O PCBR fazia os preparativos em Salvador para receber os dirigentes Tupamaros.
Renato Afonso de Carvalho à frente.
Era 1981.
Não lembra a data exata.
Início do ano.
Àquele momento, Renato Afonso ia se constituindo num dos mais importantes quadros políticos do PCBR.
Não só em relação àquela empreitada.
Talvez ele não goste dessa minha afirmação.
Cuidadoso, e com ancestralidade clandestina, prefere as sombras.
Ao menos quanto a alguns aspectos daquele período sombrio.
Professor de História, obrigado a conviver com centenas de alunos nos cursinhos, não pode se esconder.
Mas é sujeito retraído.
E bote retraído nisso.
Parece um pouco com Bruno Maranhão, um de seus mestres, e naquela conjuntura obrigado a cuidados extremos, porque muito visado, e inegavelmente o mais importante dirigente do partido no país. Já partiu, e não morreu de bala.
Renato Afonso tem hábitos heterodoxos.
Não porque conviva atualmente com apenas 14 cães – eram 24, mas foram morrendo, e só restaram os 14.
Talvez daqui a pouco ele resolva ampliar o plantel novamente.
Não, não é pelos cães.
Isso, o de menos.
Ainda não usa computador.
Não obstante professor de cursinho já há muitos anos, obrigado, portanto, a produzir apostilas, escrever.
Vale-se de uma potente máquina.
Antiga, mas potente.
Ao menos na visão dele.
Uma Olympia, na qual datilografa tudo.
Tem poucos dias, me revelou ter um problema: a fita de Olympia, desgastada pelo uso, fazia o texto ficar quase ilegível.
-Vou tentar conseguir uma fita nova pra minha Olympia.
Fale dela com imenso carinho.
Antropomorfizou a máquina.
Amiga.
Não falha.
Às vezes, pede fita nova, e pouco mais que isso.
Parece com os cães dele, cada um com as singularidades deles.
Não, não tem apenas uma máquina.
Não se assustem: quase uma centena delas ocupa uma parte da casa, numa chácara próxima a Salvador, onde mora.
Tem relíquias.
Como uma “Continental”, primeira máquina com texto datilografado visível ao operador.
Surgida em 1909.
Do tempo do ronca, como diria uma amiga minha.
E ele a conserva, cheio de cuidados.
Colecionador de máquinas de escrever.
Já combinamos: vou à casa dele um dias desses, e conhecerei a coleção.
Pedágio: uma garrafa de bom vinho.
Levarei com prazer.
Centro da Operação Tupamaros
Renato Afonso recebeu as informações do Rio de Janeiro sobre a chegada dos companheiros Tupamaros do exterior.
Marco Antônio, o irmão, ia deixando-o a par da presença deles.
Relatou a conversa com a presença de Eduardo Galeano, tudo.
E avisou da vinda deles à Bahia.
Já se disse, não custa insistir: o Estado ia ser o centro da operação destinada a ajudar os Tupamaros a se reconstituírem no Uruguai.
Na terra dos orixás, o PCBR estava mais estruturado.
Claro, até certo ponto.
Ainda era um partido em reconstrução.
E com muitas dificuldades.
Mas em situação melhor em relação a outros estados.
Mais apto a cumprir a tarefa.
Theodomiro, conversas em Paris, havia concordado em cumpri-la.
Então, tocar em frente.
Definida a data de chegada, Renato Afonso fez uma reserva para receber os companheiros em grande estilo.
No Restaurante Yemanjá, localizado na orla de Salvador, dos mais celebrados, ótima comida baiana, moqueca de primeira, até hoje funcionando no mesmo lugar.
A bem da verdade, ele próprio faz questão de dizer: a sugestão do restaurante partiu de Marco Antônio.
O irmão considerava ter o Yemanjá o condão de incorporar as boas vindas da espiritualidade baiana aos companheiros chegados do exterior.
Queriam receber bem.
Cultura baiana.
Claro: poderiam ter realizado a reunião num apartamento, numa casa.
