José Luis Fiori
Em 2000 fiz uma palestra a convite do Genoíno na Câmara dos Deputados e analisei o quarto de século que vinha de 1975. Hoje vamos focar as semelhanças e diferenças com os 25 anos de 2000 até os dias de hoje.
A Grande Restauração ou Revolução Conservadora foi desencadeada nos anos 1980 (período Reagan), em seguida à crise norte-americana e mundial dos anos 1970 e teve uma vitória completa com o fim da União Soviética, o fim da Guerra Fria, fim do mundo comunista (com exceção da China), além de produzir também uma perda total de rumo na social-democracia europeia, frente à apoteótica vitória liberal, cosmopolita e norte-americana.
Essa revolução conservadora segue até nossos dias. Os Estados Unidos vivem nova crise e se preparam para dar uma resposta tentando recuperar o poder que, de certa forma, declinou com as derrotas no Vietnã, perda do Irã com a revolução islâmica, retirada no Afeganistão, ataques ao Iraque e à Líbia.
Há uma estranha semelhança entre o que se passou nos anos 1970, 1980 e 1990 e o que vamos viver hoje. Até a sucessão Carter-Reagan e Biden-Trump apresentam alguma analogia.
Estamos hoje, na verdade, sentados sobre um vulcão. O sistema mundial está completamente estraçalhado, em processo de fragmentação. Conflitos por todo o Jomundo e descontrole. Inexistência de uma potência ou grupo de potências com capacidade de estancar esses conflitos.
Nos últimos quatro anos houve um aumento de 65% no número de conflitos em todo o mundo. Vivemos duas guerras simultâneas e assistimos pela TV, absolutamente espantados, o genocídio de um povo.
De repente, cai um governo na Coreia, Macron na França, Scholz de joelhos frente aos Estados Unidos, um candidato de ultradireita afinado com Putin surpreende na Romênia. Caos na Geórgia e no Sudão. Muitos outros elementos, que não podem ser resumidos em 20 minutos.
Por isso, escolhi falar de um fato absolutamente dramático, que nem todos acompanharam de modo consciente. Talvez esteja desacelerando nas últimas semanas. Seu epicentro é a Ucrânia. Ali se disputa hoje o futuro do sistema internacional. Agora em julho de 2024, em Washington, na reunião da Otan de número 75, montada para ser uma demonstração de força, de consenso e de unidade, avançou a proposta em torno de um ataque ao território russo com misseis balísticos de longo alcance. Seguiram-se vários lances no tabuleiro europeu, resultando num bloco altamente belicista e decidido a esse ataque.
Com a percepção de que estava em escalada essa ideia de um primeiro ataque atômico contra a Rússia, ela desencadeou exercícios muito mais na ponta de um ataque atômico contra a Europa, já preparando esse ataque, consciente de que ela poderia ser atacada primeiro.
Quando a Otan autoriza o ataque das forças na Ucrânia ao território russo, a Rússia responde utilizando um foguete balístico novo, uma arma desconhecida, orenchik, e que tem um poder gigantescamente superior ao arsenal francês, inglês, alemão e norte-americano disponível na Ucrânia.
Em 2018 Putin tinha feito um discurso sobre as novas armas russas. Deixando claro: temos um armamento que é superior ao de vocês, tecnologicamente, e mais destrutivo que o de vocês. Ninguém deu atenção a esse discurso e agora os russos utilizaram uma parte desse armamento. Foi um aviso gigantescamente agressivo, mas inteligente porque feito sem dispositivo atômico. Deixando claro que é possível utilizar armamento atômico e atingir qualquer alvo dentro da Europa em poucos minutos, sem que exista defesa. Isso corresponde mais ou menos ao que os Estados Unidos fizeram em Hiroshima e Nagasaki em 1945. Todos sentiram que contra a bomba atômica não havia o que fazer.
O grande paradoxo é que, hoje, os pacifistas, os progressistas olham e esperam pela intervenção de um novo presidente de extrema direita, conservador, hiper reacionário, Donald Trump, como personagem que vem para pacificar. Um gigantesco paradoxo.
Trump pode ter as excentricidades que tiver, mas não caiu do céu e não é uma invenção do zero. Os Estados Unidos têm duas grandes estratégias de longo prazo que foram desenhadas depois do fim da Guerra Fria. As duas apontam na mesma direção, seja quem for a pessoa no comando: manutenção da supremacia americana no mundo contra qualquer poder que surja em qualquer lado.
A diferença de Trump é que sua estratégia é pela força, abandonando o messianismo catequético dos democratas e seus monges ideológicos. Para Trump, a supremacia americana deve ser imposta com bases nos interesses do país e não em valores universais, que não existem. Pela força dos Estados Unidos econômica, financeira, tecnológica e comercial.
A posição dos Estados Unidos com relação à China não deve mudar porque a posição dos democratas e republicanos é a mesma, convergente. A China já foi declarada principal adversário dos Estados Unidos no século 21. Não mudará nada. Pode haver acordo pontual aqui e ali. Por outro lado, a China está muito mais preparada do que no primeiro mandato de Trump. Não será mais surpreendida. Vai responder pau a pau.
No Oriente Médio, a posição dos democratas e dos republicanos é mais ou menos a mesma, apesar de que os republicanos dão o dobro de apoio a Israel. Não é impossível que o Trump, em algum momento, como fazia Reagan, usando terceiros, permita que Israel ataque o Irã. Mas a situação está muito mais complicada do que no primeiro mandato dele porque a Arábia Saudita se aproximou do Irã e também a Turquia. O tabuleiro é extremamente mais complicado.
A guerra da Rússia não é contra a Ucrânia, é contra a Otan, contra os Estados Unidos, depois de Putin ter apresentado, em 2021, uma proposta para refazer os pactos geopolíticos pós Guerra Fria.
No projeto internacional de Trump, a América Latina e a África são inteiramente irrelevantes. Mas Rubbio, seu secretário de Defesa, ideólogo neoconservador, messiânico, catequético, anticomunista pode fazer com que provoque a Venezuela, como Ronald Reagan fez na Nicarágua, financiando os contra.
No caso do Brasil, certamente Trump utilizará a pressão econômica, chicoteando por um lado e oferecendo bananas por outro. As bananas serão oferecidas na medida em que o Brasil abra mão de qualquer sensibilidade a respeito de uma intervenção na Venezuela e se afaste paulatinamente do BRICS. O que me parece difícil.
José Luís Fiori -Doutor em Ciência Política pela USP, com pós-doutorado em Economia Política pela Universidade de Cambridge. Professor titular (aposentado) e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Gaúcho, exilou-se no Chile aos 19 anos, em 1965, onde concluiu sua primeira graduação acadêmica. Deixou aquele país com o Golpe de Pinochet.