Renato Meireles
Política é disputar a hegemonia do pensamento em uma sociedade. Sem abrir mão dos seus valores. Não dá para disputar hegemonia do pensamento sem a gente entender como a população está pensando.
Começo com o óbvio: trabalho não é sinônimo de emprego; empreendedor não é sinônimo de precarizado. Sem entender isso, não vamos entender o Brasil. No embate político, a gente acaba esquecendo que estamos falando com pessoas que têm sonhos, que têm medo, estamos falando de gente. Vamos falar de gráficos e estatísticas, mas sem esquecer que existe amor nesses números e dados.
Objetivamente, o Brasil não vive hoje uma crise do trabalho. Temos baixíssimo índice de desemprego, temos aumento da renda média. Então, por que diabos está tão difícil? O que está acontecendo que torna cada vez mais complicado dialogar com a sociedade? Acontece que, embora objetivamente não exista uma crise no trabalho, vivemos um momento de reformulação simbólica da relação dos brasileiros com o trabalho.
Temos de entender que a viração sempre fez parte da vida dos brasileiros. Nas classes C, D e E é o chamado bico. Nas classes A e B é o frila. Isso não é uma novidade. A baixa renda brasileira sempre se utilizou de caminhos fora do círculo tradicional do mercado de trabalho. Tendo isso em conta, o significado do empreendedorismo, hoje, mudou significativamente. Trata-se de aspiração ao trabalho, não algo que vem lá de trás como garantia. Mas que oferece uma chance, na visão do trabalhador, de olhar para a frente.
Pesquisas do Data Favela, especializado no território das 11.000 favelas brasileiras, com 16 milhões de pessoas, mostram que 79% dos empreendedores das favelas desejam ampliar o seu negócio por conta própria ou abrir um novo negócio nos próximos 12 meses. Apenas 9% declaram que desejam conseguir um trabalho com carteira assinada. Ou seja, a favela é na maioria empreendedora.
Lembro que mostrei ao Lula e Dilma, ali por volta de 2011, pesquisa parecida com esta de 2024 mostrando que para essas pessoas o que mais contribui para melhorar a vida no próximo ano é: 1) eu mesmo; 2) Deus; 3) minha igreja: 4) minha família; 5) a sorte. E o governo federal vem depois da sorte. Está certo isso? Claro que não! Mas isso é o pensamento do brasileiro. Nós perdemos, o governo brasileiro perde para a sorte. Sem nenhum juízo de valor sobre essas respostas, sabemos que é esse cidadão quem votou para prefeito e vai votar para presidente.
Sei que a CLT tem um papel fundamental. Mas as coisas estão menos óbvias do que há 10 ou 15 anos. É preciso compreender essa nova dinâmica do significado do trabalho, as transformações estruturais que nosso país viveu. Temos aqui muitos dados sobre avanços na escolaridade, no trabalho e na renda. O que isso trouxe? Frustração! É aquele brasileiro que virou o primeiro universitário da família, os primeiros formandos do Prouni, que mudou a realidade do Brasil e da educação brasileira. Só que a pessoa achava que ia ser doutor e virou balconista da farmácia. Ou seja, criou-se uma promessa maior do que a realidade financeira que o mercado de trabalho foi capaz de absorver.
É como se a gente tirasse milhões de pessoas da pobreza – o PT fez isso – e depois não soubesse o que fazer com elas. Talvez seja esse o dilema. Tivemos mudanças demográficas que vão impactar diretamente na economia do cuidado. Com mais impactos negativos sobre as mulheres, que já realizam um trabalho que não é remunerado. Teremos de lidar com a economia do cuidado, com o envelhecimento da população, num contexto em que temos 2,8 pessoas por família.
A mudança na tecnologia da informação gerou um processo gigantesco de plataformização. Sabem quantos brasileiros ganham dinheiro por aplicativo? São 11 milhões e a gente pensa que existem apenas os entregadores e motoristas de Uber. Existe a boleira que passou a vender bolo de pote pelo IFood, o sujeito que estampa boné e camiseta e a artesã que vendem no Mercado Livre. Não temos diálogo com essas pessoas. São 11 milhões de trabalhadores que não têm emprego, mas ganham a maior parte de sua renda com isso.
Cabe abordar também a condição dos negros e das mulheres: 88% dos brasileiros concordam que mulheres com filhos enfrentam mais desafios no mercado de trabalho. Então falamos da mulher que sofre preconceito e na entrevista para emprego é indagada se pretende engravidar ou não. O que é melhor para ela? Ganhar um salário mínimo ou montar um negócio na cozinha de sua casa?
92% dos trabalhadores negros afirmam que existe racismo na contratação de candidatos ao emprego, 67% já deixaram de ser contratados por serem negros e 45% já sofreram discriminação racial durante uma entrevista de emprego.
