Política

Dois acontecimentos distintos colocaram em cena, por trilhas distantes, dilemas atuais da democracia, em dimensões diversas. O primeiro deles parece reedição de acontecimentos já de longa duração. Trata-se do dilema da Venezuela em seus tempos de socialismo do século XXI, como eles se definem. O outro acontecimento nasceu como episódio descolado de uma trajetória de longo prazo. Trata-se da recente crise oriunda dos comportamentos em torno do ex-ministro dos Direitos Humanos.

Dois acontecimentos distintos colocaram em cena, por trilhas distantes, dilemas atuais da democracia, em dimensões diversas. Não se pretende aqui adentrar em detalhes tais acontecimentos. Apenas extrair deles conexões e problemas possíveis para refletir acerca das democracias hoje. em especial, para imaginar a transformação social tecida em termos democráticos.

Os dois acontecimentos explodiram na mídia como espetáculos conformados por ela. Cabe garimpar os interesses mobilizados para a construção deles. Espetáculos midiáticos são produtos de interesses explícitos ou, mais comumente, escusos. Eles explicam, em parte, a grandeza adquirida pelos dois acontecimentos.

O primeiro deles parece reedição de acontecimentos já de longa duração. Trata-se dos dilemas da Venezuela em seus tempos de socialismo do século XXI, como eles se definem. Na trajetória de cauda longa, o instante enfocado diz respeito à recente eleição presidencial. Como já costume tornada crise.

Foco central: validade ou não da eleição. A opção é desviar dessa trilha polêmica. A perspectiva aqui é, antes de tudo, perguntar as relações entre as regras do jogo, procedimento vital da democracia, e outras componentes fundamentais da democracia, inscritos em seus contextos históricos. A questão é saber se as regras do jogo democráticas bastam para caracterizar um regime democrático como tal. Se for assim, elas bastam como medida da democracia em qualquer circunstância espaço-temporal. Se não for, necessário se faz pensar que outros fatores aparecem com imprescindíveis para dizer uma situação democrática.

Não parece sensato imaginar que as regras do jogo possam ser exercidas em qualquer situação societária. Ou seja, determinadas circunstâncias sociais dificultam supor que as regras do jogo possam se realizar independente delas. Períodos de guerra, de embargos, de crises de variados tipos, além de outros fatores, interditam que as regras do jogo funcionem sempre. Em suma, os procedimentos formais não existem autonomizados das situações concretas vivenciadas. Assim, as regras não podem ser consideradas como autônomas e mesmo possíveis sem diálogos com os seus contextos sociais. Medir a democracia apenas pela prevalência das regras do jogo torna-se um equívoco. O dilema substantivo é compatibilizar os procedimentos típicos da democracia com circunstâncias sociais que facilitem sua realização, por meio da existência de condições que acolham bem as regras do jogo democráticas. Analisar a situação da Venezuela sem perceber a complexidade da conjuntura vivenciada pelo país não passa de simplificação groseira, que fortes odores de instrumentalização política, no pior sentido da palavra. Tal opção pode esconder autoritarismos e/ou imposições imperiais nos dois lados da polarização.

O outro acontecimento nasceu como episódio descolado de uma trajetória de longo prazo. Trata-se da recente crise oriunda dos comportamentos em torno do ex-ministro dos Direitos Humanos. Não interessa aqui esclarecer o acontecimento na busca de explicações e tomadas de partido. Interessa apontar o desgaste monumental que o episódio acarreta para o governo, para os direitos humanos, para os movimentos identitários, enfim para as lutas democráticas e emancipatórias. Este é o principal a ser dito sobre o ocorrido.

O acontecimento colocou na arena de confronto ardente movimentos e culturais identitárias, construídos historicamente com muitas lutas para se constituírem e fazer adentrar tais temas na agenda política. O desgaste para eles é imenso. O episódio expõe em toda sua evidência as potencialidades e, em especial, as limitações de tais movimentos e culturais. Sem interseccionalidade, com sua percepção de sobreposição de opressões, como reivindicam as feministas, os movimentos e culturais restringem seu caráter emancipatório ao seu próprio universo temático, ficando incapazes de conceber o todo da exploração e opressão existentes na sociedade capitalista. Sem assumir a complexidade e dialogar com outros universos político-culturais de origem em outros movimentos e culturas identitárias, eles no limite se tornam guetos, movimentos e culturas unilaterais.

Mais que isso, os diálogos não podem se restringir às opressões que sofrem os movimentos e culturas identitárias, por mais relevantes que sejam e são. Os diálogos deve ser mais amplos e alcançar, para além deles, os com movimentos e culturais conformadas pelas desigualdades socioeconômicas e pelas identidades, mais antigas na cena pública, sejam elas de classes, sejam elas nacionais. Subestimar as complexas conexões existentes entre as opressões, explorações e desigualdades, ainda que elas, sem dúvida, possuam suas singularidades e feridas especificas, deixa de tecer a aliança necessária para o enfrentamento radical das opressões, explorações e desigualdades e construir uma sociedade radicalmente democrática.

Em uma época histórica invadida pelos movimentos e culturas identitárias, que de certo modo hegemonizam o contemporâneo, pelo mesmo em seus segmentos democráticos, progressistas e de esquerda, ainda que combatidas por vigorosas reações conservadoras e neofascistas, qualquer episódio que envolva de modo negativo as lutas emancipatórias torna-se algo dilacerante. Mas também pode educar através da visibilidade de suas limitações e colocar em cena a necessidade de fugir de guetos identitárias e espraiar tais movimentos e culturas por meio de ricos diálogos interculturais.

Movimentos e culturas identitárias não bastam para a emancipação mais ampla. São seus componentes são fundamentais, mas insuficientes sem conexões entre eles e sem uma articulação viva com temas, como a igualdade para superar as gigantescas desigualdades produzidas pelo neoliberalismo/capitalismo, e como a soberania nacional, essencial para equacionar a posição do país em uma globalização invadida agora por protecionismos dos poderosos.

Velhos e novos dilemas atordoam hoje a luta por uma democracia ampliada, que não só democratize o governo e o estado, mas que seja capaz de democratizar a sociedade em todas as suas relações humanas, demasiadamente humanas. Democracia ampliada que não se restrinja as regras do jogo democrático, vitais para se falar e se viver democracia, mas insuficientes, pois não conseguem mudar a expectativa e a qualidade de vida das pessoas, preservar o meio ambiente, promover a cultura. A contemporânea luta por democracia ampliada exige ampla e complexa articulação político-cultural-ideológica entre todos os oprimidos e explorados, entre movimentos classistas, nacionais e identitários, em um delicado entrelaçamento que possibilite um discurso consistente e inovador acerca da transformação da sociedade. Sem isto, parece que resta ao mundo a barbárie do neoliberalismo, dos autoritarismos, dos neofascismos, das explorações, das opressões e das desigualdades.