O jornalismo, pela natureza da atividade, cria várias interfaces. Na minha já longa trajetória, alinho duas a me interessar mais de perto: história e literatura. Sobre a primeira, não vou debruçar-me aqui. Se o fizesse, fugiria de minhas pretensões para esse texto, não obstante me sinta tentado, dada a riqueza de tal relação. Resisto. Meu objeto aqui é jornalismo e literatura. Arranhei o tema no discurso de posse da Academia de Letras da Bahia, em 2021. Volto a ele, agora, provocado pela participação no III Simpósio Baiano de Jornalismo e Literatura, sob o tema “Verdade e Liberdade de Expressão”, promovido pela Associação Bahiana de Imprensa, Academia de Letras da Bahia e Gabinete Português de Leitura.
Lá, na posse, eu tentava responder não à pergunta de como nasce o jornalista, mas como se chegava ao escritor. Afinal, os meus colegas de Academia, os meus agora confrades e confreiras, haviam tomado a temerária decisão de assim me considerar: um escritor. E a ocupar a cadeira número um, antes do notável mestre, historiador e escritor, Luís Henrique Dias Tavares, de quem fui amigo e admirador. Então, a pergunta: como eu chegara a ser escritor, dando de barato seja verdadeira a condição. Repito aqui a tentativa de enfrentar, não sei se resolver, o enigma. Quase meados da década de 1970, minha arrancada como jornalista, na Tribuna da Bahia.
Outubro de 1974, e eu acabara de sair da prisão, onde passara quase quatro anos, preso em novembro de 1970, engajado na luta contra a ditadura militar. Nesse início, o privilégio de contar com alguns mestres, e homenageio quatro deles. Na Tribuna da Bahia, José Barreto de Jesus e Gustavo Falcón. No Jornal da Bahia, Césio Oliveira. No Estadão, Carlos Navarro Filho. Cada um a seu modo, me deu régua e compasso. A eles, reverência, sempre. A gente sabe a quem chama de mestre.
E como se chega ao escritor?
É uma construção.
Inconsciente.
Ou ao menos raramente tal chegada é percebida.
Entrevistei um ex-colega de prisão, Olderico Campos Barreto, em 1978.
Barreto, um dos sobreviventes do cerco ao capitão Carlos Lamarca, em 1971.
Na ofensiva da ditadura, no primeiro momento, agosto, cerco ao povoado do Buriti Cristalino, em Brotas de Macaúbas, morrem assassinados Otoniel Campos Barreto, irmão dele, e o professor Santa Bárbara.
Lamarca e José Campos Barreto, também irmão de Barreto, fogem pelos sertões.
São executados à luz do dia, na localidade de Pintada, município de Ipupiara, proximidades de Brotas de Macaúbas.
Antes, 20 de agosto, repressão já havia matado Iara Iavelberg, em Salvador, companheira, amor de Lamarca.
Na ofensiva, a completar o massacre, morrem ainda Nilda Alves Cunha e a mãe dela, Esmeraldina Alves Cunha.
Não estou contando o volume de prisões no decorrer de toda a operação.
A entrevista, muita rica.
História.
A quente.
Com ela à mão, procuro Mariluce Moura.
Talentosa, respeitada jornalista, e viúva de Gildo Macedo Lacerda, assassinado pela ditadura e a quem ela nunca pôde sepultar.
Eu pensava em publicar a entrevista em algum veículo de comunicação.
Mariluce Moura leu atentamente a entrevista e me desaconselhou.
Direta, propôs: faça um livro sobre Lamarca.
Num primeiro momento, levo um susto.
No segundo, mãos à obra: segui o conselho.
E surgiu “Lamarca, o Capitão da Guerrilha”, escrito por mim e Oldack Miranda, livro a seguir viagem até os dias atuais, com direito a pelo menos dois filmes.
De lá para cá, mais de vinte livros.
Três livros sobre a imprensa brasileira e o restante, biografias ou relatos sobre o período da ditadura no Brasil e na Bahia de modo especial.
