Cultura

Corrigir o federalismo capenga e consolidar o SNC adquirem centralidade hoje. O fortalecimento do federalismo e do federalismo cultural amplia a democracia, inclusive cultural.

 

O Brasil vive hoje paradoxais conjunturas, que colocam em cena conflitos, contradições e tensões, que mobilizam diferentes e desiguais forças sociais e políticas. Elas abrem futuros diversos e incertos. A vitória de Lula em 2022 e sua posse em 2023 não asseguram uma determinada possibilidade de futuro, mas alteraram a correlação das forças, que lutam por futuros e presentes. A atual disputa em torno dos recursos públicos, expressa na discussão do pacote de ajuste fiscal enviado pelo governo ao Congresso Nacional, é mostra do conflito pelo presente e pelo futuro do país.

Uma onda democrático-progressista, na primeira década do século 21 na América Latina, permitiu a ascensão, via eleições, a distintos governos nacionais, de setores e classes sociais antes excluídas de tal possibilidade, a exemplo de operários, indígenas e mulheres. A segunda década, pelo contrário, se caracterizou por retrocessos das forças democrático-progressistas, seja pela via de derrotas eleitorais, seja através de vários golpes, que derrubam governos eleitos pela via democrático-eleitoral. Os inícios da terceira década trazem circunstâncias ainda mais complexas. A nova conjuntura latino-americana e brasileira se configura como conjunção simultânea de avanços e retrocessos, de vitórias e derrotas, em uma situação política bastante volátil.

O contexto latino-americano é sobredeterminado por uma conjuntura internacional igualmente de grande complexidade, que agrega além dos enfrentamentos entre forças democráticas e autoritárias, o embate entre mundos unipolar e multipolar, com brutais conflitos, bélicos e comerciais. O mundo unipolar, que se vive, gera disputas e guerras constantes. O mundo multipolar, que surge como possibilidade, ainda um desconhecido, tem alternativas em aberto: alvissareiras ou problemáticas.

O Brasil está cercado por tais embates. A conjuntura nacional, por conseguinte, adquire uma dramática complexidade, que somada às disputas entre forças políticas brasileiras, destituem as previsões de futuros de precisão e reforçam incertezas e impasses hoje. Todo governo federal se vê atravessado por conflitos e tensões. Em todas as áreas de gestão os desafios e dilemas se colocam. Não dá para entender as perplexidades da cultura sem compreender o contexto no qual elas se inserem e se contaminam.

Em conjuntura tão complexa e instável, o campo cultural enfrenta enormes desafios. Dois deles parecem fundamentais. Estar unido, de modo umbilical, com a defesa e ampliação da democracia, por meio do fortalecimento das culturas democráticas, tão pisoteadas no mundo e no Brasil. Estar inscrito em um modelo de desenvolvimento sustentável para o país, através do reconhecimento de que a sustentabilidade contém sempre dimensões culturais, coletivas e individuais obrigatórias, e que a economia da cultura no mundo contemporâneo se torna cada vez mais relevante, crescendo em patamares maiores que o restante das áreas econômicas. Em suma, cabe ao campo cultural lutar e conquistar centralidade no governo e na sociedade.

As culturas no Brasil vivem alternâncias e paradoxos, nos quais oportunidades se abrem e se fecham muito rapidamente. Necessário, por conseguinte, estar atento e forte para superar impasses e aproveitar chances abertas. A reflexão floresce com base na conjuntura político-cultural vivida hoje no país. Nela convivem orçamentos razoáveis e fragilidade institucional da área cultural. A conjuntura exige discernimento e sabedoria para superar problemas e não se perder oportunidades, ainda mais porque a circunstância atual tem sido sobredeterminada pelo fetichismo do dinheiro. Isto é, pela atenção onipotente com editais e recursos, quase silenciando tudo mais que diz respeito às políticas culturais.

No campo específico da cultura, os desafios e potencialidades podem ser expressos em muitos questionamentos. Impossível listar e falar de todos eles no âmbito de um texto. Mas, cabe citar alguns. Um deles: como construir conexões substanciais com a sociedade para que a cultura seja encarada pela população como um direito? Outro deles: como fortalecer o campo cultural junto à sociedade e ao governo, por exemplo, desenvolvendo sua institucionalidade, para melhor enfrentar lutas democráticas e situações autoritárias? Se a primeira questão exige esforços de grande amplitude espaço-temporal, a segunda tem resoluções mais plausíveis, inclusive no contexto que se vive no país.

A discussão no texto se concentra especificamente sobre a implantação/consolidação do Sistema Nacional de Cultura (SNC) na atualidade. Ele é vital para a institucionalização federativa da cultura no país. Enfim, depois de quase dez anos, sua lei foi regulamentada e um federalismo cultural, mesmo capenga, começou a ser tentado com orçamentos provenientes das leis Aldir Blanc I e II e da Paulo Gustavo, obrigadas a utilizar recursos públicos nacionais, escanteando a União do processo, devido às muitas agressões à cultura na gestão Messias Bolsonaro. Com elas, recursos públicos federais de cultura chegam aos estados, Distrito Federal e municípios.

Corrigir o federalismo capenga e implantar/consolidar o SNC adquirem centralidade hoje. O fortalecimento do federalismo e do federalismo cultural amplia a democracia, inclusive cultural. O SNC, ao encarnar o federalismo cultural, aparece como dispositivo vital para reconectar de maneira mais abrangente o Ministério da Cultura com a sociedade, mobilizando os entes subnacionais e a sociedade civil, com destaque para seus agentes, grupos e comunidades culturais. Democratizações das culturas e culturalizações das democracias florescem como resultantes virtuosas de tal procedimento.

O SNC é dispositivo de desenvolvimento da cultura e de ampliação da democracia. Sua implantação e consolidação mobiliza muitos caminhos possíveis. Não cabe tratar de todos eles no presente texto. A opção escolhida recai sobre um de seus mais fundamentais componentes constitutivos: o Programa de Formação na Área da Cultura. Ele aparece como um dos fatores mais promissores para a implementação consistente e rápida do SNC, atendendo uma das demandas mais persistentes nas mais diversas conferênciais de cultura: nacionais, estaduais, distritais, municipais, setoriais, territoriais e livres.

O Programa de Formação na Área da Cultura deve ter dimensão federativa e dialogar com o esforço já desenvolvido pela sociedade brasileira no campo educativo da cultura. Já existem nas universidades, institutos federais, entidades do Sistema S, organizações da sociedade civil e outros organismos culturais um conjunto amplo e substantivo, mas disperso e ainda não suficiente, de atividades de formação em cultura. Tais iniciativas, muitas delas bem qualificadas, devem funcionar como um alicerce para o programa de formação em cultura do SNC. Um esteio robusto, que permite ter grandes expectativas sobre o êxito do programa.

O panorama hoje presente no país precisaria ser conhecido por meio de um mapeamento da formação em cultura no Brasil, investigação de base para conceber o programa de modo vigoroso. Mesmo sem o mapeamento criterioso, é possível traçar um panorama provisório, por certo com muitos graus de imprecisão, da situação da formação em cultura no Brasil. As áreas de artes, principalmente, e patrimônio, com destaque para o material, se encontram relativamente contempladas, ainda que o patrimônio imaterial e áreas de artes, como as integradas e as mais tecnológicas, tenham oferta diminuta. As culturas populares e a produção cultural possuem certa presença no quadro nacional, mesmo que recente. Outros registros têm visível déficit de cursos próprios, tais como: gestão cultural, políticas culturais, curadoria, diplomacia cultural, economia da cultura, direitos culturais, culturas digitais, jogos eletrônicos e formações técnicas nos diversos ramos da cultura.

Apesar do patamar desigual, o alicerce relevante esboçado não pode ser desconsiderado. O mapeamento traçaria um desenho mais rigoroso para poder corrigir as ausências e discrepâncias existentes, além de estar atento para acolher às novas necessidades, demandadas pela sociedade, pelo campo cultural e pelo ministério.