Mas preferiram receber em grande estilo.
E além de tudo, queriam proceder assim para homenagear Eduardo Galeano.
Não era comum receber um personagem daquela estatura.
Renato Afonso o conhecia.
De fama e leitura.
Agora, o conheceria em carne e osso.
Galeano
Nasce em 1940, em Montevidéu.
Jornalista e escritor, notabilizou-se como intelectual público, visceralmente anti-imperialista, visceralmente anti-norte-americano, visceralmente anticapitalista.
Um dos maiores intelectuais do século 20.
Em 1960, editor do Marcha, jornal semanal a contar com colaboradores como Mario Vargas Llosa e Mário Benedetti, e do diário Época, entre tantas atividades como jornalista.
Em 1971, a obra-prima: As Veias Abertas da América Latina.
Da lavra dele.
Com ela, ganha o mundo.
Em 1973, é preso.
Solto, o nome é incluído na lista dos esquadrões da morte da ditadura uruguaia.
Ele se exila na Espanha, onde dá início à trilogia Memória do Fogo, voltada à história das Américas, personagens da luta: generais, artistas, revolucionários, operários, conquistadores e conquistados, a revelar o período colonial do continente.
Há ainda o Livro dos Abraços, histórias curtas e líricas.
E O futebol ao sol e à sombra.
Critica a aliança do esporte com as corporações capitalistas e, também, os intelectuais de esquerda acostumados a rejeitar o jogo por razões ideológicas.
Já criticava a presença do capital, a tentativa de controlar um jogo popular, amado pelos povos.
Imagine estivesse vivendo hoje, e observasse o futebol inteiramente tomado pelo grande capital, tudo transformado em mercadoria, refém de toda espécie de jogatina, área propícia à lavagem de dinheiro.
Uma anotação: sonhou em ser jogador de futebol.
Não realizou o sonho.
Foi ser escritor: um ganho da humanidade.
Deus: rompimento aos 13 anos.
Ateu precoce.
Talvez no mesmo momento da desistência de brilhar nos campos de futebol.
Mais de 40 livros.
Deixou precioso legado.
Em 1985, ditadura encerrada, retorna à pátria.
Morre em Montevidéu, em 2015.
Saboroso jantar
Ninguém estranhe.
Revolucionários também sabem receber.
Renato Afonso orientou os companheiros: o jantar não seria uma reunião de trabalho.
Deveria transcorrer num ambiente informal.
Ser um encontro de boas vindas.
E assim transcorreu.
Ou mais ou menos.
O uso do cachimbo faz a boca torta.
Os detalhes da operação de ajuda, de solidariedade do PCBR com os Tupamaros, seriam objeto de outra reunião, já prevista para o dia seguinte, bem mais formal evidentemente.
A reserva, uma mesa grande, de fundo, discreta.
Como cabia para um encontro daquela natureza.
Ditadura não havia acabado.
Eduardo Galeano, Renato Afonso de Carvalho, Marco Antônio de Carvalho, Natur de Assis Filho e Regina Afonso de Carvalho.
Natur e Regina, presentes porque teriam papel importante na sequência.
E há Júlio, o principal dirigente Tupamaro na reunião.
Se Eduardo Galeano chegou a ser apresentado como militante da organização revolucionária, equívoco.
Um aliado, simpatizante.
Disposto a correr todos os riscos, mas não um militante.
Ele próprio chegou a esclarecer isso.
O papel dele se encerrava, como ele próprio disse, logo “a encomenda fosse entregue”.
Estava sendo entregue naquela ocasião.
E a encomenda era Júlio.
Júlio, tentei cavoucar, mas não encontrei o nome.
Renato não tem o nome inteiro.
Nem certeza ser aquele o nome dele mesmo.
Momentos difíceis.
Ditadura no Brasil.
Ditadura no Uruguai.
Nomes, não guardavam importância.
Melhor não sabê-los.
Júlio era o capa-preta Tupamaro na Bahia, naquele momento chegado do Rio de Janeiro, vindo de Paris.