Essa produção, depois de catapultado à Academia de Letras da Bahia por generosidade dos intelectuais a ela pertencentes, impunha-me responder sobre a minha condição de escritor e, também, sobre o parentesco entre tal produção, pautada numa herança jornalística ou, se quiserem, em técnicas jornalísticas, e a literatura.
Tais questões me inquietavam. E me dei a pensar, a refletir.
Primeiro, pensei sobre a minha já longeva trajetória jornalística e sobre minha relação com o tratamento dado aos fatos pelo mundo noticioso ou pelo conjunto da atividade midiática.
Há, como tese, uma supremacia absoluta dos fatos.
E digo como tese porque tal supremacia é falsa, constitui-se numa ilusão.
O fato exerce uma espécie de ditadura sobre, usemos a expressão, a narrativa jornalística. Por mais sejam os fatos a matéria-prima essencial do jornalismo, eles jamais deixam de estar submetidos a uma interpretação, sempre.
Não bastasse isso, os fatos são eleitos, escolhidos.
Uns, vem à cena, ocupam a ribalta.
Outros, desconsiderados, liminarmente.
E os escolhidos obedecem a uma interpretação, atravessados pela ideologia, pelas escolhas políticas, culturais, filosóficas, se o quisermos.
E o que chamei interpretação não pode ser encarada apenas como escolha individual, como se cada jornalista interpretasse o fato como bem o desejasse. Não.
Nasce e se desenvolve, tal interpretação, a partir de cadeias de poder, decorrente do rumo editorial de cada veículo. Os jornalistas são levados, consciente ou inconscientemente, a seguir tal rumo.
Não se ignore, além disso, as determinações sociais mais amplas. Os jornalistas incorporam valores sociais advindos de instituições como a escola, a família, as religiões, o Estado – da ideologia dominante, no frigir dos ovos.
Com isso não se pretende eliminar os momentos de iluminação de um ou outro repórter, a escapar do círculo de giz do pensamento hegemônico, socialmente constituído.
Os fatos, dessa maneira, são levados ao distinto público embalados em uma ideologia, sempre de acordo com uma específica interpretação.
Tudo isso para dizer: enquanto sobrevivia da atividade cotidiana do jornalismo, onde aprendi muito, à qual sou grato, corria para as margens da estrada, e só essa escapada para as margens permitiu-me produzir uma obra caracterizada, em muitos aspectos, como simbiose entre jornalismo e literatura.
Não, não quero ser pretensioso, embora possa parecer.
Ressalto, e com isso de alguma forma me explico melhor: muitos dos meus colegas de profissão fizeram e fazem isso: literatura. Valendo-se do jornalismo.
Penso na minha produção, e tento chegar ao rés do chão, a como ela se dá. Nas biografias, nos inúmeros textos em torno da repressão no Brasil, presentes nos meus livros, construo personagens, a propiciar encontro entre a literatura e o jornalismo.
Vou atrás dos fatos, incontornáveis, embora nunca congelados, e passo, a partir deles, a esculpir meus personagens. Estes, construídos por mim, a partir dos meus referenciais, minha visão de mundo. Isso não quer dizer que fujam à realidade, e esta é sempre diversa, múltipla, colorida.
Os diálogos vão surgindo, sendo construídos. Nem sempre como ocorreram. Impossível muitas vezes recuperá-los tal e qual aconteceram, mas correspondentes ao acontecido, não obstante. Tudo checado, perguntas e mais perguntas, pesquisa e mais pesquisa.
Como qualquer romancista, no decorrer dos livros, durmo e acordo pensando em meus personagens. Ontem, quando falava de uma série sobre Theodomiro Romeiro dos Santos, dizia a uma cineasta amiga: ainda não consegui tirá-lo de Paris. E acho que ainda vai demorar um pouco.
Os personagens ganham vida, e vão de alguma forma conduzindo a história, se me entendem.
