Fausto Augusto Junior
Fui chamado a esta mesa para rivalizar um pouco, ou pelo menos fazer um debate com outras abordagens. Estamos no século 21, mas temos uma tendência de utilizar as ferramentas teóricas do século 20 para entender o novo século. Como venho lá da base metalúrgica do ABC, gosto de fazer uma comparação. É como se a gente estivesse apertando uma porca com alicate. Dá para apertar, mas não fica bem apertada e ainda come as arestas. Isso é um grande problema nosso hoje. São realidades muito diferentes.
Os dados sobre mercado de trabalho não mudaram estruturalmente como às vezes se pensa. Quantas pessoas estão trabalhando no Brasil hoje: 62,3% em 2012 e 62,4% em 2024. Taxa de informalidade de 38,3% em 2016, quando o IBGE começou a medir, e 38,8% em 2024. Proporção de trabalhadores por conta própria, ou autônomos: em 2012 eram 22,9% e 24,6% em 2024. Número de empregadores no Brasil: 2012 eram 3,8 milhões e 4,1 milhões em 2024. Taxa de desemprego de 6,3% em 2013, nossa melhor marca anterior, e já atingimos este ano 6,2%.
O que esses números não mostram? Não mostram as 30 milhões de pessoas entre 18 e 59 anos que estão fora do mercado de trabalho. Não estão trabalhando e não estão procurando emprego. De informais temos cerca de 30 milhões. Então cerca de 60 milhões na soma. Desempregados, 5 a 8 milhões, dependendo do ano. Por isso, não podemos jogar a criança fora com a água do banho. A maior parte das pessoas que estão trabalhando hoje estão com carteira profissional assinada. Então, cuidado! Nem tudo é empreendedor. A discussão sobre 6x1 mostra isso. Quem é o trabalhador 6x1 das redes sociais? Ele não é empreendedor, não é trabalhador de aplicativo. Trabalha nas lojas, mercados, shopping-centers etc.
A expressão política dos trabalhadores brasileiros se deu através do movimento sindical. Foi de onde surgiu o nosso Presidente. Essa expressão, que funda o PT, funda a CUT, funda boa parte dos nossos movimentos que hoje estão sob ataque desde os anos 1970, desde Margareth Thatcher e Reagan, chegando pesadamente ao Brasil nos anos 1990. Quando se fala que o movimento sindical está frágil hoje, cabe argumentar que ele está há 30 anos sob ataque pesado e isso vai fragilizando. Além de termos também os nossos erros.
Chega então 2016 e 2017, com o ataque à Previdência e reforma trabalhista. Oito temas que o Temer manda para o Congresso geram mais de 100 mudanças na CLT, a maior reforma da CLT desde que ela existe. Mais do que uma reforma trabalhista, foi uma reforma sindical. E quando o movimento sindical ficou frágil, boa parte do financiamento das mobilizações sociais se tornou frágil. O carro de som, o espaço de debate, o pão com mortadela era o movimento sindical que provia para as lutas. Agora não tem mais dinheiro para isso. E pergunto se temos espaço para debater a contribuição negocial no Congresso.
Nós somos os responsáveis por um fenômeno político importante: as mudanças na favela aqui abordadas. Nós demos identidade para a periferia, levando as pessoas a terem orgulho de ser da favela, orgulho de ser da periferia. Começamos com movimentos por moradia e vários outros. Transformamos as favelas em comunidades. Parece pouca coisa, mas é uma mudança de conceito histórico. Essa identidade nova da periferia ganhou enorme impulso a partir de 2003 e ela passa a ter voz política. Por que surgiu o Data Favela? Porque a favela passa a ser importante na economia brasileira. A favela compra, a periferia representa a maior parte dos consumidores do Brasil.
Quando implantamos o Bolsa Família, o interior do Nordeste passou a ser relevante do ponto de vista do mercado. Só que então, aquilo que a gente cria vira empreendedor e é capturado por uma visão tipicamente liberal. Por que? Cabe fazer um debate muito sério sobre isso. Nós criamos o MEI, avançamos na legislação sobre a pequena e média empresa, quando Okamotto estava no Sebrae. E nós não os representamos, não somos a voz deles. Por que? Nós temos de fazer essa pergunta.
Trabalho com estatísticas há 28 anos. Um problema nas estatísticas brasileiras é que são majoritariamente de corte liberal, todos os dados coletados são dados individuais. Qualquer um que conhece a viração sabe que as famílias constroem estratégias de sobrevivência: um membro é aposentado, outro recebe Bolsa Família, outro é formal e outro informal. E a gente começa um debate de 15 segundos, de TikTok, para fazer uma oposição entre o formal e o autônomo. Não tem sentido isso. Nós somos classe trabalhadora, nós somos o Partido dos Trabalhadores e temos de garantir a melhoria da renda e da condição de vida, tanto para quem está na CLT quanto para o trabalhador de aplicativo. Esse é o nosso desafio.
O Bolsa Família, o BPC, a aposentadoria fazem parte de uma composição da renda familiar que torna o brasileiro capaz de viver com a renda que ele tem, que individualmente fica pouco acima de 2 mil reais, na média, mas que na moda estatística não chega a mil.
Perdemos um debate relevante porque a visão bolsonarista dialoga a partir das igrejas com o núcleo familiar, enquanto nós continuamos no debate individual sobre as políticas sociais. O Bolsa Família é o funding do pobre, para usar um termo bancário. Se a gente continuar compreendendo o Bolsa Família e os programas sociais como benefícios individuais, perdemos o debate. Se passarmos a compreender como disputa coletiva, talvez a gente faça um debate diferente. A mesma coisa acontece no campo. A organização da pequena propriedade é familiar.
Podemos e devemos disputar os diversos espaços e a construção da unidade da classe trabalhadora na sua diversidade de condições objetivas. É o que gera nossa produção de identidade. Talvez a gente encontre assim uma saída um pouco menos liberal para as propostas que estão colocadas e sendo disseminadas no mundo TikTok.
Fausto Augusto Junior - Formando em Ciências Sociais pela USP, foi diretor técnico do DIEESE entre 2020 e 2024, após anos coordenando a subseção junto ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. É o atual presidente do Conselho Nacional do SESI. Antes de formar-se em Sociologia, foi eletrotécnico, trabalhando em empresas como Eletropaulo e TVA. Atuou também como professor na FIA - Business School. Possui Mestrado e desenvolve Doutorado na Faculdade de Educação da USP.