o cérebro”. Vivendo pela palavra. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. p.1- 4.

1 SANTOS, G. E. R. Cabelo Pixaim e a bilionária indústria de produtos afroétnicos. Disponível em <http://www.pretaria.com.br/?p=13>. Acesso em 15 Mai. 2008.

2 Atual Ministério da Igualdade Racial.

3 Políticas criadas a partir do Governo Lula.

4 Segundo dados de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

5 É importante registrar que, em 1998, o deputado federal Paulo Paim apresentou o Projeto de Lei nº 4.370/1998, que dispunha sobre a representação racial e étnica nos filmes e peças publicitárias veiculadas pelas emissoras de televisão. O projeto foi arquivado, somente sendo aprovado no ano de 2002.

6 São perucas que possuem uma base de renda na frente, na parte que cobre o começo da linha do cabelo. Essa renda é fina e se parece com o couro cabeludo, fazendo com que os fios pareçam naturais.

7 Disponível em: https://www.instagram.com/tv/B-dXhKFD6RS/?igshid=b4q1g6xljfbk. Acesso em: 20 de maio de 2020.

Cassi Ladi Reis Coutinho é doutora em História Social pela Universidade de Brasília, Mestre em História Regional e Local pela Universidade do Estado da Bahia. Especialista em Arte Educação: Cultura Brasileira e Linguagens Artísticas Contemporâneas – Escolas de Belas Artes – Universidade Federal da Bahia, cursando a Especialização em Direitos Humanos e Contemporaneidade – Faculdade de Direito – Universidade Federal da Bahia. Coordenadora de Culturas Identitárias na Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.