Cultura

Entender o campo cultural em toda sua complexidade de dimensões e de tensões, oriundas de sua inserção em uma sociedade capitalista, atrelada a uma perspectiva cada vez mais neoliberal, configura o contexto no qual está inserida a universidade pública brasileira.

O campo cultural na modernidade se autonomizou frente à religião e à política. O professor português Adriano Duarte Rodrigues tratou muito bem do tema em livro. Autonomia não é independência, mas dinâmica própria, agora inserida na sociedade capitalista, que conforma a modernidade. Dinâmica que implica em constituição de um campo especializado, como observa Pierre Bourdieu, com suas organizações, pessoal, profissões, regras, ritmos, valores etc.

A cultura é, desde então, invadida por intensa mercantilização, primeiro pela subsunção formal da cultura, via circulação, e depois pela subsunção real, por meio da penetração do capital da produção da cultura. Marx e os frankfurtianos estiveram atentos a tais questões. A noção adorniana de indústria cultural, enquanto lógica de produção capitalista da cultura expressa bem a dinâmica observada.

O campo cultural é também perpassado por disputas de hegemonias político-culturais, muitas delas através de meios de produção e difusão de bens culturais, cada vez mais presentes no mundo contemporâneo. Em verdade, meios de produção e difusão de bens simbólicos e não meros meios de comunicação, como se quer fazer crer, de modo equivocado. A tensão entre cultura e capitalismo se torna vital para as reflexões sobre a cultura.

O campo cultural conjuga como eixo contraditório e dinâmico a dialética: criação x preservação. Ela marca profundamente o campo cultural. Além da criação-invenção-inovação e da preservação-conservação-tradição, a cultura possui outras dimensões constitutivas, tais como: transmissão-educação-ensino, difusão-divulgação, circulação-distribuição, estudos-pesquisas, crítica, consumo-fluição e organização, constituída por políticas, gestão, produção e curadoria culturais.

Entender o campo cultural em toda sua complexidade de dimensões e de tensões, oriundas de sua inserção em uma sociedade capitalista, atrelada a uma perspectiva cada vez mais neoliberal, configura o contexto no qual está inserida a universidade pública brasileira.

A universidade vive no Brasil um paradoxo. Ele é uma instituição cultural, mas tal reconhecimento aparece como difícil para ela e para a sociedade. A visão hegemônica a imagina, de modo reducionista, como profissionalizante e como científica. A dimensão cultural da universidade é secundarizada, quando não silenciada.

A cultura na universidade emerge, quase sempre, reduzida à área da extensão. Só recentemente movimentos colocam em questão tal visão. Quatro universidades federais já implantaram pró-reitorias específicas de cultura. Além disso, diversas instituições universitárias desenvolveram políticas e aprovaram planos universitários de cultura. Igualmente surgiram há pouco nas instituições mapeamentos, a exemplo do Mapeamento Cultural da UFBA, que registrou a cultura presente em todas as dimensões universitárias: ensino de graduação e pós-graduação, pesquisa, extensão e gestão.

Assim, a construção em muitas instituições públicas de tais dispositivos faz com que as universidades passem a se reconhecer enquanto instituição extrinsecamente cultural. Ou seja, organização constituída com base em valores vitais para sua realização: liberdades, pluralidade, diversidade, laicidade etc.

Como a cultura ainda não obteve o devido e pleno reconhecimento, também a formação cultural é menosprezada pela instituição: seja a formação cultural geral dos alunos, seja a formação cultural especializada em áreas mais próximas à cultura em sentido mais específico. Em suma, a cultura ocupa lugar secundário.

Diversos cursos oferecidos por entidades universitárias se restringem à noção restrita de cultura, apenas como artes e patrimônio. Mesmo eles continuam, por vezes, a sofrer dificuldades, tensões, perseguições e discriminações. Ou seja, as artes e o patrimônio, ainda que incorporadas em um bom patamar nas universidades públicas brasileiras, ainda ocupam espaços restritos no âmbito universitário.

Os cursos voltados às políticas, gestão e curadoria culturais quase inexistem. Produção cultural e culturas populares começam a possuir mais espaços nas instituições. Mas áreas contemporâneas da cultura, como as culturas digitais, jogos eletrônicos e performances, por exemplo, ainda estão quase ausentes do ambiente das universidades públicas.

Considerando tal panorama, os desafios da formação cultural nas instituições se manifestam como enormes. Na formação cultural em geral é necessário: consolidar a universidade como efetivamente cultural; ampliar a formação cultural geral para todos os alunos; pensar a formação universitária como profissional, científica e cultural; assumir papel cultural mais efetivo na sociedade e dialogar com ela na construção de culturas democráticas. A articulação entre cultura e democracia aparece como vital para o presente e o futuro da universidade.

Com relação a formação cultural específica, emerge como vital: superar a discriminação dos cursos de cultura; encará-los como possuindo também potenciais profissionalizantes e científicos; reconhecer suas singularidades; reforçar a formação em áreas com acentuado déficit, a exemplo de políticas e gestão culturais, curadoria; ampliar cursos atualizados, como culturas digitais e jogos eletrônicos; promover estudos multidisciplinares em cultura; conectar cursos de cultura com a constituição das culturas democráticas.

Apesar do panorama antes traçado, a formação cultural desenvolvida nas universidades brasileiras tem contribuído em muito para a dinâmica cultural do país. Cabe lembrar que a instituição da universidade no Brasil só existe há aproximadamente cem anos. Ou seja, uma implantação bem recente em termos mundiais. Mesmo assim, as universidades públicas brasileiras conseguiram um nível admirável de consolidação no ensino de graduação e pós-graduação, na pesquisa e na extensão.

A recente expansão das universidades públicas federais, a partir dos governos federais petistas de Lula e de Dilma, para além das cidades-capitais em direção às cidades médias brasileiras, abrangendo novas territorialidades, e a implantação de cotas sociais, com a incorporação de novas populações com suas culturas próprias à instituição universitária, antes bastante elitizada, produzem imensos impactos sobre a cultura na universidade e sua formação cultural.

Resta fazer com que tais mudanças e desenvolvimentos contemplem em plenitude o campo da cultura e de suas formações especializadas para que a universidade brasileira possa cumprir um papel cultural ainda mais relevante para o país e para o mundo, fortalecendo seus valores essenciais, a exemplo das liberdades, pluralidade, diversidade, laicidade na sociedade e apoiando o desenvolvimento da cultura democrática, tão imprescindível ao Brasil e ao mundo, em perigosos tempos de autoritarismos, fundamentalismos, barbárie e violência.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)