Cultura

A obra de Valter Sales nos conta como a ferocidade da ditadura (1964-1988), alcança uma família de classe média, a família do engenheiro e ex parlamentar, Rubens Paiva

Raras vezes na história uma criação artística dialogou de forma tão sintonizada com os fatos que ocorrem no país como o filme “Ainda estou aqui”, de Valter Salles (2024).

Não apenas porque expõe diante da sociedade brasileira, pela crueza e objetividade dos fatos que narra, sem abrir mão da sensibilidade, mas por expor a necessidade incontornável do Estado brasileiro assumir suas responsabilidades pelas graves violações de Direitos Humanos durante a ditadura, num momento em que seus herdeiros ideológicos atentam contra as instituições democráticas e o Estado de Direito.

Mais ainda, porque exige, sem apelar em momento algum à retórica ou ao panfleto, ser ouvido como imperativo moral, a efetivação das políticas de reconhecimento, memória, justiça e reparação, pelos crimes inafiançáveis e imprescritíveis cometidos durante aquele período.

“Ainda estou aqui” produz um forte sopro sobre o espelho da memória social do Brasil cuidadosamente embaçada pela poeira que o tempo e a inércia do Estado depositam sobre aqueles crimes.

A obra de Valter Sales nos conta como a ferocidade da ditadura (1964-1988), alcança uma família de classe média, a família do engenheiro e ex parlamentar, Rubens Paiva conhecido por suas posições progressistas e identificado com o governo do Presidente João Goulart, deposto pelos generais.

E como o terror de Estado destrói metodicamente o curso da vida daquele núcleo familiar embalado ao som da MPB que nascia e do Rock. Como aquele colossal aparato totalitário se vê impotente diante da força moral de uma mulher que se dispôs a enfrentá-lo ao defender seu direito ao quotidiano diante do vazio criado pela ausência do marido desaparecido.

Eunice teve o marido sequestrado pelo aparato repressivo do Estado dentro de sua própria casa. Foi mantida em prisão domiciliar por longos dias com os filhos pré-adolescentes convivendo com os intrusos.

Era apenas o início do processo do mais sinistro crime engendrado pelas ditaduras do continente, o longo labirinto para consumar o desaparecimento forçado dos opositores: Não há corpo, não há morto. Só palavras. Perguntas reiteradas sem resposta. Onde está meu marido? Um crime hediondo que estende para o quotidiano de quem sobreviveu, até que o Estado reconheça a autoria do assassinato.

A passagem de ida e volta pelos corredores, conduzida pelo carcereiro, entre a sala de interrogatório e a cela. O encontro com a filha pré-adolescente igualmente encapuzada. Reconhecida apenas pela voz.

Os riscos gravados na parede da cela para não “perder a noção do tempo”.

O rosto de Eunice travado, impassível diante da violência desprovida de qualquer sentido. O rosto de Fernanda Torres é uma esfinge. Recorda o parágrafo de Leonardo Senkmann (2003): “Existe uma dor que não admite sequer a possibilidade do pranto em voz alta. É a dor mais espantosa e terrível – a dor da lágrima inútil...”

A negação ao pedido para, pelo menos trocar de roupa depois de tantos dias.

No regresso, o banho do corpo ao ser libertada, as lágrimas confundidas com a água do chuveiro, como se pretendesse lavar da alma todas as sombras da dor, das humilhações e da ausência de Rubens.

O imperativo de reconstruir a vida, com as crianças, agora adolescentes. A reconstrução individual do destino de quem não se dobra: advogada aos 48 anos. E o irrevogável sentido de justiça: defensora dos trabalhadores do campo na luta por reforma agrária.

Por fim, esse paradoxo supremo: a alegria partilhada com os filhos quando recebe o documento de óbito do marido, o reconhecimento do crime hediondo cometido pelo Estado... décadas depois.

O apagamento da memória. Como se a biologia viesse para socorrer o espírito exausto daquela mulher, pelo prolongamento quotidiano da dor sem consolo e da resistência que a manteve viva ao longo dos anos.

O fecho: soberbo silêncio de Fernanda Montenegro, imposto pelo Alzheimer, só interrompido quando algum estímulo externo, alguma informação sobre os anos de chumbo, lhe chegavam aos ouvidos.

“Ainda estou aqui”: não se reconstrói a democracia com as mesmas mãos que desfecharam o golpe que a sepultou. Um recado da memória ao país do esquecimento.

Imperdível!

Pedro Tierra – Combatente da resistência à ditadura de ontem e ao neofascismo de hoje.