A base existente e o envolvimento com o SNC das diferentes instituições e organizações dedicadas à formação em cultura criam uma base potente para o programa de formação e para o próprio sistema, pois conformam uma admirável rede colaborativa de instituições e organizações reconhecidas pela sociedade, que podem dar suporte satisfatório para as atividades de formação, dar estabilidade para as políticas de formação e, inclusive para o próprio SNC, tornando mais possível que se instalem políticas de Estado e não apenas políticas de governo, como o campo cultural e o Ministério da Cultura desejam. Para que sejam plenamente políticas de Estado, entretanto, elas têm que possuir enlaces com a sociedade e a cultura ser reconhecida como direito pela população. Mas a conquista de institucionalidade cultural com maior estabilidade, inclusive para o SNC, é conquista substantiva para a cultura na atual conjuntura de incertezas e disputas entre avanços e retrocessos.

Um programa construído nesta perspectiva tem condições de assegurar que atividades e cursos de formação em cultura não tenham só uma forma episódica, quando necessário, mas que se tornem permanentes, porque integrados à vida acadêmica de tais instituições. Deste modo, o programa de formação atenderia tanto as genuínas demandas eventuais, quanto se voltaria também para as necessidades formativas de mais longo prazo. Uma das melhores perspectivas do programa seria fazer com que as instituições de caráter mais estável passassem a incorporar em suas atividades acadêmicas continuadas parte da formação em cultura, dando estabilidade à formação e ao próprio SNC.

Um programa de formação não se reduz a atividades e cursos eventuais e permanentes. Ele necessita de uma estrutura que também adquira e promova estabilidade. A confecção de uma rede de instituições parceiras do Ministério da Cultura, nesse horizonte, seria uma decorrência natural. Fácil imaginar que as instituições e organizações, com experiência comprovada na área de formação em cultura, atenderiam de boa vontade ao convite do ministério para fazer parte da rede. Ela, além de realizar cursos, atividades, pesquisas e mapeamentos em cultura, discutiria a formulação, implementação e acompanhamento de uma rica política de formação em cultura de abrangência nacional, com desdobramentos em todos os entes federativos, incluindo, dentre suas possibilidades, a criação de novos cursos e atividades, demandas pela sociedade, por mapeamentos e por indicação das políticas culturais do ministério. Em suma, seria tecida uma rede colaborativa e virtuosa para viabilizar significativa expansão da formação em cultura no país: uma verdadeira revolução em termos de formação em cultura.

As experiências de sucesso já aconteceram em alguns lugares do Brasil e do exterior seriam revisitadas, pela rede, que reuniria ministério, secretarias estaduais, universidades, institutos federais, Sistema S, ONGs e entidades dedicadas à formação em cultura, dentre outros participantes. Estes e outros experimentos de formação buscados seriam avaliados e recuperados na elaboração do programa de formação em cultura.

Ao Ministério da Cultura caberia dirigir a construção da rede e do programa de formação em cultura. Com essa finalidade, ele precisaria acolher as experiências exitosas do próprio ministério, bem como articular os experimentos hoje existentes no MinC, que envolvem diversas secretarias e instituições vinculadas. Tal atitude é condição para que o programa de formação em cultura se torne efetivamente abrangente e possa servir de ponto de enlace vital para a construção ampla da rede e do programa.

Outro passo fundamental a ser dado deriva da confecção mesmo do pacto federativo. Essencial que o federalismo cultural supere a situação atual e defina, de modo amplo e democrático, quais as atribuições cabem a cada um dos entes federativos no âmbito específico da formação em cultura. Por certo, ela deve ser uma responsabilidade da União, do Distrito Federal e dos estados. Mas como fica a responsabilidade dos municípios? Fácil imaginar que os maiores podem ter programas de formação, mas o que dizer dos menores? Haveria diferenciação dos níveis de formação entre os entes federativos, como ocorre na área da Educação? Como tais atividades de formação dos variados entes federativas se entrelaçariam? Não se trata de buscar respostas agora, apenas de sugerir que um programa de formação em cultural nacional, em um país federativo como o Brasil, precisa delinear competências claras para conformar um amplo e democrático programa de formação em cultura, que ajude a consolidar o SNC, aprimore o pessoal da cultura, desenvolva a cultura e fortaleça as culturas democráticas para que se possa enfrentar os dramáticos desafios da contemporaneidade brasileira, latino-americana e mundial.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)