No último mês de agosto, participei de um debate sobre a mais recente pesquisa coordenada pelo Centro de Análise da Sociedade Brasileira (CASB). O estudo, oportunamente intitulado no plural, “As classes trabalhadoras”, amplia o entendimento sobre o mundo do trabalho brasileiro em um contexto de intensas transformações. Trata-se de uma pesquisa alinhada com um projeto político que busca fortalecer a democracia e as condições de luta por maior justiça social. Nas próximas linhas, apresento uma leitura do relatório a partir de minha própria experiência como pesquisadora dedicada ao tema dos impactos sociais de novas tecnologias, em especial sobre os mundos do trabalho e da política.
Neste sentido, um primeiro aspecto positivo do estudo diz respeito ao seu desenho. A dec,isão de investir em métodos qualitativos para, só então, fazer uma avaliação do mundo do trabalho em termos quantitativos, reduziu o risco de direcionar aos participantes perguntas desatualizadas por um contexto de rápidas transformações. Além disso, a análise dos dados estabeleceu um diálogo com pesquisas já existentes, nos ajudando a entender como o campo do trabalho brasileiro tem se movido ao longo do tempo.
Ainda sobre as virtudes da pesquisa, é fundamental destacar a importância da inclusão de segmentos do trabalho nos quais a mão de obra feminina é majoritária. Dado que tanto estudos acadêmicos quanto lideranças políticas – inclusive as de esquerda – frequentemente negligenciam o peso econômico e social do trabalho realizado por mulheres, ouvir profissionais de beleza, cuidado e limpeza, além de motoristas e entregadores, contribui significativamente para diagnósticos mais precisos. Uma vez que pesquisas subsidiam a formulação de políticas públicas voltadas a essas camadas da população, esta tem o potencial de contribuir para combater as persistentes desigualdades de gênero do mundo do trabalho.
Outro importante aporte da pesquisa divulgada diz respeito ao modo como ela ilumina as ambiguidades inerentes ao universo estudado. A leitura do relatório indica, por exemplo, que trabalhadoras e trabalhadores podem demandar direitos e proteções sociais ao passo que valorizam horários flexíveis e a ausência da figura do patrão. Nesta mesma direção, os dados sugerem ainda que as novas classes trabalhadoras reivindicam instâncias de participação coletiva ao mesmo tempo que apontam limites das formas de organização tradicionais.
Diante destas classes trabalhadoras tão novas quanto heterogêneas, a pergunta fundamental que se impõe é: afinal, a esquerda tem uma agenda capaz de garantir vida digna a trabalhadoras e trabalhadores brasileiros no século XXI?
Há quem defenda as propostas já existentes e atribua a problemas de comunicação o fato de vastas parcelas da população se alinharem a projetos de direita. Proponho uma alternativa a essa ideia. Do meu ponto de vista, a agenda da esquerda não tem sido capaz de acompanhar o processo de reconfiguração da vida social. É preciso coragem para construir uma agenda mais compatível com um mundo que atravessa profundas transformações e isso só é possível com um exercício de escuta radical que nos permita acessar os desafios, aspirações e visões de mundo de quem depende do trabalho para sobreviver.
Depois de mais de dez anos fazendo pesquisa com trabalhadoras e trabalhadores que atuam no mercado informal, aprendi, por exemplo que, para as mulheres, relações de trabalho assalariadas são frequentemente incompatíveis com as atividades não remuneradas de cuidado que, quase sempre, recaem sobre elas. Isso me levou a questionar as possibilidades de o Estado apoiar, por exemplo, uma manicure que atende clientes em domicílio, adaptando seus horários para levar e buscar seus filhos na creche. Ou ainda, uma mulher que produz salgados para fora enquanto supervisiona as tarefas escolares da filha. Políticas de amparo à maternidade são fundamentais para estas trabalhadoras, mas não bastam. Flexibilidade de horários ou a possibilidade de exercer as atividades laborais no mesmo espaço que os filhos podem ser necessidades que desafiam a centralidade do modelo de emprego assalariado na agenda política de esquerda.
Aprendi também como plataformas digitais – tanto aquelas que intermedeiam diretamente as atividades laborais, quanto as redes sociais – alteraram profundamente o cotidiano do trabalho no Brasil. Dentre as inúmeras consequências deste processo, as novas tecnologias foram capazes de diminuir barreiras de entrada ao mercado de trabalho, dispensando processos seletivos antes custosos e difíceis. Elas ainda tornaram acessíveis o aprendizado de profissões, levando parcelas importantes da população periférica a encontrar novas fontes de renda, por exemplo, a partir de vídeos assistidos no YouTube. Reconhecer as vantagens que estas tecnologias apresentaram aos trabalhadores não significa, em absoluto, negar que elas também produziram consequências drásticas. Mas se não cabe, neste texto sucinto, um balanço dos impactos da nova infraestrutura tecnológica sobre a vida laboral de segmentos extensos da população, penso que o conhecimento sobre as novas classes trabalhadoras acumulado até aqui nos obriga a formular alternativas ao trabalho formal (marcado, por exemplo, por remuneração e jornadas de trabalho fixas) como principal instrumento garantidor de direitos fundamentais.
Não se trata de uma tarefa simples, já que ela desafia certezas que estão no cerne da identidade política de esquerda. Mas a tarefa de buscar saídas condizentes com os desafios do século XXI se torna possível conforme nos reconectamos com as bases sociais populares. E isto requer uma escuta radical desarmada dos quadros teóricos que informam nossas próprias visões de mundo para enxergarmos os significados do trabalho pelas lentes das populações periféricas.
A pesquisa coordenada pelo CASB e o relatório que ela produziu são contribuições valiosas neste sentido. Além de ampliar nosso conhecimento sobre novas classes trabalhadoras brasileiras, eles revelam um amplo leque de questões que merecem ser examinadas com cuidado. O tema da saúde mental de trabalhadoras e trabalhadores é uma amostra disso. Outro ponto fundamental a ser desdobrado em pesquisas futuras diz respeito aos aspectos simbólicos ligados ao trabalho.
Para encerrar (o texto, mas certamente não a discussão) destaco que, por tudo que apreendemos até aqui, uma parcela muito ampla da classe trabalhadora hoje está em disputa. Pode parecer difícil apostar na possibilidade de trazer para o campo democrático segmentos da população que têm apoiado consistentemente projetos autoritários, mas cabe lembrar que mesmo os setores mais alinhados com forças políticas da extrema-direita operaram uma guinada ideológica em apenas poucos anos. Minha tese é que estes novíssimos movimentos se alimentam de uma certa apatia da esquerda diante de transformações.
Por mais difícil que seja, é preciso admitir que o avanço da ultradireita no Brasil e em outras partes do mundo se deve, em boa parte, a sua capacidade de dialogar com os anseios populares. Faz isso apresentando agendas audaciosas – ainda que frequentemente delirantes – enquanto a esquerda insiste em travar lutas políticas como se pudesse reconstituir as condições sociais do século anterior. Frear e reverter este movimento só será possível na medida em que formos capazes de propor saídas tão ou mais audazes. E, para que isso, aconteça é preciso caprichar nos diagnósticos, fazendo da escuta a nossa pedra angular.