Política
No jantar, não seria discutido qualquer detalhe da operação.
Engana-se, no entanto, quem acreditasse fosse um encontro de amenidades.
Chegaram as deliciosas entradas.
Os vinhos.
Tudo nos conformes.
Recepção à altura dos convidados.
Reunião correu solta, mas com método.
Preenchida por informes de lado a lado.
Muita política.
Querendo ou não, preparavam a discussão sobre os passos seguintes de ajuda à reconstrução dos Tupamaros no Uruguai.
Júlio discorreu sobre a vida dos exilados latino-americanos na Europa, de modo particular em Paris.
Por ele, naquela reunião, o PCBR toma conhecimento da crise vivida pelos Montoneros, na Argentina, e pelo MIR, no Chile.
Júlio e Galeano, em contrapartida, receberam informações, à mão do PCBR, sobre a guerra popular conduzida pela Frente Farabundo Martí, em El Salvador.
Renato Afonso discorreu, ainda, sobre o cerco imperialista à Nicarágua.
Os brasileiros chegaram a se surpreender quando souberam do total desconhecimento deles quanto à guerrilha desenvolvida pelo Sendero Luminoso, no Peru.
Nesse momento, não obstante surpreso, Eduardo Galeano, gostou do nome da organização revolucionária.
_ Sendero Luminoso – hay que unir poesia y revolución.
Renato Afonso analisou o estágio da luta contra a ditadura no Brasil, mais avançado do que no Uruguai.
O próprio fato de ser solicitada a ajuda do PCBR evidenciava isso.
Brasil vivia uma conjuntura de nervosismo da extrema direita.
Esta, não admitia sequer a distensão lenta e gradual.
Mas, o país experimentava também o avanço das lutas populares, já significativo.
Conversa vai, conversa vem, e fizeram um balanço da situação da esquerda na América Latina.
Naturalmente.
Sem precisar formalidades.
Democracia
Talvez, pela composição daquela mesa, não houvesse a percepção do abandono, passo a passo, da luta armada como caminho de libertação dos povos no continente.
Os revolucionários iam, num processo, à custa de muitos massacres, muito sangue, compreendendo ser a luta pela hegemonia uma luta de longa duração.
Iam sendo levados naturalmente à luta institucional.
À luta pela democracia.
Como acontecerá, por exemplo, com as próprias lideranças dos Tupamaros.
Crescia nova compreensão de luta pela hegemonia, a atravessar também a institucionalidade.
Diria: ventos gramscianos sopravam sobre a América Latina, de modo consciente ou inconsciente.
O debraysmo perdia espaço.
E hoje pode-se dizer: ainda bem.
Será um processo.
Não tão rápido.
Ainda há respingos de luta armada no continente.
Adianta-se isso para compreender a conjuntura numa visão ampliada.
Para não sermos surpreendidos na primeira esquina.
Com a presença de Galeano, a noite foi iluminada por muitas referências literárias.
Dele, se percebia um interesse acentuado pelas coisas da Bahia, história da Bahia, cultura da Bahia.
Um jantar longo.
Muito agradável.
Muita discussão política
Mas, descontraído.
Saíram do restaurante muito tarde.
Os últimos.
A conta, paga pela Baker Oil Tools.
Marco Antônio, executivo da multinacional norte-americana, arrolou a reunião na prestação de contas, como um encontro entre empresários de petróleo e a empresa.
A Baker Oil Tools disponibilizava verbas generosas para tais encontros.
Marco Antônio levou Galeano para o hotel.
E Renato Afonso acomodou Júlio, Regina e Natur no DKW dele, e levá-los aos locais onde dormiriam.
Se aquele DKW falasse...
Muitas histórias.
Inclusive fuga de Theodomiro.
Referências
CARVALHO, Renato Afonso de. Entrevista, 1/02/2025.
GALEANO, Eduardo Hugues. Wikipedia, consulta em 9/02/2025.
MOVIMENTO de Liberação Nacional – Tupamaros. Wikipedia, consulta em 9/02/2025.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros