Nicolas Souza Santos
Sou motoboy em Juiz de Fora (MG). Trabalho por aplicativo desde 2019. Comecei como motorista trabalhando com Uber, Indriver, 99. Em 2020 a pandemia atrapalhou meus planos e de todo mundo. Ser Uber se tornou inviável porque eu teria de ficar num ambiente fechado em plena pandemia.
Por incrível que pareça, achei mais seguro ser motoboy. Tinha uma possibilidade maior de controle da pandemia. Isso mostra já um caráter da categoria dos motoboys por aplicativo, um caráter de resiliência, de força. Digo isso para a gente não ficar falando o tempo todo deles como coitadinhos do rolê. Como eles sofrem! Não é um discurso legal. A galera não gosta disso. Se chegar no meio da gente com esse tom, a repulsa será imediata.
Somos uma categoria, na real, muito resiliente. Atravessamos a pandemia trabalhando em cima da moto, entregando em hospital, vindo daqui para lá, sendo vetor e vítima ao mesmo tempo. Aquele momento fez com que a categoria crescesse exponencialmente. Somos hoje 570 mil entregadores por aplicativo no Brasil, mais do que a categoria dos bancários. Só na maior, que é a IFood, somos 370 mil trabalhadores cadastrados ativos. Mas como isso aconteceu? Uma empresa que 20 anos atrás não existia tem hoje 370 mil pessoas trabalhando ali.
Nossa categoria é historicamente autônoma. Alguém me ligava perguntando: quanto custa levar para mim este negócio aqui lá no bairro tal, na rua tal. Esqueci minha chave, esqueci não sei o quê, quanto você cobra para fazer isso? A categoria já existia antes do aplicativo. Existem motoboys celetistas? Sim, geralmente trabalhando em farmácia, açougue e mercado. Mas a maioria é de autônomos.
O que o IFood fez? Prometeu o cliente. O aplicativo fez um atalho. Olha, você tem que ficar negociando, procurando cliente, prospectando. Vamos fazer o seguinte: você vai abrir o aplicativo aqui e está ali o cliente. Basicamente a promessa foi essa. A todo momento, a promessa era que a gente permaneceria autônomo e todo mundo entrou na plataforma por essa promessa. Porque era flexível, porque tinha liberdade, eu poderia trabalhar na hora que quisesse.
Com o decorrer do tempo, as plataformas foram espremendo essa autonomia. Foram retirando ponto a ponto essa autonomia prometida. Se você perguntar ao motoboy, a qualquer trabalhador, como Renato Meireles demonstrou aqui, se ele quer ser autônomo ou celetista, a resposta é: quero ser autônomo. É um desejo humano. As pessoas detestam obedecer a ordens, cada um quer ser dono de seu destino.
Eu quero ser autônomo, mas isso não significa que, hoje, na plataforma, eu seja autônomo. Houve essa retirada de autonomia vagarosamente e quase imperceptível. Se eu abro meu aplicativo do IFood hoje, ele sabe que estou em Brasília e já me mandou uma promoção aqui para eu poder ir lá e fazer uma entrega. Nesse aplicativo tem três sistemas de avaliação interna, score (pontuação): saúde da conta, avaliação do cliente e avaliação do estabelecimento. Fica ameaçando. Detectamos um comportamento incomum e você pode ser desativado. Esse controle não existia dois anos atrás.
Sendo 11 milhões no Brasil, há graus distintos de autonomia, com maior ou menor grau de subordinação. Eu não tenho liberdade de preço. Chega para mim só o seguinte: tem essa corrida aqui por x reais. Quer pegar? Posso até falar que não quero, mas só algumas vezes, porque senão eu tomo um bloqueio. Hoje a subordinação é escancarada. E a nossa vontade de ser autônomo permanece.
Chega a notícia de que o Tribunal de Justiça de não sei onde condenou todo mundo a ser celetista. Nosso pessoal fica assustado porque começa a se comparar com o vizinho dele, que é caixa no supermercado, com sua mãe, que é doméstica. Ele vai entender o celetista como precarizado. E uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas tem muito receio disso.
Quando dizemos que a pessoa não quer ser CLT, não é porque ele não gosta da cor da carteira ou porque tem repúdio a ser celetista. Não é esse o problema. O problema é que a CLT é horrorosa. Hoje o salário mínimo é extremamente rebaixado. Temos de lidar com um pensamento de servidão que existe no Brasil desde muito tempo, que é herança. O cara me contrata para atender alguém, mas me contrata ao mesmo tempo para fazer café, varrer a loja e limpar banheiro.
E isso eu não quero. Quero ficar em cima da moto, fazendo a minha entrega, trabalhando do meu jeito. A autonomia foi retirada ao longo do tempo. A consequência é que a categoria aumentou demais, tomou completamente o mercado que era autônomo. Quem contratava por CLT ficou sem ter o que fazer. O restaurante que contratava por CLT ficou caro demais, a concorrência ficou muito difícil e ele demite aquele motoboy celetista que tinha direitos, passando a usar a equipe que a plataforma oferece. Então acabou com o mercado autônomo e está acabando com os celetistas também. Está sobrando um montão de informais por aí, que não tem nem um, nem outro. Para as plataformas foi uma benção porque elas ganham dos dois lados.
Quero terminar chamando a atenção para o fato de que o STF fará audiência pública para tratar desse tema e, na verdade, ir um pouco além dele. Definir se a gente é trabalhador ou se é parceiro comercial das empresas de plataforma. Se a gente é autônomo ou subordinado. Estará tratando de transporte, entrega, mas a decisão vai afetar, já de saída, 11 milhões de pessoas. Parece absurdo decidir se nós somos ou não trabalhadores. Mas se decidir que não somos trabalhadores, vamos perder uma ferramenta importantíssima, histórica, que já vem sendo atacada há muito tempo, que é a Justiça do Trabalho.
Nicolas Sousa Santos - Trabalhador por aplicativo em Juiz de Fora, desponta como uma das lideranças mais conscientes na articulação dos entregadores. Luta para criar um programa de capacitação abrangente para motofretistas e outros trabalhadores, com foco em inovação, tecnologia e empreendedorismo. Pressiona as empresas de aplicativos a cumprirem a pioneira lei municipal daquela cidade, que obriga à instalação de banheiros, áreas para descanso, tomadas para carregar celular, local para se alimentar e espaços para o trabalhador secar suas roupas em dias de chuva. Nascido em família simples e conservadora, mergulhou na leitura de livros desde a infância. Aos 30 anos, estreou no mundo da poesia, lançando O poeta pobre.