Na atualidade, vozes pretendem fazer crer, sem mais, que anistia e democracia são quase sinônimos e que elas se congraçam em um generoso gesto. A anistia serviria, então, como requisito para a pacificação da sociedade brasileira em prol da democracia. A proposta de que a anistia seria capaz de resolver a polarização política no Brasil entre os defensores da democracia e os pregadores da ditadura nada mais é que pura ilusão. A anistia realizada, além da não superação da polarização, ela reforça todos aqueles que se acham no direito de tramar, no interior da democracia, cotidiana e violentamente contra a democracia.
Necessário discutir o pressuposto da pretendida conjunção democracia e anistia, pois a frágil e pendular democracia brasileira exige de todos nós cuidado e cultivo, sem o que equiparações precipitadas podem agravar mais ainda sua fraqueza. Portanto, cabe analisar como acontece no Brasil a combinação entre democracia e anistia, sempre na perspectiva de fortalecer a democracia e não de enfraquecê-la ainda mais.
Muitas são as limitações, passadas e presentes, da democracia no Brasil. Ela é marcada a ferro e fogo por: profundas desigualdades de toda ordem, que impactam na distribuição desigual de todas as formas de poder no país, inclusive o político; presença constante de autoritarismos no estado e na sociedade mesmo em momentos chamados democráticos; violências enraizadas na sociedade, derivadas do genocídio indígena, da escravidão negra, do menosprezo pelos podres e do desrespeito às diferenças de gênero, etnia, idade, raça, orientação sexual, regionais e culturais; descompasso entre demandas sociais, promessas e respostas efetivas da democracia; recurso recorrente aos golpes de variados tipos para derrubar governos eleitos; para citar apenas alguns dos limites mais notórios. Cultivar e desenvolver a democracia, por conseguinte, é atitude vital para seu presente e seu futuro.
Não bastasse o admirável itinerário de fragilidades, nossa história se caracteriza também por transições político-sociais pelo alto. Isto é, por conciliações entre os dominantes com exclusão dos dominadas em momentos cruciais de mudanças, com a nítida intenção de sabotar a possibilidade de realização de transições realizadas de maneira democrática. Afinal de contas: a independência foi proclamada pelo príncipe português-imperador brasileiro; a república foi declarada por um militar não republicano; a passagem para a democracia em 1985, ao final da ditadura civil-militar, foi aclamada pelo presidente, ex-presidente do partido político, que legitimava a ditadura. Tais exemplos de transições pelo alto expõem enormes limitações da democracia no Brasil.
Os percalços históricos são expressivos e mesmo quase mortais para a vida democrática. Ela precisa ser bem nutrida para se fortalecer. É vital o desenvolvimento de uma cultura democrática para a consolidação da democracia no país. Cabem muitos cuidados para que atitudes simplórias, precipitadas e ingênuas não coloquem a frágil democracia brasileiro em perigos ainda mais eminentes. Uma visitação à história recente das conexões entre democracia e anistia é bem salutar.
Durante alguns governos do chamado período democrático, várias tentativas de golpes ocorreram contra presidentes eleitos. No governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), por exemplo, aconteceram diversas delas, a começar pelo movimento que pretendia impedir sua posse, além das chamadas revoltas de Jacareacanga e de Aragarças. Muitos dos militares envolvidos em tais intentos foram depois anistiados e depois participaram ativamente do golpe civil-militar de 1964. Em 1961, com a renúncia do presidente Jânio Quadros, militares tentaram impedir o vice-presidente João Goulart de assumir o governo. Foi imposto um regime parlamentarista, depois derrotado em plebiscito nacional, com a volta ao presidencialismo. Pode-se aprender dos exemplos citados, duas constatações: 1. a tradição golpista enraizada em setores militares e civis, que denuncia o desprezo pela democracia, e 2. a anistia aos golpistas como uma falsa pacificação e um forte estímulo a participação-realização de novos golpes contra a democracia.
Uma artimanha muito utilizada atualmente, além da pretensa pacificação, é tratar anistias distintas como se elas fossem idênticas e possuíssem o mesmo significado. Comparar a anistia de 1979, conquistada pela luta de movimentos nacionais de anistia, da sociedade civil democrática, de perseguidos políticos, muitos deles expulsos-exilados do território nacional, com a anistia, que se pretende agora, é o mesmo que comparar vinho (de boa qualidade) com vinagre (de péssima qualidade). Ainda que a anistia de 1979 tenha como efeito colateral e perverso a anistia dos torturadores, ela atendia principalmente às demandas da sociedade de anistiar cidadãos-democratas caçados violentamente pela repressão da ditadura civil-militar. Agora trata-se exatamente de um caso oposto. Não da anistia de democratas, que lutaram contra aqueles que destroçaram a democracia, pelo contrário, de partidários da ditadura, que tentaram destruir a democracia. Equiparar tais anistias é algo absurdo e inaceitável.
O ataque articulado e simultâneo aos três poderes da República; a degradação bestial do patrimônio público, mantido por recurso de todos os brasileiros; a pretensão de assassinar o presidente, o vice-presidente e um membro do Supremo Tribunal Federal (STF); a manutenção de acampamentos golpistas durante meses em frente a quartéis com apoio e financiamento enormes de civis e militares; os vários ensaios golpistas acontecidos durante toda a gestão Bolsonaro; as medidas autoritárias impostas a sociedade brasileira; os desvios de recursos e as privatizações suspeitas; o descalabro da administração pública em todas as áreas durante a pandemia; dentre muitas outras barbaridades, têm que ser consideradas atitudes gravíssimas, que colocam em profundo perigo a vida democrática no Brasil. Não cabe anistiar os autores dos atos, que legalmente se configuram como atentatórios à democracia.
É um equívoco político gigantesco fingir que tal anistia não degrada a vida democrática, a civilidade e a democracia. Uma atitude política deste tipo estimula novas tentativas de golpes contra a democracia. Tal resultado seria o efeito principal da anistia aos inimigos da democracia e defensores de ditaduras. A democracia para se afirmar e consolidar no Brasil e no mundo não pode, em hipótese alguma, esquecer e perdoar aqueles que buscam de modo cotidiano e incessante destruir a democracia. Hoje, democracia é sem anistia.
Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)