Tente descrever a figura de um rebelde. Coturno, jaleco verde-musgo e uma insinuante boina bolchevique? Oras, para quem sabe o que é rebeldia, qualquer traje pode ser meramente ultrajante. É o caso do mineiro Carlito Maia. O corpo franzino, as roupas carregadas de formalidade e os óculos fundos na ponta do nariz nada dizem sobre o homem “que quebrava muros, não com cabeçadas, mas com frases de efeito”, como alguém tentou defini-lo certa vez.
Tentou porque, é bom que se diga, Carlito Maia sempre foi inclassificável. O que dizer, por exemplo, do fato de o maior rebelde que a publicidade brasileira já produziu, autor de alguns dos lemas mais emblemáticos da política nacional, cultivar o hábito de enviar flores para quem tinha na mais alta conta? Ou do homem carismático, sorridente e pacifista que, insatisfeito com o que acontecia no país, comprou uma briga gigantesca ao se juntar àqueles que fundaram o maior partido de esquerda da América Latina?
Este é Carlito Maia. E sua luta é a cara do Partido dos Trabalhadores. Prova disso é que, logo após a fundação da legenda, em 1980, o publicitário já daria mostras de sua criatividade ao criar o slogan OPTei, uma de suas ideias mais célebres. A frase, vista até hoje em camisetas, bonés, bottons, adesivos e em posts nas redes sociais, acabou por se tornar um grande manifesto pela democracia. O ano era 1982 e o país ainda vivia a expectativa das primeiras eleições diretas. Carlito optou pelo PT.
“No PT ninguém é melhor do que ninguém. Nos outros “partidos” há líderes (como é sabido, líderes dão as costas aos liderados, eles na frente, o rebanho atrás). No PT não: só temos companheiros, irmãos de fé. Lutando lado-a-lado, ombro-a-ombro. Sem medo de ser feliz”, escreveu Carlito, já consagrado por campanhas históricas. Em suma, pode-se recorrer ao que ele sempre disse para explicar a sua relação com o PT: “não precisamos de muita coisa; apenas uns dos outros”. Quer coisa mais petista do que isso?
A relação PT/Carlito Maia, que nunca se filiou mas era apaixonado pela luta da sigla, teve seu ápice em 1989, durante a campanha de Lula à Presidência. Foi naquele ano que surgiu o maior hit da história política brasileira, o clássico por excelência “Lula lá”. A frase, que virou música e ainda embala qualquer ato petista realizado Brasil afora, também está presente em toda sorte de material gráfico que remeta ao presidente e ao partido.
É inevitável pensar sobre como duas pequenas palavras, nascidas com a ajuda de papel e tinta, ainda tenham tanta força de mobilização quanto “Lula lá”. É a rebeldia de Carlito Maia sempre a serviço do país.
Mas nem só de rebeldia vivia o poeta (sim, poeta). Conhecido por cativar todos ao seu redor, Carlito também deixou imenso legado longe dos holofotes. “Carlito foi o primeiro que conseguiu unir a cultura, a batalha de ideias com a luta de classes”, afirmou o membro da coordenação nacional do MST, João Pedro Stédile. Para o jornalista Ricardo Kotscho, “se a gente pega o Brasil de hoje que ninguém fala com ninguém, dessa polarização, Carlito Maia era o contrário e as flores eram um grande símbolo disso”. Ambos aparecem no documentário “Criador Infernal”, lançado em comemoração aos 100 anos de nascimento do publicitário.
Para além da política, Carlito também foi o criador dos cartazes de uma das primeiras campanhas contra LGBTfobia e pela desassociação desse público ao vírus da Aids. A iniciativa é tão impactante que poderia muito bem ser utilizada 40 anos depois.
Foi dele também a ideia da camiseta oficial criada para a Marcha dos 100 mil, ato realizado por movimentos sociais em 1997 em protesto contra o desgoverno FHC.
Seu nome, segundo nota do PT em sua homenagem, “tomou-se sinônimo de decência, dignidade, defesa das minorias e virou prêmio: o troféu Carlito Maia agracia pessoas e instituições que se destacam na defesa dos direitos humanos”.
No dia 22 de junho de 2002, poucos meses antes de Lula ser eleito pela primeira vez, Carlito Maia se transformaria definitivamente numa ideia. “A impressão que se tem é que um pássaro abriu as asas e voou, foi levado pelo vento, e naturalmente deixa aquilo que os homens que valem alguma coisa deixam: a memória e a impressão dos que ficaram, de que ele continua realmente vivo”, escreveu o crítico literário Antônio Cândido naquela data.
Para Tereza Rodrigues, a eterna companheira, Carlito Maia era uma “pessoa livre, que não aceitava nenhum tipo de amarra, mas sua militância era muito digna, ética, séria, inabalável.” Um rebelde, portanto. Era irmão de Dulce Maria, a primeira mulher da guerrilha presa e a primeira exilada a retornar após a Lei de Anista.
Morto aos 78 anos, Carlito Maia jamais deixará de existir. Lá, aqui, ou em qualquer lugar.
Henrique Nunes é jornalista, escritor e integra a equipe FPA de Comunicação