Sonho com eles. Sou atormentado por eles. Tomado por eles. E o texto deve abrigá-los, reconhecê-los.
Choram, se emocionam, sofrem, são vítimas de violências, e eu devo traduzir isso nas humanidades deles, e fazê-lo a partir dos fatos, meu chão.
Mas, o texto, e ainda bem, escapa ao chão.
Voa.
Sem perder o chão de vista.
Ninguém imagine ser esse um processo fácil.
Ainda vivo um processo relativamente doloroso de libertação dos grilhões do fato, tal e qual o jornalismo me educou.
Reflito sobre tal educação, e acho curioso: os fatos, se não nos acautelarmos transformam-se em grilhões a oprimirem o texto, a inibir a criatividade.
O jornalismo me deu a base.
A insistência na checagem dos acontecimentos, dos fatos.
Não partir de dados falsos.
A partir dessa base, então, voar, criar, admitir a subjetividade dos personagens, desenvolvê-la.
Não como romance, não como ficção.
Mas a partir da vida deles.
Envolver o leitor na teia da existência humana.
Tão rica, tão diversa, exuberante.
Estrutura e superestrutura, a antiga metáfora a me orientar.
Vou e volto: dou de barato, só para argumentar, possam ter razões os argumentos contrários a qualquer parentesco rigoroso entre jornalismo e literatura.
Ter razões não significa concordar com eles, mas dizer de sua coerência interna: o jornalismo parte dos fatos, está ancorado neles.
Uma visão dogmática de tal formulação, no entanto, empobrece o texto, torna-o insípido, inodoro e incolor.
A literatura, a grande literatura, parte da vida.
Se quisermos, dos fatos da vida.
E se juntamos as coisas, jornalismo e literatura têm óbvio parentesco.
Volto: o Carlos Lamarca construído por nós, por mim e por Oldack Miranda não é o mesmo desenvolvido por outros autores.
Carlos Marighella é um olhado por mim.
Outro, por Mário Magalhães.
Ambos com óbvios pontos de encontro.
Mas, diferentes.
Por textos e ângulos escolhidos, sem desconsiderar a materialidade dos fatos.
Por textos diversos.
Criatividade diversa.
E nem estou estabelecendo comparações.
O livro de Mário Magalhães sobre Marighella é insuperável.
Talvez, só para avançar um pouco, atrever-me, tenha me aproximado um pouco mais da literatura, em “O cão morde a noite”, ou em “Zanetti, o guardião do óleo da lamparina”.
Mas há quem diga tenha também chegado perto da literatura com “As asas invisíveis do padre Renzo”.
Ou com “A última clandestina em Paris”.
Não sei.
É ousadia temerária avaliar a própria produção.
Talvez tenha me sentido tentado a esse aligeirado voo em torno da relação entre jornalismo e literatura por conta das lições não apenas dos primeiros mestres do jornalismo, mas, sobretudo, nesse caso, de mestres da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, onde fiz graduação, mestrado e doutorado.
Destaco um, orientador tanto de mestrado quanto de doutorado: Albino Canelas Rubim, exemplo de professor, e intelectual público. A ele serei sempre grato, e ao destacá-lo, honro os demais.
Peço desculpas pela ousadia. Os outros sabem muito mais de nós. Quando nos avaliamos, em geral fracassamos.
Por isso, me contentaria se considerado apenas pelo que verdadeiramente sou: jornalista. Simples assim. Dei de escrever sobre as dores do nosso país, da ditadura e horrores, da escravidão, das heranças marcadas pela brutal desigualdade, racismo, tudo a nos afrontar ainda, apesar da tentativa recente do governo Lula, depois do tsunami do governo anterior, no sentido de diminuir tanta miséria, longa caminhada ainda pela frente.
Se consegui, no exercício do jornalismo, estabelecer algum parentesco com a literatura, fico feliz.
Se não o fiz, fica o jornalismo.
Sem a ditadura dos fatos.
E um jornalismo a nunca esconder o lado: o dos oprimidos, das classes dominadas.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros