A maior parte da história do PCBR um pouco antes da volta de Theodomiro Romeiro dos Santos ao Brasil, a ocorrer em 1985, aqui decorre de longas conversas com Renato Afonso de Carvalho, dirigente nacional do Partido à época, principal protagonista da fuga de Theodomiro da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador, no mês de agosto de 1979.
Conversas realizadas entre o mês de setembro e outubro de 2024.
Eu indaguei primeiro sobre a volta de Theo ao Brasil. Ele, então, fez um alerta: toda a fala dele giraria em torno da história do partido, não de Theodomiro exclusivamente.
Forma encontrada por ele de reconstituir a memória daquela época, remontar a cadeia de acontecimentos em torno do essencial para ele.
O essencial estava no PCBR, no projeto político encarnado pelo partido.
Não na volta de Theodomiro.
Melhor: para falar da volta de Theodomiro, indispensável situar o BR, como o partido era chamado.
_ A minha vida girava em torno desse projeto: a reconstrução do PCBR com mil responsabilidades, tarefas, pequenos e grandes objetivos.
Assim, esse texto não alcançará ainda a volta de Theodomiro propriamente.
Será, ainda, aligeirada tentativa de contextualizar a situação do BR, a partir do olhar de Renato Afonso de Carvalho, e com a minha interpretação, com a qual ele não tem qualquer responsabilidade.
Bom de bola
Renato Afonso é ex-prisioneiro político.
Estivemos juntos por um tempo, na Penitenciária Lemos Brito, em Salvador, início dos anos 1970.
Saiu antes de mim.
Minha pena, maior.
Muito estudioso.
Aplicado.
Disciplinado.
Ao sair da prisão, passa a dar aulas de História.
Segue até hoje professor.
Na prisão, descobrimos nele excelente jogador de futebol.
Quisesse ser profissional, provavelmente faria carreira.
Quis não.
Ele e mais uns dois companheiros de Galeria F.
Renato da Silveira e Itajacy, por exemplo.
Gosta de cães.
Com a morte de vários, restaram 14 atualmente, me revelou recentemente.
Não sei voltará a aumentar o plantel, chegava a mais de 20 antes.
Cuida deles, com muito carinho, numa chácara nas proximidades de Salvador.
Com os cães, disse ter aprendido muito.
Duvido não.
Os animais têm muito a nos ensinar.
Ainda mais em época de barbárie.
De esquina civilizatória.
Theodomiro aceitara a sugestão de companheiros uruguaios, vinculados aos Tupamaros, de o PCBR ajudá-los a reconstruir o partido.
Muito mais fácil fosse a partir do Brasil, tal reconstrução.
De Paris, onde estavam exilados, muito mais difícil.
Solidariedade internacionalista
Theodomiro, do que conheço, e o conheci bem, quatro anos juntos na prisão, nunca ficaria indiferente a um pedido como aquele.
Dever revolucionário.
Ponto.
Assim procedeu, não obstante desconhecesse as reais condições do partido no Brasil naquela quadra, ali pelo início dos anos 1980, pouco depois dele ter chegado a Paris.
Quem primeiro toma conhecimento dessa proposta e da aceitação por parte de Theo são os militantes do BR na Bahia.
Renato Afonso, até pela ligação com Theodomiro, desde a prisão e depois ao dirigir a fuga dele, participar decisivamente dela, foi um dos primeiros a tomar conhecimento da proposta dos Tupamaros.
O PCBR, no período, início dos anos 1980, ainda não tinha um Comitê Central eleito.
O partido quase fora destruído.
Agora, tentava se reorganizar.
Funcionava nacionalmente de modo mais ou menos federativo.
Precariamente.
Tentava manter-se de pé, com dificuldades.
Havia iniciativas tomadas pelas diversas regiões sem isso significar fosse resultado de um planejamento nacional.
Havia conversas entre as diversas regiões.
Assim, tomadas as decisões.
Nada centralizado.
Quando eram coisas capazes de interessar a todas as regiões e isso provocasse uma concordância básica, tudo era mais fácil.
Mas, em várias ocasiões, as coisas aconteciam por conta de alguma necessidade imediata ou por percepções de cada região.
Uma formulação nacional, característica de um partido leninista, caso do BR, só passará a acontecer mais adiante após o primeiro congresso.
Um meio termo, de modo a compensar a inexistência de um Comitê Central eleito, compor uma Coordenação Nacional, a partir da realização de um Encontro Nacional, onde ela foi tirada, ano de 1980.
Entre outros, tal coordenação era constituída por Bruno Maranhão, de Pernambuco, Renato Afonso, da Bahia, José Garcia, de Santa Catarina e Mauro Goulart, do Paraná.
Tal Coordenação Nacional passa a ser conhecida internamente pelo codinome de Corina.
Assim chamada nos documentos, nas convocações de reunião, para tudo. Tarefa da Corina, naquela fase de transição até a realização do congresso, estimular o desenvolvimento do partido, refazer contatos, aprofundar a tática e a estratégia.
Em 1982, acontece o primeiro congresso do PCBR, em Santa Catarina, quando então é escolhido o Comitê Central, onde naturalmente se repetem alguns nomes presentes na Coordenação Nacional, ao menos aqueles cujo trabalho fora eficiente na Corina, cujo trabalho tenha contribuído para a consolidação do partido.
O Comitê Central resultante do Congresso será composto por Bruno Maranhão, Renato Afonso, Rubens Lemos, José Garcia, Mauro Goulart, Prestes de Paula, Paulo Farias e Abigail Paranhos. Apolônio de Carvalho já se afastara do partido por acreditar na necessidade de fortalecer o surgimento e ajudar na consolidação do PT.
Operação Tupamaros e Bahia
Iniciar o trabalho com os Tupamaros ainda aconteceu na fase federativa.
Mesmo com a existência de uma Coordenação Nacional, ainda predominava o espírito federativo.
_ Nós já tínhamos, como você sabe, participação do processo de fuga de Theodomiro. Tínhamos certa capacidade de iniciativa na Bahia. Tínhamos uma militância muito dedicada.
Esse dado, um BR relativamente articulado na Bahia, dava ao Estado uma capacidade maior de ação.
Ganhava alguma prioridade em várias iniciativas.
Alerto: quando digo relativamente articulado é para não permitir qualquer ilusão de grande partido.
Estava em fase de reconstrução.
A própria inexistência de um Comitê Central então evidenciava isso.
Mas, no quadro geral do PCBR, a Bahia era um polo forte, vigoroso, para as condições de então.
_ Uma certa confluência de fatores, o encontro de alguns companheiros, encaixe de trabalhos e de competências de militantes que acabavam construindo um todo, pequeno, mas eficiente. Capacidade de mobilização da militância em torno de alguns objetivos que multiplicavam as forças.
Fato: O BR assume a tarefa de ajudar aos Tupamaros.
O BR baiano, na linha da direção federativa.
Tremenda responsabilidade.
Na avaliação de Renato Afonso, naquela quadra histórica, ali por volta do início dos anos 1980, 1981 por aí, a ditadura estava nos estertores.
Ditadura nos estertores: necessário qualificar isso.
Para não semear ilusões.
Fica mais perigosa, até.
Vivia-se um processo de acumulação de forças.
Tudo apontava para o fim dela.
Mas ainda havia uma caminhada pela frente, até pudesse vê-la derrotada.
Chegará o dia.
Será em 1985.
Com todas as características de uma transição por cima.
Mas ali ela foi derrotada.
Nesse meio tempo, entre 1980 e 1985, muita água correria por debaixo da ponte.
Muita loucura da extrema-direita militar.
Militares inconformados com a transição lenta e gradual, vinda desde os tempos de Geisel, com todas as características dela, muitas mortes de militantes das organizações de esquerda pelo caminho.
Os que não queriam largar o osso.
Como enfatiza Renato Afonso, a fera quando acuada fica perigosa.
Mais perigosa.
Morde pra valer.
Mata.
Porque no desespero.
Os riscos
A Operação Tupamaros bancada pelo BR oferecia riscos nada desprezíveis.
A Coordenação Nacional toma conhecimento de uma operação daquela envergadura, daquela dimensão com ela já em andamento.
O BR, um dos alvos do regime.
Ditadura invadiu sede do jornal “Povão”, editado e distribuído pelo BR em Recife.
Empastelaram o jornal, quebraram tudo.
Não, a ditadura não estava para brincadeira.
Bruno Maranhão e Prestes de Paula eram nomes muito respeitados no partido
Maranhão, já se sabe.
Antônio Prestes de Paula, militante antigo, e cercado de história e de histórias.
Uma das lideranças da Revolta dos Sargentos, em 1963.
Na juventude, milita no PCB.
Como sargento da FAB, preside o Clube dos Suboficiais, Subtenentes e Sargentos das Forças Armadas e Auxiliares do Brasil.
Preso com o golpe de 1964.
E passa logo a integrar o PCBR.
Comanda o assalto ao Banco da Bahia, feito pelo BR, em 1970.
Nos relatos de Renato Afonso, Prestes de Paula escapou de duas ou três armadilhas da repressão: obrigado a reagir, chegou a matar policiais.
Os dois, respeitados no partido e na mira da repressão, não obstante a fase de relativa abertura.
Ao BR competia preservá-los a todo custo.
E aquela era uma tarefa pesada, cheia de perigos.
Assim, os dois, cuja importância os levaria ao Comitê Central a ser formado logo, não podiam participar da Operação Tupamaros, do processo de reconstrução da organização revolucionária em Montevidéu.
Os dois deviam ser preservados.
Mas Renato Afonso, não obstante omita nomes, não entende por que alguns companheiros, de ampla experiência internacional, também futuros integrantes do Comitê Central a ser constituído, não tivessem se disposto a participar da operação.
Essa pergunta o inquieta até hoje.
Era necessário reunir toda a inteligência e experiência acumulada pelo partido.
Até pela inexistência, ainda, do Comitê Central.
Ainda não tem respostas para tal ausência.
Operação Condor
Uma operação de riscos muito altos.
O fim de um ciclo na América Latina, a contar com a decisiva participação da CIA, o ciclo da Operação Condor.
Ela, no entanto, só é encerrada em 1981.
Orientada desde os EUA, numa aliança entre vários países latino-americanos, tal operação, de acordo com várias fontes, matou muita gente na América Latina e fora dela.
Espécie de multinacional do terror.
Quando começou a ser pensada a Operação Tupamaros pelo PCBR, a Operação Condor ainda estava em ação.
Renato Afonso lembra ousada ação da Operação Condor, no final da década de 1970.
Comando do Exército uruguaio, com a conivência da ditadura brasileira, atravessa a fronteira, chega a Porto Alegre, e sequestra o casal de militantes uruguaios Universindo Rodríguez Díaz e Lílian Celiberti e os dois filhos deles, Camilo, de oito anos, e Francesca, de três anos.
Novembro de 1978.
Não fosse o jornalista Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo João Baptista Scalco, os dois então da sucursal da revista Veja, terem sido alertados por um telefonema anônimo e ido ao apartamento onde o casal e os filhos moravam, e a operação permaneceria clandestina, e os dois uruguaios, inevitavelmente, mortos.
A ação dos jornalistas tornou o sequestro um acontecimento internacional.
Celiberti e Díaz, no entanto, permaneceram cinco anos presos, libertados apenas em 1984, nos estertores da ditadura uruguaia, cujo fim é marcado como fevereiro do ano seguinte.
Renato Afonso tem uma convicção: o sequestro desnudou a Operação Condor, terminou por deixá-la nua diante da opinião público mundial.
E apressou o fim dela.
Insista-se: o fim de uma internacional do terror, levada à frente pelas ditaduras latino-americanas, inclusive a do Brasil, com o apoio entusiástico, como sempre, dos Estados Unidos.
Democracia nunca foi um compromisso dos Estados Unidos.
Conjuntura de transição.
Perigosa, mas de transição.
Ditaduras iam se retirando.
Algumas, com mais rigor por parte dos novos governantes, pretendendo, e conseguindo, a punição de assassinos e torturadores.
Outras, à base das “transições por cima”, negociações à base de entregar os anéis para não perder os dedos, preservando-se, portanto, de alguma maneira, os torturadores e assassinos.
Como ocorreu com o Brasil, cuja correlação de forças não permitiu a punição dos terroristas da ditadura.
Pesado tudo na conjuntura, final dos anos 1970, início dos 1980, no caso brasileiro a ditadura ainda não havia acabado.
As estruturas repressivas estavam ainda instaladas, prontas para ação.
E os subterrâneos da extrema direita militar, alvoroçados.
Operação Tupamaros, assim, um risco enorme.
Só o espírito internacionalista, indômito e revolucionário do BR permitiu fosse à frente...
Só esse espírito, presente sobretudo no BR baiano, permitiu tivesse sequência...