Isso aqui não é novela.
Parece.
Mas não é.
Um partido, PCBR, ainda em fase de reconstrução, resolve ajudar os Tupamaros a se reconstruir no Uruguai.
Aconteceu assim, vocês já sabem: Theodomiro, pouco depois de ter chegado exilado a Paris, recebe esse pedido.
Aceita.
E o partido, mesmo tendo dificuldades, não podendo abrir mão do princípio internacionalista, topa a parada.
Sobretudo a partir dos militantes da Bahia, onde estava um pouco mais estruturado.
Com alguma ajuda de militantes do Rio de Janeiro.
Os Tupamaros, assim conhecido o Movimento de Liberação Nacional – Tupamaros, constituiu-se como organização revolucionária.
Surge na esteira de movimentos contrários à tradição dos partidos comunistas, inspirados pela eclosão da Revolução Cubana, com acento foquista-voluntarista.
Homens e mulheres movidos pela ideia da Revolução.
Homens e mulheres de extrema coragem.
Movimentos a se multiplicar pela América Latina, sob forte influência do pensamento de Regis Debray e do livro de autoria dele, Revolução na Revolução.
Os Tupamaros envolvem-se em ações de guerrilha urbana no Uruguai do início da década de 1960 aos anos 1970, antes e no decorrer da ditadura militar no Uruguai.
No início das atividades, com os recursos das expropriações de bancos distribuía dinheiro e comida às pessoas pobres, principalmente em Montevidéu.
Nada de “assaltos”.
Eram expropriações, termo considerado mais correto, a se ajustar às ações desenvolvidas pela organização.
Termo muito apropriado.
Estavam retirando dinheiro de bancos, instituição voltada à mais violenta exploração do dinheiro alheio.
Sequestro do cônsul e de agente da CIA.
Final dos anos 1960, a organização volta-se a sequestros políticos.
O mais famoso deles, o do cônsul brasileiro em Montevidéu, Aloysio Mares Dias Gomide.
O sequestro aconteceu no dia 31 de julho de 1970. Gomide passa 205 dias sob o poder dos Tupamaros.
No início, a organização revolucionária pedia a libertação de 150 presos políticos, pedido recusado pelo presidente Jorge Pacheco Areco. Mais tarde, os Tupamaros recuam e pedem como resgate a importância de 1 milhão de dólares.
A esposa do diplomata, Aparecida Gomide, encontra-se com guerrilheiros na prisão uruguaia.
Volta ao Brasil, faz vaquinha, consegue 250 mil dólares.
Depois de uma intrincada negociação, dinheiro enviado ao Uruguai e entregues aos Tupamaros através de uma operação sigilosa, comandada por ela própria e pelo diplomata brasileiro Quintino Deseta, e aceita a exigência dos Tupamaros de suspender o estado de sítio decretado pelo governo do presidente Pacheco Areco, Gomide é solto.
Simultaneamente ao sequestro de Gomide, os Tupamaros fazem, refém o agente Dan Mitrione, dos EUA.
Mitrione não era um policial qualquer.
Nascido em Richmond, Indiana, chefe de polícia no estado natal, é recrutado pela CIA.
Aluno da Academia Internacional de Polícia, escola para formação de especialistas em contra-insurgência.
A CIA vê nele um sujeito com vocação.
Gostava de ser policial.
A agência lhe entrega tarefas de relevo.
Primeiro, seguir para a República Dominicana, após a invasão do exército norte-americano em 1965. Depois, passa quase cinco anos no Brasil, até o final de 1969.
Era um mestre.
Devia ensinar, e ensinou, policiais do continente a torturar.
Sobretudo à ditadura brasileira e a agentes policiais uruguaios.
Desde os anos 1960, contratado pela USAID, dedicou-se a essa tarefa.
Mestre da tortura.
Entre 1965 e 1969, ensina variados métodos de tortura aos policiais brasileiros.
Primeiro em Belo Horizonte.
Depois, Rio de Janeiro.
Ensinava, entre tantos métodos, como usar o choque elétrico sem deixar marcas, prática largamente utilizada pela ditadura
Um mestre.
Da tortura e do terror.
Carteira de trabalho dele apresentava-o como funcionário da Oficina de Segurança Pública, consultoria governamental atrelada às embaixadas.
Encarregado somente a dar assistência ao combate à criminalidade.
A ficha completa de Mitrione foi conseguida por um cubano infiltrado na CIA, Manuel Hevia Cosculluela, cuja volta a Havana, são e salvo, aconteceu no mesmo ano de 1970.
Dan Mitrione, fuzilado.
Com Mitrione, não há contemplação: condenado por um tribunal revolucionário, é executado no dia 9 de agosto de 1970, um domingo.
Foi encontrado pelo cabo Armando López e soldado José Misvini na madrugada de segunda-feira.
Os dois saíram em patrulha no frio cortante de Montevidéu, entraram numa ruela perdida da capital quem sabe em busca de alguma alteração, rua Coronel Lasala.
Deparam com o Buick verde de capota branca, ano 1948, estacionado de modo meio desengonçado.
O carro, marca, modelo, cor correspondiam à descrição de um carro roubado na noite anterior.
Com cautela, aproximaram-se do Buick, e constataram: o corpo de Dan Mitrione, estendido no banco traseiro, coberto por uma manta azul.
De fácil reconhecimento.
Montevidéu, coberta por fotos dele.
Dois tiros na cabeça do mestre da tortura.
Os Tupamaros eram então dirigidos por militantes, cuja trajetória mais tarde será de grande relevo na história uruguaia.
Pepe Mujica, mais tarde presidente da República, e um dos mais notáveis nomes da esquerda mundial pela densidade de suas formulações, a ultrapassar o estrito mundo da política, e a ingressar em concepções filosóficas da existência, numa pespectiva anticapitalista.
Por Eleutério Fernandez Huidobro, mais tarde senador, entre tantas figuras memoráveis da luta revolucionária do continente latino-americano. Dirigentes a amargar mais de uma década de prisão, e em terríveis condições.
O sequestro de Gomide e de Mitrione era parte da tática dos Tupamaros de sequestrar quantos grandes nomes de direita e da repressão, com peso político, de modo a obrigar o regime a soltar os companheiros e companheiras presos.
Era o “Plano Satã”
_ Mitrione não era o único nome da lista, mas sua captura fazia parte do que chamamos, na época, de Plano Satã. Queríamos salvar nossos companheiros da tortura e da morte. O Estado os havia capturado. Nós demos o troco.
Esse o retrato daquele momento, apresentado por Huidobro.
Como tantos movimentos de esquerda, acreditavam naquele caminho.
Pensavam: a repressão só entende a linguagem das armas.
Só pode ser derrotada pelas armas.
Provavelmente não avaliavam o quanto a barra ia pesar.
E nem na evidente superioridade de fogo das forças da repressão, dos governos ditatoriais a pipocar em todo o continente.
Ditadura
Logo, chegaria ao Uruguai.
A situação política do país, se tornando explosiva.
Aos poucos, à semelhança do acontecido no Brasil em 1964, o país caminhava para uma situação manu militari.
As Forças Armadas, fortemente influenciadas pelos EUA, foram ganhando força, e o presidente uruguaio Juan María Bordaberry, dá o passo em direção à ditadura.
Dia 27 de junho de 1973, falando pelas emissoras de rádio e de televisão do país, Bordaberry, com o decisivo apoio das Forças Armadas, fecha o Senado, a Câmara dos Deputados e cria um Conselho de Estado para substituir as funções legislativas. Tinha início a ditadura uruguaia, a perdurar até 1985.
Até ali, as Forças Armadas uruguaias não tinham perfil intervencionista.
A luta contra os Tupamaros e a influência dos EUA, na linha do combate ao que chamavam subversão, provocou a mudança.
O país, desde a década de 1930, se desenvolvera e se transformara numa das economias mais prósperas e industrializadas da América Latina.
Ao longo da década de 1950, ostenta a impressionante taxa de industrialização de 9% ao ano, a par de contar com um sistema de seguridade social consolidado e ampla organização sindical, sem a participação significativa do exército na vida política.
Um Estado de Bem Estar Social.
A virada se deu a partir do final da década de 1950.
Vitória do Partido Nacional (os blancos), primeira derrota do Partido Colorado em 90 anos, reforma monetária, desmantelamento dos mecanismos de controle cambial e comercial, e o país passa a recorrer ao FMI para alcançar a estabilização.
O ovo da serpente.
O quadro de instabilidade se intensificou.
Mais ainda com as visitas oficiais dos presidentes dos EUA, Eisenhower e Nixon.
As visitas de Fidel Castro e Che Guevara esquentam sobremaneira o clima político.
Crescimento das organizações sindicais e surgimento dos grupos armados, com destaque para os Tupamaros.
Jorge Pacheco Areco assume a presidência entre 1968 e 1972, com nítido viés autoritário, disposto a enfrentar a ameaça guerrilheira “comunista”.
Um quadro difícil: taxa de inflação na casa dos 90%, aumento exponencial da dívida externa.
Pressões do FMI, como sempre, por políticas econômicas ortodoxas e austeras, receita a vir de longe, e tão presente nos dias atuais.
A repressão aos Tupamaros passa a contar com o emprego das Forças Armadas, e então acontece a institucionalização do terrorismo de Estado: torturas, execuções e sequestros sistemáticos.
E em 1973, sobrevém a ditadura.
Na defensiva
Como as demais do continente, uma ditadura violenta.
Atua em parceria com as demais ditaduras da América Latina, participando da chamada Operação Condor, plano de ação conjunta entre os governos militares da região, cuja atuação significou o desrespeito completo de fronteiras nacionais, envolveu sequestros e mortes em todo o continente.
Num país pequeno como o Uruguai, estima-se a existência de 174 prisioneiros políticos desaparecidos e a morte de pelo menos 100 deles nos cárceres da ditadura.
Em meados da década de 1970, era o país no mundo com mais elevada proporção de presos políticos em relação à população total.
O grande golpe contra os Tupamaros aconteceu em 1972, quando prenderam e mantiveram em solitária nove dirigentes da organização até o retorno da democracia, em 1985, entre os quais Pepe Mujica.
Em 1985, Julio María Sanguinetti, do Partido Colorado, da direita moderada, vence as eleições, e nesse mesmo ano são libertados 250 ex-guerrilheiros dos Tupamaros.
Reabilitados, ingressam na Frente Ampla, organização a reunir a oposição de esquerda.
No final dos anos 1970, início dos 1980, obviamente os Tupamaros estavam ainda sob a ofensiva da ditadura militar uruguaia.
Os principais quadros da organização, na prisão, em condições extremamente rigorosas, uma parte deles em solitárias.
Insistentes, queriam se reorganizar.
O PCBR iria ajudá-los nessa tarefa.
Não era obviamente tarefa simples.
Eduardo Galeano
O Rio de Janeiro continuava lindo.
O anfitrião, Marco Antônio Carvalho, irmão de Renato Afonso.
Era do PCBR, nunca foi dirigente.
Militante exemplar, disciplinado, aplicado, responsável.
Numa tarefa daquela dimensão, ele foi o personagem a fazer a primeira recepção aos enviados, vindos de Paris.
Na Cidade Maravilhosa.
Um personagem singular.
Com ele, o capital financiava a Revolução.
Parece brincadeira.
Só até certo ponto.
Era executivo da multinacional Baker Oil Tools.
Empresa voltada ao mundo da produção de petróleo, até hoje em ação, é uma divisão da Baker Hugues, fundada em 1908 como Hugues Tool Company.
Opera atualmente em mais de 90 países, atendendo empresas petrolíferas independentes, internacionais e nacionais.
Marco Antônio brincava, quando falava da fuga de Theodomiro, na qual teve também participação decisiva: o imperialismo colaborou com a Revolução.
Agora, novamente.
Encontro marcado no Rio de Janeiro, leva um susto quando é apresentado ao primeiro tupamaro.
Em princípio, um tupamaro.
No caso, não havia chance de o militante tentar se manter clandestino: Eduardo Galeano, ele mesmo, o notável escritor, autor entre tantas obras da célebre “As veias abertas da América Latina”.
Naquela quadra, Galeano, lado a lado com os Tupamaros, participa do esforço de reconstruir a organização no Uruguai a partir do Brasil.
Das surpresas da vida.
Marco Antônio, maravilhado.
Não era pra qualquer um a chance de encontrar-se com um Eduardo Galeano.
Com ele conversar.
Privar de alguma intimidade.
Ter a confiança dele.
Iria encaminhá-lo e a quem o acompanhava, a Salvador, a se constituir no centro daquela operação.
Na Bahia, o partido estava mais estruturado.
Referências
ALTMAN, Breno. O dia em que a guerrilha do presidente Mujica executou o mestre da tortura Dan Mitrione. Ópera Mundi, São Paulo, 10 de agosto de 2020.
CÔNSUL brasileiro é refém no Uruguai. Tupamaros também capturam Dan Mitrione, instrutor de tortura da CIA. Memorial da Democracia, https://memorialdademocracia.com.br/. Consulta em 22/12/2024.
DITADURA civil-militar uruguaia. Wikipédia, consulta em 22/12/2024.
FIGUEIREDO, Janaína. Ditadura do Uruguai deixou 174 desaparecidos e 100 mortos em prisões. O GLOBO, 27/09/2018.
GOMIDE, Aloysio (Aloysio Mares Dias Gomide). Wikipédia, consulta em 30/01/2025.
HISTÓRICO da ditadura civil-militar do Uruguai. Memória e Resistência – memresist.webhostusp.sti.usp.br, consulta em 23/12/2024.
MITRIONE, Dan. Wikipédia, consulta em 30/01/2025.