Sociedade

O combate à cultura do feminicídio passa por uma educação fundada em uma comunicação não violenta, promotora da igualdade de gênero, do respeito e da paz

 

Recentemente, dois crimes (mais dois) ocorridos no RS chocaram o Brasil. No primeiro, no dia 12 de março, um pai bateu com o seu carro de frente com um caminhão na serra gaúcha, levando à morte seus filhos gêmeos de seis anos, além dele próprio. A investigação da polícia aponta que a colisão possivelmente foi intencional. No segundo, no último dia 25, o pai matou um menino de cinco anos, ao jogá-lo de uma ponte, no município de São Gabriel. Nos dois casos, os homens eram separados das mães das crianças e os homicídios cheiram a vingança.

Em sua coluna no jornal Zero Hora (28/03/2025), o jornalista Paulo Germano classificou os dois casos de “feminicídio por tabela”, motivados por “uma masculinidade em colapso”. Assim, as crianças viram o “punhal” com o qual estes homens tentam matar a razão de viver das mulheres que os rejeitaram. O jornalista defende que tal condição deveria ser considerada um agravante no julgamento de crimes como estes. No entanto, reconhece que não basta punir esses criminosos. Até porque, em vários casos, eles acabam tirando a própria vida ao concluírem suas vinganças.

Para o comunicador, “o verdadeiro combate não começa nos tribunais. Começa nas escolas. Nos livros. Nos quartos de meninos pequenos”. Sem dúvida, o combate à cultura do feminicídio, construída no machismo, na misoginia, na violência contra as mulheres tacitamente aceita em nossa sociedade, passa por uma educação fundada em uma comunicação não violenta, promotora da igualdade de gênero, do respeito e da paz.

Até este ponto, no discurso, praticamente todo mundo concorda. Mas a prática revela uma realidade bem mais cruel. Tramitam, na Câmara Federal e em várias casas legislativas país afora, projetos de lei que buscam criminalizar escolas que adotem conteúdos classificados como “ideologia de gênero”. Esta expressão, que não tem qualquer embasamento científico, serve para mascarar o machismo e a misoginia destes legisladores. Como começar o combate à cultura feminicida pelas escolas quando tentam colocar uma mordaça nos professores e professoras? Como combater o machismo e a violência com literatura quando legisladores tentam proibir o ingresso de alguns destes livros nas bibliotecas escolares?

Para a educação começar no quarto dos meninos pequenos, eles não podem conviver com a cultura do estupro dentro de casa, com suas irmãs violadas por familiares. Esses meninos pequenos não podem assistir suas irmãs sendo obrigadas a levar adiante uma gravidez fruto de estupro, contra a sua vontade, como querem impor um grupo de parlamentares, ao tentarem aprovar uma lei que criminaliza a vítima.

Como ensinar meninos que suas futuras companheiras não serão sua propriedade nem objeto de sua vontade, quando muitos deles são criados em lares onde o fundamentalismo religioso determina que a mulher tem que ser submissa ao homem? Dogmas religiosos como este colocam combustível em movimentos como o “Escola Sem Partido” e contra a “Ideologia de Gênero nas Escolas” e, consequentemente, acabam por alimentar uma cultura de violência contra as mulheres que levam aos milhares de feminicídios, sejam ou não por tabela.

Não há mais como dissociar os crimes bárbaros que chocaram a população da estrutura da sociedade que cria as bases para que eles aconteçam. É preciso compreender a misoginia - esse ódio, desprezo e desrespeito pelas mulheres e meninas - como produto de uma sociedade patriarcal, capitalista e racista. Afinal, a cultura é expressão de uma sociedade em um determinado tempo histórico. Logo, ela poderá se mover de forma mais rápida ou mais lenta, a depender do peso das estruturas que a moldam. Então, tal como dominós, as peças do patriarcado, do racismo colonialista e do capitalismo precisam cair uma a uma, para que a misoginia seja eliminada e uma nova cultura possa emergir.

Acerta o jornalista Paulo Germano, ao pontuar que enquanto a cultura não mudar “seguiremos não só enterrando mães e filhos, mas também perdendo a chance de salvar os próximos”. E essa mudança passa pela garantia do Estado Laico, onde as convicções religiosas não sejam pano de fundo de legislações esdrúxulas e a educação não seja amordaçada. O desenvolvimento de uma cultura promotora da igualdade, da não-violência, do respeito às diferenças e à diversidade pode e deve começar no quarto dos meninos pequenos, mas precisa percorrer a casa inteira, a rua, o bairro, a cidade, os estados, o país, até tomar conta do ar do planeta, até que possamos respirar os ares de uma nova sociedade.

Eliane Silveira é jornalista.