Tem de passar por tudo isso para ter um emprego formal. E o morador de favela ainda tem de omitir o lugar onde mora, para conseguir uma entrevista. Não concordamos com isso, mas essa é a realidade. É dessa forma que os brasileiros estão vendo a romaria para se entrar no mercado de trabalho. Caberia chamar também de precarizado esse trabalhador de CLT? Nessa situação social, não é tão melhor. Pior ainda depois da reforma trabalhista e na Previdência. Na cidade de São Paulo, por exemplo, 54% das pessoas demoram mais de 1 hora em deslocamento pela cidade para realizar sua atividade principal, no dia a dia. É outro trabalho não pago.
Sobre ascensão no trabalho, podemos verificar os agrupamentos pesquisados pela PNAD, como escriturários, balconistas e vendedores de lojas, trabalhadores dos serviços domésticos, limpeza em edifícios, escritórios e hotéis. Tanto nos segmentos de mais baixa renda, quanto nos acima, qual o plano de carreira que oferecem essas profissões, aquelas que no Brasil mais possuem registro em carteira? Esse cara será promovido? Vai ganhar quanto a mais, com o tempo?
Do ponto de vista simbólico, a democratização da internet e o surgimento do influenciador digital acabam construindo um novo ideário. Os coachs dão seu testemunho de fé, dialogando com a teologia da prosperidade, sobre seus resultados. Ele diz que não tem sentido nenhum você viver a sua vida inteira e não fazer nada marcante. Viver às custas de um sistema, dependendo de certas pessoas. Quando vai vir a sua liberdade? As professoras ficaram indignadas quando mostrei minha placa da conquista dos 100 mil, enquanto elas ganham apenas 1.000. Coisas assim, que são apresentadas como testemunhos de fé.
Mas esse testemunho motiva os outros. Lula foi o maior testemunho de fé. Mostrou para os mais pobres que era possível ir além. Não foi o coach que falou isso. Foi o Lula que falou isso lá atrás. Não podemos demonizar quem fala isso agora. E sabemos que Lula foi a exceção, da exceção, da exceção.
Os líderes da direita dialogam com o empreendedor, os colocando num papel de autônomos e vencedores. Os líderes da esquerda utilizam o discurso de precarizado. O cara vai lá, rala, trabalha e a gente vai lá e fala: você é um precarizado, você está sendo enganado.
Alguém gosta de reforço negativo na vida? Ele é ou não é precarizado? Claro que é, muitas vezes. Mas esse discurso não funciona. Além da questão da Previdência, a flexibilização das leis trabalhistas, desde 2016, fez com que o mundo da CLT perdesse parte das vantagens que eram antes percebidas pela população. Hoje as pessoas sentem menos segurança, menos estabilidade, menos acesso aos direitos e não enxergam na aposentadoria uma segurança de futuro. Elas foram perdendo as garantias que a CLT trazia lá atrás.
No entanto, 91% dos brasileiros ouviram falar sobre o movimento pelo fim da escala 6x1 e 54% concordam que a escala 6x1 afeta negativamente a saúde mental dos trabalhadores e 2/3 concordam que a qualidade de vida seria melhor com uma jornada mais curta. Mas sabemos, na prática, que o brasileiro da viração, vai seguir trabalhando no negócio dele, vai vender Avon, vai dirigir, vai estampar camiseta e vai ter uma grana a mais. De repente, surgiu na internet um meme propondo fim da escala 6x1. E ganha a repercussão toda que ganhou. Nunca tivemos uma bandeira tão fácil de ser defendida. Essa é a nova lógica de comunicação, via internet.
Na ótica do empreendedor, é negativa a sua falta de previsibilidade no trabalho e a ausência de uma cartela de benefícios. Mas é positiva sua flexibilidade de horários, sua liberdade de rotina, trabalhar em casa ou perto dela, ficar mais perto dos filhos, não se submeter a relações abusivas.
Então estamos falando de dois modelos de trabalho que são precarizados na real, mas que ninguém quer admitir. Estamos falando de dois modelos de trabalho que jogam uma lógica liberal. Não dá para achar que um modelo é liberal e o outro não. Vou repetir o primeiro slide: trabalho não é emprego e empreendedor não é trabalhador precarizado. Ou se trata com respeito, entendimento e humildade essa nova relação, começando a se comunicar com essa parcela da sociedade, ou 2026 vai ser bem difícil.
Renato Meireles é comunicólogo e autor de livros como Um país chamado favela e Varejo para baixa renda, idealizou o Data Favela e se dedica há mais de 20 anos a pesquisas de opinião junto aos segmentos de renda mais baixa. É presidente do Instituto Locomotiva, depois de fundar o Data Popular, com liderança no conhecimento sobre os extratos C, D e E nas pesquisas sobre consumo e opinião. Na juventude, foi dirigente da UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas – e ativista nas mobilizações Caras Pintadas pelo impeachment de Collor.